O BRASIL DO HOJE ETERNO
Milton Pires
Já que o bandido número um da Nação, o homem que, sem ter Foro Privilegiado algum, é mais cidadão, tem mais prerrogativas do que qualquer um dos mortais, fala constantemente em "nós" e "eles", digo, inicialmente, que vou usar deste mesmo conceito – esta mesma ideia doentia de "nós e eles" – para escrever sobre o Carnaval.
Afirmo que se eu não escrever sobre o Carnaval "eles" venceram. Eu me nego a aceitar que "eles" venceram ! Insisto que o que "eles" querem é que eu não escreva sobre o Carnaval, sobre o feriado, sobre a parada de tudo, sobre as mortes, sobre as barbaridades, sobre as maletas de Renan Calheiros, o assassinato de Teori Zavascki e o sigilo das delações da Odebrecht, sobre o FIES para uma mulher que mandou matar seus pais, ou a liberdade para um goleiro assassino miliciano que esquarteja pessoas e dá seus restos aos cães.
Querem que estas coisas não sejam mais do que "Tremendas Trivialidades", como dizia Chesterton, mas nem o próprio Chesterton acreditaria ser possível viver numa época em que falar mal do Carnaval pudesse ser considerado politicamente correto nas redes sociais – e, ainda assim, no Brasil já é !
Já é clichê falar mal do Carnaval e do Big Brother Brasil ! "Não gosta de Carnaval? Não vai ! Não gosta de BBB? É só não assistir ! Muda o disco, Dr. Milton ! Ninguém lhe aguenta mais !"
Escrevo sobre o Carnaval recorrendo ao que lembro da cadeira de Psiquiatria - ainda na graduação médica. Invoco, pois, da Psicanálise, a ideia de "mecanismo de fuga", de defesa da integridade do ego quando alguém enfrenta, do ponto de vista real, um conflito que não pode ser resolvido de forma consciente.
Faço isso como pura provocação a esta nossa esquerda analisada, estes nossos comunistas de boutique e dos cafés de Paris que aprenderam psicanálise lendo o New York Times e que adoram usar desta mesma Psicanálise (aliás com a benção de alguns dos meus queridos colegas psiquiatras e psicanalistas) para anistiar o Carnaval, para absolver os foliões.
Até aí tudo bem, tudo muito bonito se estivesse eu a tratar de um paciente. Nações, países e sociedades não tem "ego" e, se algum dia um ego nelas puder ser identificado, não há de ser no Brasil. O Brasil não tem "ego" e nem "integridade". Como poderia ter uma "integridade do ego" para ser defendida através de um mecanismo de fuga chamado Carnaval??
Meu país é, digo eu, do ponto de vista da Psiquiatria e da Psicanálise, um lugar que mais bem se definiria por uma estrutura composta de "ego, id e superid". Cabe ao leitor (que não conheça) procurar os conceitos originais para entender a ironia.
Certo é que, de hoje até quinta feira da semana que vem, a Nação há de mergulhar (como faz todo ano) num espetáculo patético, em algo planejado para despertar nos documentaristas britânicos, nos historiadores da Nat Geo e do Discovery, aquela sensação de visitar tribos isoladas das ilhas do Pacífico ou sociedades primitivas da Ásia Central.
Milhões de pessoas param. Vão parar porque vão participar (e as que não vão participar hão de assistir, e as que não vão assistir hão de se recolher) de um espetáculo deprimente de orgiais, bebedeiras, assassinatos, acidentes e baixarias, roubos e sexo explícito de todos os tipos possíveis e imagináveis.
Algo que não encontra precedentes na História nem em Roma nem nas Ilhas do Pacífico e que os tais documentaristas britânicos gostam de descrever e apresentar ao Mundo – é o "superid" da Nação, de toda Sociedade Brasileira, que aflora esmagando o ego, o superego, o infraego, o alterego e até o lego de qualquer um ou qualquer coisa que se coloque no caminho da obrigação de ser feliz, de esquecer tudo, de mandar família, contas, filhos, problemas, dívidas, doenças e compromissos para o inferno...para este mesmo inferno sem PM, sem médico, sem professor, sem coisa alguma além da obrigação de votar e de jamais ter uma arma de fogo que "eles" impõem contra nós.
"Eles", como diz o Grande Cachaceiro, o Timoneiro do Atraso, o Analfabeto, o apologista da ignorância, da preguiça, da obscenidade, da falta de pudor e da má-fé, que continua em liberdade debochando da Justiça ...Este Anticristo da cultura, de tudo que possa haver de elevado, de preservado ou de nobre e que já não mais existe, que já não reprime mais nada nem se faz mais presente em ego ou superego algum e que, portanto, não demanda mais esquecimento nem mecanismo de defesa.
É mentira afirmar que a vida inteligente no Brasil cessa durante do Carnaval – não há mais vida inteligente no Brasil ! É mentira afirmar que o Carnaval é uma catarse, uma festa para esquecer – o Brasil não tem memória ! Não lembra, nem quer lembrar, de coisa alguma.
Não há ontem nem amanhã: só há hoje no Brasil – um Hoje Eterno...e hoje é Carnaval.
Para Rose Ribas e à memória de um gigante:
Mário Ferreira dos Santos. (1907-1968)