Responsabilidade social da mídia e desarmamento
Em alguns países, há polêmica sobre qual deve ser a abordagem jornalística: teórica ou prática? Na tentativa de resolver esse problema, países como Estados Unidos e Inglaterra estão investindo na pós-graduação com intenção de desenvolver jornalistas especialistas. Isso porque nesses mesmos países foram comprovadas reportagens falsas feitas por repórteres de renome. Outra discussão é sobre a ética profissional: deverá haver segredo sobre a identidade das fontes de informação? Há poucos meses, uma jornalista americana foi presa por negar-se a revelar uma fonte que denunciou a identidade de um espião. Mas creio que o problema é ainda maior do que tudo isso.
Mais importante que a abordagem teórica ou prática e mais sério que a discussão sobre ética ou a falta dela – pois esse debate é infindável - é o poder dissimulado dos meios de comunicação.
Parece-me ponto-pacífico que vivemos na Idade Mídia. Numa época em que a globalização e seus recursos permeiam a economia e as relações, me parece ingênuo acreditar que os meios de comunicação não sejam detentores de poder. No entanto, a mídia é menos poderosa por transmitir informação, um dos principais insumos de nossa era, do que por veicular interesses políticos e econômicos.
Na questão do referendo sobre o comércio de armas no Brasil, há mais interesses sendo veiculados do que informação. São “vendidas” idéias de que o referendo é uma decisão sobre: paz ou violência, vida ou morte, proteção ou insegurança. Contudo, referendo nenhum resolve questões dessa natureza. A votação será apenas para decidir comércio de armas, mas não são estas que determinam a violência e a criminalidade. Rearranjos na política e na economia, resultando, respectivamente, em educação decente e melhor distribuição de renda seria muito mais eficaz do que qualquer proibição.
Em se tratando de proibição, desde tempos longínquos, a humanidade luta por libertação; seja ela política, civil ou de gênero. Nesse sentido, qualquer proibição para o coletivo só representa um retrocesso, uma inabilidade em lidar com problemas que se vão deixando cristalizar até o limite do intolerável.
No salseiro em torno do "sim" ou do "não" pouco é lembrado que tão prejudicial quanto o comércio bélico é a fabricação de armas. O Brasil não estará lutando contra a violência se proibir o comércio de armas no território nacional mas continuar a fabricá-las e vendê-las para outros países.
O que a mídia tem a ver com isso? O foco no "sim" ou no "não" desvia a atenção sobre a real necessidade de um referendo que tenta colar os cacos de algo que já foi quebrado, sendo que a solução está em não deixá-lo quebrar. Cada meio de comunicação, de acordo com interesses próprios, apenas levanta sua bandeira pró ou contra. Não há nada de errado em ter posição política; quem não a tem, não vai muito longe. O que gera minha indignação é o falso discurso de imparcialidade daqueles que dizem “apenas informar, narrando fatos”.
Mesmo sem interesses ocultos, o discurso sobre imparcialidade é questionável. "Verdade" é a maneira como são construídos valores, por isso ela deveria nos ser apresentada apenas como efeito de um discurso. É evidente que a objetividade é impossível porque não há como o jornalista se despir de seu repertório de vida, referencial que baliza julgamentos embasados em ideologias.
Também há a preocupação de alinhamento ético com a corporação, o que torna inviável ser incoerente com os valores adotados pelo veículo de comunicação representado. Por conta disso, em vez de textos jornalísticos fazerem um fato parecer real e ser sentido como real, seria mais honesto que os fatos fossem apresentados como apropriações filtradas e selecionadas segundo princípios ideológicos. No caso do desarmamento, são mostrados os gritantes índices de violência no Brasil em apelo ao "sim"; ou declarada a precariedade de nosso sistema de segurança pública em apelo ao "não". Quantos meios de comunicação questionam a responsabilidade política por, sob o manto da democracia, transferir a uma população com baixo nível de instrução questões tão importantes como criminalidade e segurança pública? Ou, mais simples ainda, quais meios questionam uma votação que intenciona resolver um problema de (in)competência política?
Enfim, o referendo sobre o desarmamento é mais uma situação mostrando que no Brasil são ignorados processos eficazes de melhoria de condições sociais. São exaltadas respostas rápidas e capengas que dão a impressão de que problemas sérios são tratados de forma democrática. Mostra também que cada meio de comunicação não assume sua ideologia, seu sistema de valores, sua visão de mundo que categoriza a realidade.
E mais uma vez não nos é dado um voto de confiança: não temos prova de que estamos sendo tratados como adultos.