A descoberta da Razão
 
  Ao descrever ou desenhar, especialmente quando a escrita apresentou certa organização, o homem descobriu a existência de uma distância
entre seu ser e a realidade dela diversa.
   Esta distancia é que tornou possível o exercício progressivo do pensamento abstrato e a constituição daquilo que hoje denominamos conhecimento científico e filosófico.  
    Pelo distanciamento em face da realidade e pela representação mental da mesma, o homem simultaneamente se afirma e se reconhece como ser autônomo, bem como percebe que a realidade circundante é algo distinto dele.
   O homem grego foi o primeiro a colocar para si a pergunta acerca da realidade, procurando discernir e perceber os que as coisas são daquilo que não são. Esta atitude supunha serem as coisas algo inteligível, isto é, que podem ser penetradas por nossa inteligência. Tal discernimento requer controle e método.
  Ao conhecer-se sujeito e dar-se a realidade como objeto do seu conhecimento, o homem estava sob a ação da razão teorética, ou seja, na divisão moderna da filosófia em filosofia teorica e prática. O homem atingia assim uma forma mais elaborada de conhecimento, através do domínio da razão.
    O progresso espiritual do homem consiste em dar-se conta de que ele é o animal que mais dificilmente alcança a perfeição e a felicidade.
    O homem meditativo, em contínuo contato com os métodos e resultado da ciência e da filosofia descobre cada dia os abismos do próprio não saber, cada dia verifica de modo mais consciente a acrescida distância que existe entre ele a idía de perfeição. As formas inferiores de vida atingem rapidamente sua finalidade real ou aparente e são por isso mais estável. Uma folha ou um animal são aquilo que devem ser, são "perfeitos" no sentido de que não existe distância entre o que são e o que podem ou devem ser. Só o homem tem o privilégio da imperfeição, só o homem coloca o problema de ser diverso daquilo que é, e se arrisca a não atingir nenhuma de suas metas. Concebendo-se o luxo da moralidade tendendo sempre para o alto, vive no mais perigoso dos meios. E é o animal que mais facilmente falha a si mesmo, isto é, mais corruptível.
   Sócrates foi um dos primeiros homens verdadeiramente moderno porque colocou o ideal da vida em uma contínua e infatígável busca. Sócrates, como a maioria dos nossos contemporâneos, viveu numa presunsosa ignorância, convencido de saber aquilo que não sabe ignorando os próprios limites.
    A característica do homem conformista e dogmático, o exemplar humano mais difundido, é uma espécie de suficiênia intelectual e moral que lhe cria a ilusão de viver em um mundo sólido e compacto, não conspuscável pela crítica e pelo pensamento. Em geral detesta as dúvidas e as crises da inteligência, coloca-se em atitude polêmica contra os representantea da ciência e da cultura, que procuram aquilo que ainda não sabem e se proclamam plenamente satisfeitos com o que já sabem ou acreditam saber. Enquanto que o homo sapiens verdadeiramente dígno desse nome é aquele que deseja conhecer seus próprios limites, a parcialidade de seu próprio ser e de seu próprio saber, o pitercantropo que usurpa o belo significativo do "homo sapiens" não deseja viver seu patrimônio intelectual e moral, satisfeito com o que é e com o mundo em que vive.
   Compreender significa contemplar a realidade e dizer o que ela é em discurso coerente: ser teoria e logo são os conceitos fundamentais da razão teorética graga e presidirão a constituição daquilo tudo que denominamos "cultura ocidental".

                                Roberto Gonçalves
                                       Filósofo
 
 

1) HEIDEGGER, Martin, "El Ser e el Tiempo", FCE, 1951
2) ORTEGA E GASSET, José, "Clássicos Castelia, Madri, 1958