O Retorno do Contratador a Lisboa e a Separação de Chica

DESENTENDIMENTOS E EXPECTATIVAS COM RELAÇÃO AO PAI

Os negócios do pai entrelaçaram-se permanentemente com os do filho. A intimidade com os poderosos do reino era vital para o êxito dos interesses financeiros dos contratadores. Assim, o velho tratou de estabelecer relações importantes, como a que mantinha com Sebastião José de Carvalho e Melo, marquês de Pombal.

Em contrapartida, o desembargador enviava todo ano os abundantes rendimentos proporcionados pela exploração diamantina, com os quais o sargento-mor vivia como nobre no Reino. Entretanto, pai e filho se desentenderam por causa dos saques que o sargento-mor fazia nos cofres do contrato, para manter o elevado padrão de vida, que o pai e a madrasta Isabel, gozavam em Lisboa.

O desentendimento chegou ao ponto de ser necessárias ações do filho para obter autorização do rei, Dom José I, para que as quantias retiradas pelo pai fossem limitadas e dependessem da aprovação de caixas responsáveis em Lisboa.

Nos últimos anos, o desembargador contribuíra de modo significativo para o enriquecimento do sargento-mor e entendia sua herança como recompensa pelo êxito nos contratos diamantinos que, inicialmente, administrara e dos quais, mais tarde, participara como sócio, entre 1753 e 1770.

OS MOTIVOS DA SEPARAÇÃO DE CHICA E DO RETORNO A LISBOA

Por volta de outubro de 1770, chega ao Rio frota, que trouxe a notícia da morte do pai, João Fernandes de Oliveira, em 8 de setembro.

O sargento-mor passara seu último mês de vida preso ao leito, depois de ter sofrido ataque que o deixou praticamente paralisado o lado esquerdo do corpo.

Poucos dias antes da morte do velho contratador, Isabel Pires Monteiro, sua segunda esposa, o induziu a alterar o testamento, de modo a conceder a ela o direito à metade de seus bens. Essa alteração alterava em muito o valor acordado e avaliado no pacto pré-nupcial.

A morte do pai e suas, mais do que razoáveis preocupações com a manutenção do patrimônio foram os motivos que o forçaram a deixar o arraial do Tejuco, delegar a gestão do contrato e separar-se da mulher de sua vida, dona Francisca da Silva de Oliveira.

Sem demora, João Fernandes tratou de organizar os negócios de sua casa, para que pudesse viajar.

PROVIDÊNCIAS NECESSÁRIAS E A PARTIDA

O Contratador pressentia e temia que a estada que o aguardava em Lisboa, mais do que longa, poderia impedi-lo de voltar. Então, as despedidas sofrem a emoção da separação. Deixa Chica com o filho caçula, José, prestes a nascer, ou já no colo de Chica, e parte do Tejuco em direção à Vila Rica.

Em 28 de setembro, na comarca de Vila Rica, concluindo os preparativos legais para a viagem ao Reino, na presença do tabelião, o desembargador registrou seu testamento. Dispôs seus bens entre os treze filhos naturais que tivera com Chica. Nessa mesma ocasião, designou o sargento-mor Manuel Batista Landim como tutor dos menores.

Ao designarem tutor para seus filhos, Chica da Silva e João Fernandes procuraram comportar-se como se fossem legalmente casados, mais uma vez imitando os hábitos da elite.

De Vila Rica, o desembargador dirigiu-se o mais rápido que pode para o Rio de Janeiro, cruzando a serra do Mar. Em 24 de dezembro, a nau de guerra Nossa Senhora de Belém, deixou o porto levando o ansioso desembargador.

Como era costume, o desembargador João Fernandes de Oliveira embarcou para o Reino acompanhado de seus escravos pessoais e já sentindo no peito as emoções da separação. Deixou para trás os filhos, sua amada e as pedras do Tejuco, para sempre.

Assim que chegou a Lisboa, instalou-se confortavelmente na casa da Lapa que seu pai construíra e com aproximadamente vinte empregados, entre trabalhadores livres e escravos.

Quando o Contratador chegou ao Reino, o ministro Sebastião José de Carvalho e Melo atingia o auge do poder. Em 1769, o rei lhe conferira o título de marquês do Pombal. O ambiente lhe era favorável, para as disputas que iria enfrentar.

DISPUTAS PELO PATRIMÔNIO DO PAI

POMBAL INLUENCIA A FAVOR DO CONTRATADOR

Os procuradores do desembargador na Corte entraram com uma petição para que todas as cobranças contra a casa do sargento-mor fossem suspensas até sua chegada. Petição atendida em decreto promulgado pelo rei. O privilégio, inicialmente concedido pelo período de três anos foi renovado em 1772 e em 1775.

A defesa da madrasta era consistente o que obrigou que João Fernandes permanecesse em Lisboa e atuasse para que o desembargador Fernando José da Cunha Pereira, que fazia parte do círculo de amizade do marquês do Pombal, fosse indicado como juiz do inventário dos bens do sargento-mor.

O Contratador de Diamantes percebeu que a disputa tinha riscos e passou assim que chegou ao Reino, a adquirir imóveis. Sua primeira aquisição foi a Quinta do Grijó, sequestradas dos monges agostinianos pelo Estado.

Nas disputas com a viúva Isabel Pires Monteiro, Pombal claramente protegeu o Contratador de Diamantes, ao favorecê-lo em seus interesses nos decretos reais.

Nessa fase, em todos os lances da disputa, o marquês de Pombal detratava o antigo amigo e aliado, o sargento-mor, em nome dos interesses familiares representados pelo filho. Não passava de artifício para reforçar o argumento do desembargador de que seu pai estava inapto ao tomar a decisão de alterar o testamento.

A despeito das evidências de o sargento-mor encontrar-se em sã consciência nos dias anteriores a sua morte, em janeiro de 1773, a sentença do Tribunal da Relação, invocando a Lei da Boa Razão, foi favorável a João Fernandes, determinando que a madrasta, Isabel não fosse meeira nos bens do marido, devendo só ser inteirada de seu dote.

Assim que tomou conhecimento da sentença, Isabel Pires Monteiro refugiou-se na casa do neto Luís de Sousa. Dois meses mais tarde, a madrasta entrou com pedido de embargo sobre a sentença e João Fernandes se viu mais uma vez preso ao Reino, enredado nas teias de novo processo.

O Contratador de Diamantes descobriu seu esconderijo e, novamente, recorreu aos préstimos de Pombal, bem como conseguiu despacho para trancafiá-la no recolhimento de Nossa Senhora dos Poderes da Vialonga, próximo a Lisboa. Foi recolhida à clausura sem nada mais de seu, apenas a escrava para lhe servir e a promessa de que João Fernandes lhe mandaria mesada.

Por temer perder o processo, João Fernandes conseguiu, novamente com o apoio de Pombal, intervir na nomeação do desembargador responsável pela decisão em segunda instância. Em 1774, José Luís França foi designado novo ministro para o inventário dos bens de seu pai.

A INSTITUIÇÃO DO MORGADO COMO ALTERNATIVA

A INSTITUIÇÃO DO MORGADO

O morgado consistia em compromisso assumido entre o instituidor e o rei. Tratava-se de pagamento aos bons serviços prestados ao rei pelos antecessores, pelos quais mereceram ser honrados e acrescentados.

O morgadio assentava-se no domínio de bens fundiários, que passavam a ser regulamentados e vinculados, pois a terra era fonte de rendimento e de prestígio social. Para estabelecer sua casa na forma de um morgado, os homens de negócio, como era o caso do Contratador dos Diamantes, eram obrigados a imobilizar parte significativa do patrimônio acumulado em bens de raiz.

A característica estruturante do morgado era a linhagem. Não se tratava somente de regulamentar o destino e a administração dos bens terrenos: ao perenizar os feitos dos antepassados, criava uma cadeia de compromissos entre as gerações e impunha série de condutas aos sucessores. A estrita obediência a essas normas era o fator que condicionava a manutenção da posse dos bens e a chefia do clã.

O MORGADO DE GRIJÓ

No ano de 1775, o desembargador caiu doente, com moléstia perigosa. Temeroso de ver seus bens dissipados resolveu dar novo destino ao patrimônio da família e imortalizar o poder que detinha, por meio da constituição de um morgado. Dessa forma, poderia dar continuidade ao processo de ascensão e reconhecimento social dos Fernandes de Oliveira, iniciado pelo sargento-mor e tentar apagar a origem desonrosa dos filhos que tivera com Chica.

Assim, seu nome e seus feitos seriam imortalizados nos sucessores varões, sob a aprovação da Coroa. Com o morgado criava-se um vínculo entre seus bens, que não podiam ser divididos ou alienados, e que, com a morte do possuidor, eram transmitidos para o filho primogênito.

Uma das propriedades que comprara, logo depois de chegar a Lisboa, foi escolhida como sede do morgado, chamado então de morgado de Grijó, título adotado pelos descendentes masculinos do desembargador como sobrenome.

Pela escritura, João Fernandes de Oliveira instituía, ordenava e fazia morgado perpétuo, ordinário e regular, de todos os bens de raiz, móveis e de outra qualquer espécie, que constituíam seu vasto patrimônio construído por ele e por seu pai como contratadores de diamantes.

Instituiu como sucessor filho ou filha legítimo, que porventura viesse a ter. Caso não os tivesse, o herdeiro imediato seria o filho mais velho, natural, João Fernandes de Oliveira Grijó, legitimado com o consentimento de dom José I, e, na sequencia, os filhos legítimos deste.

Embora os demais filhos naturais não tenham se tornado herdeiros do morgado, o desembargador destinou-lhes um terço de todos os rendimentos para dividirem entre si. Exceção feita a José Agostinho, a quem reservou verba anual de quatrocentos réis, para servir como pároco na capela do mosteiro do Grijó.

As cinco irmãs, ainda vivas e encerradas no convento Monchique, no Porto, o desembargador legou 30 mil réis por ano.

Instituída sua vontade, imortalizado seu nome, o desembargador passou os últimos anos de vida organizando os negócios de sua casa, tentando receber a herança de seu pai e preparando os filhos para a sucessão. Padecia de moléstia fatal e a morte se avizinhava.

REVIRAVOLTA NAS DISPUTAS PELO PATRIMÔNIO DO PAI

Em 1777 morre dom José I, e depois de curto intervalo de reinado de sua filha ascende dona Maria I, que impôs transformações inquietantes ao Reino.

Com dona Maria I, a política do Reino sofreu inversões, conhecidas como “viradeira”, e os protegidos de Pombal se viram ameaçados.

João Fernandes viu sua sorte mudar em 1778, quando Isabel Pires Monteiro, a viúva do pai, conseguiu enviar petição à rainha. Afirmou viver trancafiada no recolhimento pelos desmandos de Pombal, na dependência da caridade das freiras, pois o desembargador não honrara os pagamentos das mesadas.

A petição era resultado das investidas da madrasta em busca de sua parte na herança do marido. Aproveitando-se da oscilação política, da prisão de Pombal e da perseguição aos seus amigos aliados, Isabel conseguiu sensibilizar a rainha e iniciar novas demandas judiciais pela partilha dos bens do sargento-mor.

Com a ascensão de dona Maria I, os herdeiros do antes poderoso Contratador sofreram vários reveses. Em 1780, atendendo às súplicas dos monges agostinianos, a rainha ordenou que se restituísse a Congregação dos Cônegos Regrantes de Santo Agostinho o mosteiro de Salvador Grijó e que o sucessor de João Fernandes fosse restituído, pelo valor pago pela compra realizada, 36 contos de réis.

MORTE DO DESEMBADOR E CONTRATADOR DE DIAMANTES

Em 21 de dezembro de 1779, muito doente, João Fernandes faleceu em sua casa no sítio de Buenos Aires. Decerto seu estádio se agravara pelos dissabores da era mariana e pelas perseguições aos partidários de Pombal.

Provavelmente, deve ter morrido com o sentimento de ter feito o melhor possível para prover a família do melhor em termos materiais, educar os filhos para que continuassem ascender socialmente, com gratidão às pedras de minas e com imensa saudade de sua amada dona Francisca da Silva de Oliveira.

Além disso, com espécie de tranquilidade quanto à benevolência do julgamento que o esperava nos tribunais divinos, devido às caridades que praticara, bem como sua generosidade com as irmandades em seu testamento.

Vários anos depois, em 1795, a Irmandade do Santíssimo Sacramento do Tejuco ainda celebrava quatro missas em intenção de sua alma, a pedido da mesa diretora, como pagamento pelos serviços prestados à entidade.

AS DISPPUTAS CONTINUAM

Com a morte do desembargador João Fernandes de Oliveira, sua herança foi anexada ao processo de disputa dos bens do sargento-mor e os dois passaram a correr juntos. O herdeiro Grijó, nomeado administrador da herança do pai e do avô, entrou na posse dos bens.

A morte do desembargador e o fim da era pombalina, com as mudanças decorrentes na Corte, deram forças a Isabel Pires Monteiro, que continuou a litigar e não mediu esforços para que o processo de disputa da herança do sargento-mor chegasse a termo.

Por ordem de dona Maria I, Isabel deixou o convento e mudou-se para Lisboa. Ainda corria, em segunda instância, sua apelação, e a divulgação da sentença se delongava devido ao poder do Contratador e a morosidade da justiça. Do outro lado, dando continuidade à política do pai, Grijó protelava ao máximo a decisão.

Cinco anos depois, após várias apelações, o testamento permanecia inconcluso, pois o primogênito de João Fernandes impetrava recursos que impediam a finalização das contas e o encerramento do processo.

O jogo de forças entre os dois contendores começou a se definir com a morte de Isabel, por apoplexia, em 12 de novembro de 1778. Enquanto foi possível, Grijó adiou qualquer decisão, aproveitando-se de ser o administrador do espólio do pai e do avô, e, de fato, mas não de direito, se encontrava no usufruto dos bens.

Em 1793, as investidas da filha de Isabel, Caetana Maria Brandão, que pedia a conclusão do inventário da mãe, fizeram com que João Fernandes Grijó requeresse a finalização da disputa em torno da herança do avô. A rainha ordenou que o processo fosse finalmente concluído. A sentença foi favorável a Grijó, e teve início a meação dos bens entre os herdeiros do desembargador.

Insatisfeito com a perda do patrimônio que o pai destinara à caridade, o principal herdeiro, João Fernandes de Oliveira Grijó, recorreu à Casa de Suplicação para impugnar o último testamento do pai. Seu ato escandalizou o padre testamenteiro do falecido e encarregado de concretizar suas deliberações finais, justamente aquelas que serviam à remissão dos pecados e à bem-aventurança dos pobres.

As disputas pela herança azedaram as relações entre os descendentes que viviam no Tejuco e o filho mais velho. Separados pelo Atlântico, os filhos de Chica da Silva e do poderoso Contratador começavam a travar longa batalha pelo espólio de seu pai.

OBSERVAÇÕES FINAIS

Durante curta, mas intensa vida a dois, Chica e o Contratador de Diamantes procuraram oferecer aos filhos a melhor inserção social. Os rapazes foram para o Reino se encontrar com o pai, que ali tentou prepará-los para sucedê-lo. Chica se preocupou principalmente da educação das meninas, que ficaram sob sua responsabilidade no Tejuco.

Além disso, disposto a introduzir seus varões na Corte, o desembargador sabia que era necessário esconder suas origens, consideradas ilegítimas e indignas pelos contemporâneos. Omitir a existência de Chica em seus legados não era sinal de esquecimento ou ingratidão: ao buscar dignificar os filhos perante a sociedade elitista do Reino, João Fernandes estava, mesmo à distância, cuidando indiretamente de Chica, a quem deixara no Tejuco patrimônio considerável.

No morgado de Grijó, o desembargador conseguiu que dom José I legitimasse todos os seus filhos.

Além dessas preocupações, percebe-se que o Contratador de Diamantes foi incansável na construção e ampliação de seu patrimônio, chegando ao ponto de abandonar o Tejuco, seus filhos e sua amada para impedir a perda de parte considerável do patrimônio deixado pelo pai.

E a natureza humana continua implacável nas disputas que dizem respeito a bens patrimoniais. As heranças continuam servindo para grandes desavenças entre herdeiros...

FONTES

Livro - “Chica da Silva e o Contratador de Diamantes” de Júnia Ferreira Furtado

Sites:

pt.wikipedia.org; e

iict.pt

J Coelho
Enviado por J Coelho em 16/10/2016
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