Cenário da Vida de Chica da Silva
INTRODUÇÃO
O trabalho “Mestiçagem em Preto e Branco” exigia o registro de casal que simbolizasse essa força, que impulsionou diversas etnias a cruzarem aqui seus destinos, para colorir o planeta com a festa da diversidade promovida pela miscigenação.
Assim como o casal Paraguaçu e Caramuru desempenhou esse papel no trabalho “Matriz Brasil”, elegemos Chica da Silva e o Contratador de diamantes como o casal para o trabalho de 2014/15.
Ficaria muito extenso esse registro em único artigo. Assim, a solução foi dividi-lo em outros três: o primeiro, “Cenário da Vida de Chica da Silva” seria destinado a discorrer em que momento de nossa história e quais eram os padrões e costumes daquele momento em que viveu Chica; o segundo “Chica da Silva” com o objetivo de esboçar um perfil de Chica e de seu viver; e o terceiro “O Contratador de Diamantes” que teria os mesmos objetivos do artigo para “Chica da Silva”, agora, para João Fernandes de Oliveira, o contratador de diamantes.
Importante esclarecer que em nossas pesquisas tivemos a sorte de encontrar o livro de Júnia Ferreira Furtado “Chica da Silva e o Contratador de Diamantes”. Por ter sido a fonte mais convincente sobre a vida de Chica que pesquisamos, confessamos que a grande maioria das informações organizadas nos artigos referentes à Chica e ao Contratador foi extraída dessa excelente obra.
Nesse artigo, pretendemos esclarecer sobre os diversos fatores que influenciavam a vida do arraial do Tejuco, palco da vida de Chica da Silva ocorrida no século XVIII, e em pleno período colonial. Iniciaremos com a organização administrativa da Colônia que, de fato, revela as preocupações da Coroa com sua situação econômica pouco anterior aquele momento, bem como a estratégia de poder para administrar a Colônia.
O momento histórico de referência é período que abrange os das vidas de Chica e João Fernandes de Oliveira, o Contratador de diamantes.
ORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DA COLÔNIA
Breve Histórico
SÉCULO XVII
A partir de meados do século XVII ocorreu um lento e gradual processo de mudanças, tanto na vida econômica e social, como na política e administrativa da Colônia.
O término de sessenta anos de dominação espanhola firmara em Portugal dificuldades econômicas e financeiras. Praticamente, ruiu o seu império no oriente e esvaziou-se o comércio asiático. Fato semelhante também ocorrera em certos entrepostos da África.
Completava esse quadro de extremas dificuldades acentuada queda nos preços do açúcar, no qual Portugal tinha, com a exportação desse produto, uma de suas principais fontes de renda.
Assim, tornou-se o Brasil a principal colônia. Era necessário explorá-la intensamente com expectativa de se obter os recursos necessários para contornar a crise, em que Portugal se encontrava. Isso sugeria presença mais efetiva da Coroa no seu território colonial, com fiscalização e controle das atividades mais rigorosas.
Em fins do século XVII, com a descoberta do ouro, essa política foi intensificada.
A mineração foi encarada como a grande alternativa, para retirar a economia metropolitana da grave e prolongada crise. A importância que a atividade mineradora representou, explica o rigoroso controle, a rígida fiscalização, e a elevada tributação que recaía sobre essa atividade.
O controle dos produtos da extração passou a ser realizado no próprio processo produtivo. A intenção desse controle era evitar o contrabando e garantir a arrecadação.
Em 1702, foi implantado o “Regimento para as minas de ouro”, que foi mantido por todo o período colonial. Em cada capitania que descobrisse ouro seria criada uma “Intendência” para disciplinar, controlar, tributar a produção de ouro. O Intendente era nomeado diretamente pela Coroa e ficava exclusivamente submetido a ela e totalmente independente dos governadores das capitanias.
Controle semelhante foi estabelecido também para os diamantes. Esse controle foi concretizado na instituição do Distrito Diamantino em Minas Gerais. Seu intendente também nomeado diretamente pela Coroa, só a ela submetido e com plenos poderes dentro desse Distrito.
O Distrito Diamantino acabou por se constituir numa unidade administrativa completamente independente dentro da Capitania de Minas Gerais e do próprio território colonial.
Essas transformações econômicas foram acompanhadas de nova política administrativa na Colônia, orientada para um sistema fortemente centralizador que facilitasse a execução da política econômica e, também, se opusesse a autoridade e autonomia locais vigentes e fortalecesse a autoridade da Coroa na Colônia.
Essa centralização deslocou o poder dos senhores rural, exercido através das Câmaras Municipais, para os representantes do poder metropolitano, principalmente os Governadores das Capitanias.
Dentro da nova política administrativa, ocorreu a possibilidade das “capitanias particulares” dos donatários, serem extintas, agregadas ou substituídas por outro tipo denominado “capitanias da Coroa”.
Nesse processo de mudança radical, o governo poderia readquirir os direitos hereditários dos antigos donatários das “capitanias particulares”, por meio de compra, confisco, indenização, ou outro mecanismo.
As “capitanias da Coroa” eram administradas por governadores ou capitães gerais, funcionários nomeados diretamente pelo Rei.
Das dezoito capitanias particulares no século XVI, apenas onze passaram para o século seguinte. Esse processo gerou as primeiras “Capitanias da Coroa”.
Importante entender que os dois sistemas coexistiam, inclusive com a criação de novas “capitanias particulares”. De acordo com interesse da Coroa, algumas particulares, mesmo as criadas após o início desse processo, eram resgatadas para se transformarem em “Capitanias da Coroa”.
SÉCULO XVIII
Reinados Relevantes
João V – O Magnânimo (Período do Reinado - 09/12/1706 – 10/05/1742)
Herdou o país envolvido na Guerra de Sucessão Espanhola; levou a cabo a defesa dos territórios ultramarinos; reequilibrou as finanças e a economia de Portugal com a extração de ouro e diamantes no Brasil...
Maria Ana da Áustria – (10/05/1742 – 31/07/1750)
Regente durante o período de doença do marido João V - Teve influência enorme no reinado seguinte, pois foi quem aproximou Sebastião José de Carvalho e Melo (futuro Marquês de Pombal) das esferas de poder...
José I – O Reformador (31/07/1750 – 29/11/1776)
Cercou-se de secretários de estado defensores do poder estatal; demasiadamente influenciado por Sebastião José de Carvalho e Melo, o qual em seu reinado concentrou todos os poderes de Estado e tornou-se o nobre Marquês de Pombal; sofreu o terremoto destruidor de Lisboa em 1755; extinguiu o regime de capitanias particulares; criou o monopólio da extração de diamantes...
Maria I – A Piedosa – A Pia – A Louca – 24/02/1777 – 15/07/1799)Pois fim ao período Pombalino expulsando o Marquês do Governo; contrapondo-se ao despotismo pombalino, priorizou a administração da Justiça; promoveu intensa atividade legislativa e notável desenvolvimento econômico...
Capitanias da Coroa
A coexistência entre “capitanias particulares” e “capitanias da Coroa” continuou até o período pombalino (1750 a 1776), quando foi extinto o modelo capitania particular.
Durante o século XVIII foram criadas as capitanias da de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio grande do Sul.
No fim desse século, existiam dezesseis Capitanias da Coroa que, juntamente com a de Alagoas e a de Sergipe Del Rei, criadas após a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido, e a do Pará, mais a do Amazonas criadas em meados do século XIX, totalizaram as vinte futuras províncias do Brasil Império e os vinte futuros estados da Velha República.
Apesar de esse sistema ter enfraquecido demais a estrutura de poder de Governo-Geral, o sistema persistiu até 1808, com a transferência do Reino para o Brasil e a chegada do Rei D. João VI em 1808.
Resumo Da Organização
Nesse período que abrange as vidas de Chica e o Contratador de Diamantes, a organização administrativa da Colônia pode ser resumida em:
a) Um Governo Geral que representava o Rei na Colônia cujos poderes foram enfraquecidos com a criação das capitanias da Coroa;
b) As capitanias hereditárias que representavam a transferência do poder público para o privado, que com a tendência de fortalecimento do poder da Coroa, estavam em processo de extinção;
c) As capitanias da Coroa que representavam a retomada do poder da Coroa, geridas pelos governadores;
d) Um poder local, representado pelas câmaras municipais, correspondentes às vilas, dominadas pelos senhores rurais e que nesse período também era intenção da Coroa reduzir, de forma relevante, seus poderes;
e) A divisão do território da Colônia estava representada pelas capitanias hereditárias; capitanias da Coroa, essas divididas em comarcas que reuniam vilas e agrupamentos sociais menores, denominados arraial.
ARRAIAL DO TEJUCO E O DISTRITO DIAMANTINO
O arraial do Tejuco, ou Tijuco, proveniente do termo em Tupi para água suja ou lamacenta, foi fundado em 1713 e deu origem a cidade mineira de Diamantina.
O arraial desenvolveu-se primeiramente com a mineração do ouro, mas logo em seguida começou a receber vários exploradores que vinham atrás das notícias sobre os diamantes.
Oficialmente, os diamantes foram descobertos em 1729, mas há fortes indícios que a descoberta ocorrera na mesma época em que as primeiras jazidas de ouro teriam sido conhecidas pela Coroa Portuguesa. As pedras já teriam sua exploração iniciada desde 1720.
Com a notoriedade do envio das pedras ao Reino, o governador dom Lourenço de Almeida, que serviu por muitos anos nas Índias e conhecia muito bem a natureza das pedras e, provavelmente, estava envolvido no comércio ilegal das mesmas, se viu obrigado informar a existência dos diamantes à Coroa.
Descobertos os diamantes “oficialmente”, foi necessário organizar a exploração e a cobrança de impostos. A princípio, o intendente do ouro era o responsável pela distribuição e arrematação das lavras.
Em 1734, estabeleceu-se o Distrito Diamantino ou a Demarcação de Diamantina, quadrilátero em torno do arraial do Tejuco, que incluía arraiais e povoados como Gouveia, Milho Verde, São Gonçalo, Chapada, Rio Manso, Picada e Pé do Morro.
Também, foi criada administração específica para a Demarcação – Intendência dos Diamantes-, com sede no Arraial do Tejuco.
Nessa mesma época, a queda nos preços dos diamantes, devida ao aumento da extração e exportação de diamantes, forçou a Coroa a suspender a exploração na área. Todas as concessões de lavras foram revogadas; novas licenças foram concedidas somente para aquelas que fossem exclusivamente auríferas. Os diamantes já extraídos deveriam ser registrados e recolhidos em um cofre.
Com a estabilização dos preços no mercado, em um primeiro momento, o governo lusitano determinou que fosse promovido o arrendamento da região diamantífera para as mãos de contratadores.
Em 1739, o Governador da capitania da Coroa das Minas Gerais, Gomes Freire de Andrade foi encarregado, pelo rei, de reabrir as lavras diamantinas. Em meio à comitiva, seguia o sargento-mor João Fernandes de Oliveira, então um desconhecido negociante português, que seria o primeiro contratador, em sociedade com Francisco Ferreira da Silva.
O centro do Distrito Diamantino, era no arraial do Tejuco, onde viviam o contratador e o intendente de diamantes. Entre os anos de 1720 e 1750, à medida que os achados de diamantes se avolumaram nos rios próximos, o pequeno arraial cresceu.
Rapidamente, a população do arraial superou a população da Vila do Príncipe, cabeça da Comarca do Serro do Frio, transformando-se no principal centro comercial da região,
Nessa sociedade, houve espaço para que homens e mulheres de cor obtivessem sua alforria. Inseridos no mundo dos livres, muitos acumularam bens e se misturaram à sociedade branca e livre do arraial.
O censo de 1774 indicou que as mulheres que habitavam o Tejuco eram predominantemente de cor, e residiam sozinhas em domicílios dos quais eram chefes e únicas moradoras de condição livre. Entretanto, elas não estavam realmente sós.
As devassas episcopais realizadas no Tejuco em 1750 e em 1753 revelaram as relações pecaminosas aos olhos da Igreja Católica. É o que justifica o número elevado de filhos bastardos no interior das moradias, embora todas as forras estivessem registradas como solteiras no censo.
Assim, o arraial do Tejuco pode ser caracterizado como sociedade plural, heterogênea e múltipla, contida e regrada com dificuldade pelas autoridades.
PADRÕES E COSTUMES VIGENTES
Hierarquia Social
A sociedade do arraial do Tejuco, semelhante às outras comunidades da Colônia, tinham rígida hierarquia. O representantes da Coroa, os da Igreja Católica, os da justiça e os com maiores posses formavam o topo da pirâmide.
Naquela época, no arraial do Tejuco o Intendente dos Diamantes e o Contratador de Diamantes eram os mais importantes representantes locais da Coroa.
As maiores restrições à ascensão social eram: a condição de escravo; e a condição de não católico. Restrições bem maiores do que a cor da pele.
Existiam posturas, comportamentos e símbolos que davam certa correspondência dentro da pirâmide social: propriedades; plantel de escravos; prole numerosa e aleitamento dos filhos por escravas; relações de compadrio; participação em cerimônias públicas; atos e gestos caridosos; participação em irmandades religiosas, essas inclusive criadas já diferenciadas conforme a posição na pirâmide social.
Trabalho Escravo E Alforria
O trabalho escravo ainda era naquela ocasião a força necessária e indispensável para implantar a colônia portuguesa.
Os escravos homens ficavam, na sua grande maioria, disponíveis aos trabalhos mais pesados, principalmente os da extração de ouro e diamantes. Dificilmente tinham tempo para outra atividade.
Já, as escravas disponíveis aos trabalhos domésticos dispunham de tempo inclusive para atividades comerciais, com demanda numa sociedade, em que a riqueza era extraída dos rios e das minas.
Para os homens escravos a alforria era muito mais difícil e, algumas vezes, para os que não tinham ofício, não compensava.
A conformação econômica e social da região explica por que as negras de ganho, uma vez que tinham acesso a um pecúlio, e as escravas que viviam em concubinato com homens brancos tinham maiores chances de serem alforriadas.
Similaridades Entre Mulheres Forras
Era incomum senhor alforriar escrava logo após sua aquisição. A maioria das forras do arraial pagou por sua alforria.
Era significativo o número de mulheres forras que buscavam angariar bens, porque como concubinas não tinham acesso ao patrimônio dos homens brancos com quem viviam.
A história da região diamantina sempre esteve ligada às negras e mulatas forras que poderosas, submetiam os homens brancos a seus desejos. A fundação da Vila do Príncipe se deveu aos caprichos de uma delas.
O concubinato e o sexo com homens brancos foram determinantes no acesso à alforria. Uma vez livres diminuíam o estigma da escravidão e, até mesmo da cor, inclusive com relação aos seus descendentes.
Forras casadas salientaram em seus testamentos, que o patrimônio construído fora resultante de seu próprio trabalho. Seus maridos pouco ou nada haviam contribuído.
Várias filhas de negras forras casaram-se legalmente com homens brancos, apesar de mulatas e filhas de ex-escravas.
Entendimento Sobre Amor
Na época, o amor compreendia duas esferas, a do amor divino e a do profano. O primeiro era, acima de tudo, o que Deus nutria pelos homens, e vice-versa. Para a Igreja Católica, o amor a Deus era a forma perfeita e mais sublime que esse sentimento podia alcançar, e a castidade, o estado necessário para atingi-lo.
Existiam as formas profanas de amor, como aquele que une filhos a pais, os homens à pátria, e também os homens às mulheres.
O amor de homens a mulheres se aproximava mais da paixão. Era considerado como: “um movimento do apetite, com o qual a alma se une com o que lhe parece ter alguma bondade ou beleza”; e o “que os homens têm às mulheres e por vezes desordenado”.
O amor não era condição necessária ao casamento e dele estava totalmente dissociado, por não constituir o espaço para a realização das paixões.
Os matrimônios eram assuntos de família e visavam à construção de alianças que promovessem social e economicamente os envolvidos, levando em conta “motivos outros que os interesses pessoais dos participantes”, daí serem denominados “casamentos de razão”. Os sentimentos que deveriam unir os cônjuges eram principalmente a amizade e o respeito, principais valores do amor conjugal.
O espaço da paixão era outro, o do amor ilícito, das relações consensuais. A sedução e o adultério eram passatempo. Nas minas Gerais, com a enorme desproporção entre homens e mulheres que lá havia e com o crescente número de negras e mulatas, tanto escravas como forras, as relações licenciosas se multiplicaram, com inúmeras formas de arranjos familiares.
A tendência à estabilidade foi fator marcante de várias relações consensuais na região mineradora, muitas mais duradouras que os casamentos legais. Embora, não raro, os amantes vivessem em domicílios separados, o afeto era preservado.
CONCLUSÃO
Nosso esforço teve a pretensão de que este artigo consiga imprimir, transportar o leitor àquela época no arraial do Tejuco.
Com a leitura e viagem àqueles tempos estaríamos preparados para fazer prospecções sobre: o “diamante mestiço do Tejuco”, Francisca da Silva de Oliveira, Chica da Silva; João Fernandes de Oliveira, o Contratador de Diamantes; e a relação, improvável, mas vivida pelos dois, no centro do Distrito Diamantino, em meados do século XVIII.
Os artigos “Chica da Silva” e “O Contratador de Diamantes” serão responsáveis por essa prospecção.
FONTES:
LIVRO:
Chica da Silva e o Contratador de Diamantes – Júnia Ferreira Furtado
SITES:
lhs.unb.br;
mundoeducacao.com; e
revista.usp.br.