Perfídia
Prólogo: ele era assim. Passava horas falando sozinho diante de uma superfície espelhada. Algo em sua mente deturpada, pelo sofrimento da vida miserável que tivera na infância, transformara-o em um monstro de suprema rutilância aos seus olhos. No entanto, às vezes, a crudelíssima realidade mostrava-o sem rútilo, doido e desnudo.
Observação: neste texto o leitor deverá, em nome do bom siso, separar a ficção da realidade. Quaisquer semelhanças com pessoas vivas ou falecidas (desencarnadas) terá sido mera coincidência. Trata-se da conversa de um desvairado com seu reflexo ebúrneo.
Ele se olhou no espelho amplo e disse para si mesmo: Sou pérfido! Sim. Por que não? Sou desleal, falto com a fé jurada; sou “galinha”, embora prefira o termo “galinho”; sou traidor, infiel.
Quando me encontro na alcova, com a morena dos cabelos cacheados, sobrancelhas bem-feitas, lábios carmins, carnudos, tez acetinada e com cheiro de sabonete... sou leal, exclusivo, sincero; proporciono prazer, abandono-me à devassidão e aos devaneios com que me presenteou a sublimidade celestial.
Não sou hipócrita! Nunca quis e tampouco exigi exclusividade sexual. Sou anarquista? Não! Todavia, faço questão de uma composição de interesses sem lindes, medo ou receio de culpas, cobranças ou reciprocidades lembradas, descabidas, e demonstrações de exacerbado sentimento de posse na representação do mais acentuado desconsenso e desequilíbrio pessoal.
Apesar de não ser traiçoeiro sou pérfido. Claro que isso não é um contra-senso! Sou bandido! Minto à fé jurada, embora não goste disso, por saber que as mulheres preferem uma bem urdida mentira a uma verdade escabrosa, vil, mas necessária na medida em possa manter uma satisfação unilateral enganosa, a integridade do amor fraterno fingido, a falsidade inter-relacionada, o relacionamento afetivo sem nexo, a harmonia familiar forçada.
É uma pena, mas nós humanos preferimos às maiores e maravilhosas mentiras em nossas vidas, desde que nos proporcione prazer e/ou segurança em nossas desregradas e fatídicas existências as maiores tolices em momentos insanos.
A arte de ser pérfido não se encontra na canalhice, pois creio que disso ninguém deve se ufanar, nem mesmo eu que sou um alienado, mas na capacidade de saber manter a hegemonia do lar, complementando os anseios de cada um dos esponsais, sem se desvirtuar dos ensinamentos dos mais antigos: isto é, deve-se, a qualquer custo, enaltecer o sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem. Eu desejo isso?
Observem que eu pensei e escrevi “... desejar o bem de outrem”. Não entendo que haja a obrigação de trabalhar e se sacrificar por essa satisfação alheia. O verdadeiramente pérfido cuida apenas de si mesmo sem a piegas manifestação de proporcionar felicidade ou prazer gracioso.
Há quem diga que o pérfido é um egoísta, uma imitação barata. Não creio nesse errôneo entendimento porque entendo que o falso é aquilo ou aquele que é feito à semelhança ou imitação do verdadeiro. Por conseguinte, torna-se igual!