Breve histórico da conservação dos quelônios amazônicos no Brasil

Historicamente, muitas espécies de quelônios em diversas partes do mundo apresentam grande importância alimentar, econômica e cultural, tendo seus ovos, carne, vísceras, gordura e casco sido utilizados intensamente pelo homem (van DIJK et al., 2014). No Brasil, não foi diferente, a exploração das espécies de quelônios que ocorrem na Amazônia data do Período Colonial, tendo sido documentada em relatos de naturalistas como Alexandre Rodrigues Ferreira, Johann Baptist von Spix, Karl Friedrich Philipp von Martius, Francis de la Porte de Castelnau, Alfred Russel Wallace e Henry Walter Bates.

Esses relatos também foram feitos por diversos pesquisadores e escritores que viajaram pelo Rio Amazonas e seus afluentes, como Silva Coutinho, José Veríssimo Dias de Matos, Alípio de Miranda Ribeiro, Emílio Augusto Goeldi e Manuel Nunes Pereira, descrevendo densidades extraordinárias de ninhos e o emprego maciço de ovos para a produção comercial de óleo (VOGT, 2008). Esses relatos são, por vezes, impressionantes. No Alto Amazonas e no Madeira, até o estado do Pará, há relatos de que de 2 a 48 milhões de ovos eram utilizados anualmente para a produção de manteiga e óleo, que serviam como alimento ou combustível para iluminação pública (COUTINHO, 1868; BATES, 1892; DIAS DE MATOS, 1895). A “gordura” ou “mixira” era utilizada na produção de alimentos ou na conservação de carnes. A carne cozida ou frita da tartaruga-da-amazônia Podocnemis expansa ou de outro animal, como o peixe-boi Trichechus inunguis, podia ficar semanas, ou meses, imersa na gordura, preservada, para ser consumida.

A exploração dos quelônios, especialmente da tartaruga-da-amazônia, era intensa, o que, consequentemente, acabava envolvendo grande número de pessoas e elevada geração de divisas. Os governantes a serviço da Coroa Portuguesa adotaram, naquela época, diversas iniciativas que buscavam racionalizar o uso desses animais. Uma delas era a nomeação de um “juiz” como representante da autoridade colonial, que permanecia vigilante nas praias de desova para ninguém se aproximar de tais lugares durante a postura. Quando a postura terminava, os “fabricantes de manteiga”, acompanhados pelo “inspetor” e seus “assistentes”, faziam a captura das tartarugas matrizes. Segundo essa norma, todo o excesso de animais vivos tinha de ser restituído à liberdade e reposto no rio. Terça parte dos ninhos com ovos tinha de ser poupada para a conservação e propagação das tartarugas, e somente os dois outros terços podiam ser utilizados para a fabricação de manteiga. Porém, pouco a pouco, essas e outras medidas foram sendo desrespeitadas e assim a exploração se intensificou desordenadamente (IBDF, 1973).

A preocupação com a proteção dos quelônios amazônicos foi mais intensificada com a chegada da República. Em 1932, foi criada a Divisão de Caça e Pesca, no Ministério da Agricultura, e, em seguida, instalado o Serviço de Caça e Pesca, gerenciado pelo Ministério da Marinha. Em 1934, foi promulgado o Código de Caça e Pesca para a proteção dos recursos faunísticos e pesqueiros, que fazia restrições ao uso e captura de quelônios. O Serviço de Caça e Pesca era responsável pela proteção da fauna, inclusive de quelônios, mas, novamente, assim como as primeiras iniciativas tomadas ainda no Período Colonial, pouco efeito teve para a proteção desses animais. Em 1962, a Divisão de Caça e Pesca foi extinta e criada a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe), entidade subordinada ao Ministério da Agricultura, mudança que pouco benefi ciou os quelônios amazônicos.

O Governo Federal, para tentar reverter esse quadro, iniciou em 1964 as primeiras ações de proteção aos quelônios nos rios Trombetas (Pará), Purus (Amazonas) e Branco (Roraima) (IBAMA, 1989a). De modo geral, as ações nos rios Purus e Branco restringiam-se unicamente ao patrulhamento dessas áreas no período de desova. Somente no Rio Trombetas é que tais iniciativas tiveram continuidade por meio do apoio de pesquisadores e de outras instituições. Essas ações foram iniciadas pela Agência do Departamento de Recursos Naturais Renováveis (DRNR), do Ministério da Agricultura. Em 1967, foi criado o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) e extinto o DRNR, que passou os respectivos acervos, patrimônios e recursos financeiros ao novo instituto. A partir desse momento, as ações de proteção aos quelônios fi cariam exclusivamente a cargo do IBDF. Porém, em 1968/69, por força do Decreto-Lei nº 221, de 28 de fevereiro de 1967, que dispõe sobre a proteção e estí- mulos à pesca, os quelônios foram novamente considerados como pescado, o que forçou a transferência dos trabalhos de proteção nos rios Trombetas, Purus e Branco, novamente, à jurisdição da Sudepe. Em 1970, a Delegacia da Sudepe em Belém (PA) estava desprovida de recursos técnicos, humanos e financeiros, por isso o serviço de proteção aos quelônios retornou ao IBDF, tendo sua exploração comercial proibida (IBAMA, 1989b).

No início da década de 1970, os quelônios, em especial as espécies tartaruga-da -amazônia e o tracajá Podocnemis unifilis estavam indicados para compor a lista de animais brasileiros em processo de extinção. A primeira lista foi publicada em 1973 (Portaria IBDF nº 3.481, de 31 de maio de 1973), mas as espécies de quelônios da Amazônia não foram incluídas. Nesse mesmo ano, o IBDF apresentou no Simpósio Internacional sobre Fauna e Pesca Fluvial Lacustre Amazônica, realizado em Manaus (AM), as experiências acumuladas nos primeiros anos do trabalho de proteção dos quelônios amazônicos. Após sua apresentação, ficou definido que uma equipe composta por servidores de várias instituições e Estados, sob a coordenação do veterinário José Alfinito (IBDF), realizaria amplo levantamento das áreas de ocorrência e desova desses animais. Esse trabalho foi realizado nos dois anos seguintes e culminou com a publicação do Boletim Técnico nº 5, do IBDF, em novembro de 1978 (ALFINITO, 1978). Esse levantamento proporcionou a ampliação dos conhecimentos relacionados à distribuição, abundância e às principais ameaças desses animais, e acabou contribuindo para que, em 1975, a tartaruga-da-amazônia e o tracajá fossem incluídos no Apêndice II da Convenção sobre Comércio Internacional de Espécies da Fauna e Flora Selvagem em Perigo de Extinção (Cites), por meio do Decreto Federal nº 76.623/75. Outra importante contribuição foi a retomada e ampliação de ações de proteção aos quelônios. No início da década de 1970, apenas dois rios (Trombetas e Tapajós), ambos no estado do Pará, estavam de fato sob regime de proteção. Outras áreas passaram, então, a ser efetivamente protegidas, tais como o Rio Branco (1977/78) e o Rio Xingu (1979).

Em 1979, foi criado o Projeto de Proteção e Manejo dos Quelônios da Amazônia, coordenado pelo IBDF, popularmente conhecido como Projeto Quelônios da Amazônia (PQA), com o objetivo de proteger e manejar a reprodução dos quelônios de água doce da amazônia brasileira. Com o PQA essas ações foram fortalecidas e ampliadas e, com o conhecimento acumulado ao longo dos anos, o IBDF definiu uma metodologia básica para a proteção e manejo desses animais. Em 1989, 10 anos após a criação do Projeto Quelônios da Amazônia, foi criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a partir da fusão do IBDF com outros três órgãos federais: Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), Superintendência da Borracha (Sudhevea) e Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (Sudepe). Para ampliar e integrar as ações do PQA, o Ibama criou, em 1990, o Centro Nacional de Quelônios da Amazônia (Cenaqua), por meio da Portaria Ibama nº 870/90.

Após 13 anos de experiência e conhecimentos adquiridos com o Projeto Quelônios da Amazônia, que posteriormente passou a chamar-se Programa Quelônios da Amazônia, o Cenaqua publicou a Portaria Ibama nº 142/92, que regulamenta a instalação de criadouros comerciais de tartaruga-da-amazônia e tracajá em suas áreas naturais de ocorrência. Mais tarde, em 1996, foi publicada a Portaria Ibama nº 070, que regulamenta o comércio dessas espécies, seus produtos e subprodutos. Suas premissas são gerar alternativa de renda para reduzir a exploração ilegal dos quelônios amazônicos.

Por causa de uma ampliação taxonômica e pela reorganização funcional no Ibama, o Cenaqua tornou-se o Centro de Conservação e Manejo de Répteis e Anfíbios (RAN) em 2001. Esse órgão veio para gerir e licenciar, em todo o território nacional, as atividades de manejo e conservação dos répteis e anfíbios continentais brasileiros, dando prioridade às espécies ameaçadas de extinção e de interesse econômico.

Em 2007, o RAN passou a ser denominado Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios, mantendo a mesma sigla, porém vinculado ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que foi desmembrado do Ibama. Depois disso, o PQA retornou à tutela do Ibama, com a publicação da Portaria nº 259/2011, com a denominação de Programa Quelônios da Amazônia, com estrutura e concepção funcional tradicional sob responsabilidade da Coordenação de Fauna Silvestre (Cofau), vinculada à Diretoria de Uso Sustentável da Biodiversidade e Florestas (DBFLO), do Ibama (Quadro 1).

Quadro 1 – Síntese desenvolvida pelo Governo Federal, nas últimas quatro décadas, do histórico de proteção dos quelônios amazônicos.

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Histórico recente da proteção dos quelônios amazônicos

1975 - 1979 - 1989 - 1991 - 2001 - 2007 - atual

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Projetos Técnicos / PQA / PQA / CENAQUA / RAN / RAN

IBDF / IBAMA / IBAMA / ICMBIO - PQA/IBAMA

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1975-1979 - Projetos Técnicos de Pesquisas, Estudos e Proteção dos Quelônios na Amazônia Ocidental - IBDF

1979-1989 - Projeto Quelônios da Amazônia - PQA/IBDF

1989-1991 - Projeto Quelônios da Amazônia - PQA/IBAMA

1991-2001 - Centro Nacional de Quelônios da Amazônia - CENAQUA/IBAMA

2001-2007 - Centro Nacional de Conservação e Manejo de Répteis e Anfíbios - RAN/IBAMA

2007-Atual - Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios - RAN/ICMBIO (Programa Nacional de Conservação dos Quelônios Continentais)

2007-Atual - IBAMA (Programa Quelônios da Amazônia)

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A partir de então, o RAN, por meio do Programa de Monitoramento e Manejo Conservacionista de Quelônios Amazônicos, vem implementando uma série de ações por meio de projetos de pesquisa direcionados à conservação dos quelônios amazônicos, especialmente nas unidades de conservação federais. O conjunto de tais projetos também é genericamente denominado Programa Quelônios da Amazônia, efetivado graças ao apoio técnico de importantes entidades conservacionistas e de pesquisa, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), a Universidade Federal do Pará (UFPA), a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), a Universidade Federal do Tocantins (UFT), a Associação de Ictiólogos e Herpetólogos da Amazônia (AIHA), o Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), o Projeto Pé-de-Pincha, o Projeto Tartarugas da Amazônia, entre outros. Nas áreas de atuação do Programa Quelônios da Amazônia são protegidas, monitoradas e manejadas, prioritariamente, a tartaruga-da-amazônia e o tracajá, e, secundariamente, o iaçá Podocnemis sextuberculata, a irapuca Podocnemis erythrocephala, o cabeçudo Peltocephalus dumerilianus e o muçuã Kinosternon scorpioides, devido à importância socioeconômica e cultural que representam em suas regiões de ocorrência.

Há fortes indícios, com base nos relatórios técnicos do acervo do PQA, de declínios populacionais de espécies de quelônios da Amazônia, notadamente da tartaruga-da-amazônia em algumas regiões. A principal suspeita desse declínio é a histórica coleta de ovos, caça extrativista e, mais recentemente, a sobrexploração desses recursos para o consumo não tradicional e o comércio ilegal. O efeito da destruição dos habitats (florestas alagáveis de várzeas e igapós) não tem sido devidamente considerado, mas o declínio populacional em questão coincide com o aumento da exploração da madeira, da introdução de gado e de pastagens na planície amazônica, bem como a destruição de praias e alagamento de sítios de nidificação pela construção de hidrelétricas, caso da Usina Hidrelétrica (UHE) de Balbina, que afetou negativamente os sítios de nidifi cação de P. expansa no interior da Reserva Biológica (Rebio) Uatamã/AM.

Em 35 anos de execução do Programa Quelônios da Amazônia, foram manejados mais de 65 milhões de quelônios nos estados das regiões Norte e Centro-Oeste do Brasil, destacando a tartaruga-da-amazônia e o tracajá. Essas ações têm proporcionado conservar e recuperar as populações naturais dessas espécies e, consequentemente, contribuir para a conservação da biodiversidade a elas associadas. Deve-se considerar que foi graças aos esforços desse Programa, em suas diversas interfaces, que nenhuma dessas espécies aparece em lista de ameaçada de extinção no território brasileiro. A manutenção de índices populacionais desejáveis dessas espécies depende da continuidade dos trabalhos de proteção, manejo e monitoramento. Como toda atividade que requer periodicamente rigoroso planejamento e revisão de conduta, são demandados esforços no sentido de nivelar, entre os atores sociais envolvidos nessas ações, as metodologias do manejo conservacionista e do monitoramento populacional a serem implementadas.

REFERÊNCIAS

ALFINITO, J. Identificação dos principais tabuleiros de tartarugas no Rio Amazonas e seus afluentes. Boletim Técnico, Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, Brasília, n. 5, p. 27-84, 1978.

BATES, H.W. The Naturalist on the river Amazon. London: John Murray, 1892. 395p.

COUTINHO, J.M.S. Sur lês tortues de l’Amazone. Bulletin de la Societé Zoologique d’Aclimatation, Paris, v. 5, p. 147-166, 1868.

DIAS DE MATOS, J.V. A pesca na Amazônia. Monografi as Brasileiras III. Rio de Janeiro: Livraria Clássica de Alves, 1895. 207p.

IBAMA. Manual Técnico: Projeto Quelônios da Amazônia. Brasília: Ibama, 1989a. 119p.

IBAMA. Projeto quelônios da Amazônia, 10 anos. Brasília: 1989b. 119p.

IBDF. Preservação da Tartaruga Amazônica. Belém: IBDF, 1973. 110p.

van DIJK, P.P.; IVERSON, J.; RHODIN, A.; SHAFFER, H.; BOUR, R. Turtle Taxonomy Working Group. Turtles of the World. 7th Ed. Annotated Checklist of Taxonomy, Synonymy, Distribution with maps, and Conservation Status. Chelonian Research Monographs, n. 5, v. 7, p. 329-479, 2014.

VOGT, R.C. Tartarugas da Amazônia. Lima, Peru, 2008. 104 p.

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Esse Artigo é o Capítulo 1 da obra "Manejo conservacionista e monitoramento populacional de quelônios amazônicos", publicada pelo IBAMA, em 2016. Disponível em: http://ibama.gov.br/phocadownload/fauna_silvestre_2/PQA/manual%20quelonios%20digital.pdf

Giovanni Salera Júnior e Rafael Antônio Machado Balestra e Vera Lúcia Ferreira Luz
Enviado por Giovanni Salera Júnior em 15/08/2016
Reeditado em 15/08/2016
Código do texto: T5729096
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