Redução ao Absurdo
A economia de mercado é como o curupira: algo que ouvimos falar, alguns especialistas juram que conhecem e outros, mais desavisados dizem que está aí para ficar. Mas ninguém, ao certo, consegue delimitar o alcance de suas conseqüências, fora – é claro -, do velho bordão socialista de ataque à “injustiça” e ao “desemprego estrutural”. Mas a ameaça é mais grave do que pensam os jovens invasores de reitorias, blogueiros e colunistas: a perversidade hoje atinge índices muito mais alarmantes e o discurso de ocupação dos espaços, típico do marketing, fomenta todo o tipo de ação predatória, para não falar em verdadeiro estelionato. Falo da descartabilidade profissional em função de um perfil de resultados.
Mas do que se trata? A quem isto incomoda? Se for assim, dizem os portadores do saber, trata-se de caso de polícia, Ministério Público, as instituições estão aí para proteger a nós e a democracia e toda a balela alienista dos discursos superficiais. Mas, não é o ponto final do diagnóstico o que assusta, mas a ausência quase que completa de compromisso com soluções. O que enfrentamos no bojo desta situação extrapola a malícia do malfeitor, a transitoriedade do diretor ou a incompetência de nosso modelo de sociedade. Invoca, sim, grande dose de omissão por parte das classes profissionais em geral e, principalmente as que vivem dentro de sua normatividade apática e utilitarista, onde comandam importantes funções e determinam perfis e métodos de avaliação e ação no mercado.
Porque eu comecei falando de economia de mercado e crime? Simples: porque suas exigências de penetração em todos os interstícios e “nichos”, participando integralmente das demandas, comprando ou fundindo-se para açambarcar os mercados é uma estratégia de ocupação e entrincheiramento. Formata-se, então, a partir desta realidade uma mentalidade administrativa de gestão da totalidade, cujos efeitos são sinistros. O custo da ocupação, em vidas, sonhos ou direitos não é considerado relevante, mas apenas o cálculo de quanto tempo pode-se auferir ganhos em escala, enquanto se age e enquanto há garantias de não poder ser removido do ambiente. Tampouco é considerado qualquer dano psicológico ou social, nesta pandemia de expressão virótica, articulação da violência racionalizada para obrigar ao terceiro se curvar à nossa vontade, que nem Clausewitz, Sun Tzu ou Go Rin No Sho puderam prever.
O problema é que estas táticas de dispersão virótica têm por seqüela a morte do organismo hospedeiro, após a replicação, ou no caso da compra, da aquisição ou ação de consumo. Isto significa que: uma vez não podendo estar dentro do mecanismo de dispersão com fator operador ou operante, torna-se o indivíduo descartável. O engraçado é ver que na literatura, há o elogio do método, do “foco em resultados”, mas ninguém se lembra de verificar se estes postulados são críticos da condição humana e de seus direitos fundamentais. A omissão apontada é o temor de intervir, quando deveriam – sim – ter maior influência para reajustar os parâmetros e flexibilizar as estratificações. A ausência é por criarem entes em demasia, critérios indutivos formatando esquemas justapostos, que nunca serão factíveis, embora possam ser apropriados como verdade.
Estes botos são os responsáveis - diretos ou indiretos - pelos panoramas conceituais dos processos de contratação e as exigências sine qua non, de realização administrativa ou de sua validade e, deste modo, tornam-se extensivamente parte interessada no caso. Ao incorporarem os paradigmas e o discurso criado pelos seus gurus de ocasião, que somente se preocupam em cobrir espaços de ganhos possíveis nas demandas exigíveis, agem como novos sofistas a lhes copiar as denominações. Assim, passam a existência laboral a criar “filtros”: laudos, especificações, métricas e testes, apenas atuando no vácuo de sua ausência enquanto entes. Portanto, digam o que disserem os retóricos inflamados das nobres virtudes dos profissionais de recursos humanos, o fato empírico é que para quem está do outro lado da mesa (ou do balcão, depende!) delimitando um perfil e/ou terceirizando a sala de entrevistas, não se preocupa em saber se ela está se tornando um espaço alienígena, cuja extensão é o ambiente da própria empresa. Hoje não mais se contrata: adquire-se um perfil. Uma vez realizado o conteúdo do capital humano ele deve ser dispensável até – no máximo – os quarenta anos, quando se esgota a relação ganho e cristalizam-se perigosamente as zonas de conforto. O ideário informa que se não adquiriu uma diretoria até este deadline é porque já deu tudo o que tinha que dar. A premissa é a estratificação funcional e a orientação é recursiva: prazo de validade humana. Mas há uma reação! Alguém pode vir, com razão, me dizer: aqui respeitamos talentos! Pode ser que em alguns casos seja assim, mas não é a regra! Embora todo um discurso “cidadão” e transpessoal seja norma culta, quase onipresente nos departamentos...Até certo ponto.
Mas, indefectivelmente todos sempre recuam frente aos financistas e suas planilhas de custos. Ao menor perigo de ameaça às taxas de rentabilidade, ao vade mecum da liquidez imediata, sente-se a mão pesada das organizações (ou de indivíduos): punições, descréditos e exílios. Políticos fogem do assunto enquanto profissionais calam-se para não ser demitidos. Assim, o remédio é voltar-se a congressos de classe, congratulações por corte de despesas (e de pessoal), místicas, esoterismos, sistemáticas e tabulações. Vez em quando, fretam um navio para shows da mágica do team building (teria mais resultado aumentar benefícios e melhorar processos, mas enfim, aí perde a graça).
No final, terminam mesmo por dizer que assim são as coisas e, então, chamam a rotina de “processo”, sublocando as delimitações e indicando tendências. E com isso, ao invés de desenvolver soluções, acabam por formatar na realidade das organizações uma geografia competitiva. Terra média desconhecida e cuja situação a quem nela se inscreve, fornece mais motivos de ansiedade e de insegurança, do que propriamente um “desafio”, tornando-se, portanto, cada etapa numa arena onde se deverá travar um combate mortal e sangrentamente assertivo. Já sabemos que é difícil haver happy end: A vida é dura e a culpa é sempre do piloto, nunca do sistema ou construtor da aeronave.
Eis o verdadeiro credo econômico da “ciência exata e positiva” da estratégia administrativa organizacional - porque ela tem papel dominante nas instâncias de avaliação, sejam quais forem os objetivos - ou no mínimo dando vazão a psicopatologias institucionais. Gerir pessoas deveria pressupor algo mais do que a aridez dos perfis e denominações como “capital humano”, metáfora algo infeliz que se aproxima perigosamente do modus operandi, daqueles cujo único valor é o lucro e cuja maior preocupação é aumentar a extração, produção, conquistar mercados e baixar os custos, seja a que custo legal, ético, social ou ecológico que for. Qual o ganho de escala que sustenta estas modalidades? Senão, vejamos: o que realmente é o escopo das doutrinas que analisamos?
Uma teoria pode ser desenvolvida através de sérias pesquisas e estudos, mas isto não significa que sua adequação prática seja orientada conforme uma prioridade que permita elevar o espírito. Vivemos o segundo milênio da civilização ocidental, numa sociedade que está estruturada dentro de infinitas séries de relações entre microcosmo e macrocosmo. Temos de um lado as micro relações afetivas, sociais e culturais que são estabelecidas pela vida cotidiana dos indivíduos e, de outro os aparatos do Estado, dos mercados, das instituições e suas interações globais. Até aí, tudo bem: trata-se apenas de ver as coisas como estão, como nos aparecem. O problema é que todo este complexo mecanismo move-se, orientado por uma lógica de produção, poder e acumulação privada, onde os indivíduos podem ser comparados a meros – e substituíveis – componentes de desgaste. E isto é chancelado pelos formadores de práticas e opiniões. Ora! Não há abalo, quando as coisas se passam conforme o previsto. O turn over deixa, então, de ser problema, quando faz parte da estratégia!
Em nosso mundo atual e nas relações que regulam o mercado, a pessoa empregada é um motor de desempenho e subserviência a modelos diversos. Quando desempregada é um ser invisível que luta para não perder sua identidade, integridade e auto-estima. Hoje não se pode mais estar fora das relações de produção, sob pena de perder o direito à própria existência. Nos fios, teias e redes do poder se perde o homem que não se encontra alojado nos cubículos de uma posição laboral. Não dá mais para ir a outra província oferecer seus préstimos a um novo senhor, que lhe permita usar suas terras para tirar seu sustento. Muito menos pode almejar a vida autárquica ou qualquer ataraxia.
Tudo se passa em uma tridimensionalidade escalar vista como queda: O profissional que desaba em desempregado perde mais que o emprego, perde uma máscara vital de trágica essencialidade trans-histórica e, por definição alguns traços de sua individualidade. Do profissional ao desempregado e daí ao candidato, opera-se esta descaracterização, esta “morte do sujeito”, agora capital humano, passa a ser validado e analisado por padrões utilitários e competênciais visando exclusivamente o preenchimento de um dado perfil ou modelo estratégico, cuja mudança e volatilidade são vertiginosas. Eis a redução ao absurdo. Sabedores desta fraqueza contemporânea, os lobos atuam instintivamente. Já os pastores dormem ou agitam-se em busca de ROI.
Como já dito, a mecanização dos processos industriais, a absurda maximização do retorno, a tecnologia e as bases econômicas que envolvem nossa civilização determinam o que se entende por emprego e excluem da sociedade quem não tem acesso ao trabalho. Fora do mercado parece não haver condição de sobrevivência e, dentro dele sofre-se, impotente, o jugo de todas as patologias sociais. Como consultor experimentado, posso perguntar sobre o tempo de sobrevida deste modelo administrativo suicida, do “mais por menos”, onde o que importa é “ganhar mercado” e maiores margens com menores custos, não importando as conseqüências: Império do princípio de prazer.
Modelo que exige competências e mais metacompetências e mais hipercompetências, pagando pouco e descartando após o uso. Até quando esta sincronia se sustenta? Como pensador me angustia a possibilidade em perspectiva de que nada será tentado até que as economias políticas de mercado entrem em colapso e, enfim, o clima terrestre esteja irremediavelmente degradado fazendo que os sonhos metafísicos de justiça e sustentabilidade se dissipem em sociedades convulsionadas. Não temos mais tempo para isso. Mas, a esperança é a derradeira observadora: se há um momento de tentarmos fazer algo é agora. Isto significa que aqueles que sabem devem agir, pois os que esperam nada podem acontecer. Mirem-se no exemplo da Ilha de Páscoa: É preciso mudar logo o morubixaba!