Bertolucci e o sexo: a manteiga virou margarina light - sem problemas
Quando se soube que Bernardo Bertolucci rodava um novo filme bastante erótico – falo de Os Sonhadores (The Dreamers, 2003) –, muito se alardeou tratar-se de uma espécie de reedição de Último Tango em Paris (Last Tango in Paris / Ultimo Tango a Parigi, 1972). Não foi.
Não que Os Sonhadores seja pior que o Último Tango em Paris. Acho até que eles merecem, sinceramente, igual número de “estrelinhas”. Mas o fato de os dois filmes terem como tema central o sexo e da trama se passar em Paris, não os torna filmes idênticos. Entretanto, obviamente, não são díspares.
Na época do “Tango”, Bertolucci era um jovem cineasta com 32 anos de idade e um enorme desejo de chocar o mundo, e com isso ficar rico e famoso. Com a aposta do produtor Alberto Grimaldi, conseguiu as três coisas. Fez um filme desses que são clássicos indiscutíveis, ousado na forma e no conteúdo – diga-se o certo: mais na forma que no conteúdo. Um filme bilíngüe – o que poderia trazer dificuldades, mas acabou lhe conferindo charme. Com um roteiro não muito bem amarrado: são jogadas na tela as tórridas cenas de sexo entre um, ainda, viril Marlon Brando e uma linda, magra e de seios fartos, Maria Schneider. O sexo nunca tinha sido mostrado daquela forma em um filme sério. Realista. Brutal. Visceral. O sexo como fuga, para a tragédia pessoal da vida do personagem de Brando, e como anestesia, para as dúvidas existenciais da jovem insegura e prestes a se casar, vivida por Schneider. Como pano de fundo para seu Kama Sutra, Paris. Dessa forma o mundo inteiro pirou. E parou para contemplar o escândalo. É obvio que o filme tem grandes qualidades – grande fotografia, grandes atores. Mas a época fez de Último Tango em Paris, Último Tango em Paris. Sabe como é? O filme certo na época certa. E o ineditismo daquilo tudo. Mas é bom lembrar aos desavisados que não estamos falando de um filme comercialmente apelativo, com base meramente no sexo: Último Tango em Paris é denso e triste. Mais tarde, em 1976, Nagisa Oshima faria o seu “tango”, com direito a sexo explícito, no não menor O Império dos Sentidos.
Mas o que houve com o belíssimo Os Sonhadores? Por que não repetiu – nem de longe – o sucesso de Último Tango? Vamos ver. Tem Bertolucci? Tem (e um Bertolucci rodado, consagrado, laureado com os nove oscars de O Último Imperador em 1987 e uma coleção de sucessos. Um cineasta, aos seus 63 anos de idade, com completo domínio de suas intenções cinematográficas). Tem sexo? Tem. E tem muito. E tem os belos corpos de jovens atores. E tem, na íntegra e em sua plenitude, o corpo da boa atriz Eva Green – o que não é pouca coisa. Aliás, feeling pra descobrir sensuais e belas atrizes é uma coisa que Bertolucci sempre mostrou ter, e isso merece mais um parêntese (a primeira grande descoberta foi Maria Schneider, que trabalhou no Último Tango. Em Beleza Roubada (Stealing Beauty, 1996) – considerado um filme “menor” de Bertolucci: até hoje não entendo o motivo, pois o filme é todo, todinho bom, sendo, provavelmente, o meu filme preferido do diretor – foi a vez de Liv Tyler, que quase me fez enlouquecer. Depois, em Assédio (L’Assedio, 1998), ele nos trouxe a beleza negra de Thandie Newton. E, por fim, essa Eva Green. Poderia ter melhor nome a moça?).
Mas falávamos sobre o porquê de o filme não ter obtido o sucesso esperado. Os Sonhadores é uma obra de arte. É uma característica do grande público, rejeitar qualquer filme que lembre um “filme de arte”. E o fato de o filme ter cenas de nu frontal, alguma sugestão de incesto, não foi o suficiente para arrebatar as platéias. Estamos na era do filme pornô. É natural que cenas como as que mostram a moça acariciando, em plano explícito, o pênis do seu hóspede, ou a cena dos três na banheira, ou a em que a menina é desvirginada, exibindo o seu sangue, choquem hoje menos, muito menos do que a cena da manteiga – de “Tango” – chocou os espectadores nos anos setenta. Naquela época as pessoas não tinham filmes pornôs em casa.
É uma pena que isso tenha acontecido com Os Sonhadores, que assim como Último Tango, não é simplesmente um filme sensual. A trama fala sobre a juventude parisiense de 1968. Na contramão daquele momento histórico, três jovens se trancam num amplo apartamento e passam dias ali, descobrindo sua sexualidade e discutindo cinema, divertindo-se como crianças, completamente alheios aos movimentos político-estudantis de esquerda e a tudo o que se desenrolava a pleno vapor, com o avanço da juventude engajada pelas ruas da capital francesa. O filme não tem muito mais que isso. E é assim mesmo – estamos falando de cinema minimalista, o que Bertolucci nunca deixou de fazer – sendo esta uma de suas marcas. Mesmo que, hoje, ele tenha perdido, não por culpa sua, a capacidade chocar as pessoas, o filme em questão pode ser tudo, menos “inofensivo”. Eu mesmo, confesso que fiquei chocado. Beleza, arte e minimalismo – do qual o diretor usara e abusara no belo filme O Céu que nos Protege (The Sheltering Sky, 1990), e porque não dizer, também em Último Tango em Paris – sempre vão chocar alguém. Os Sonhadores possui esses ingredientes, e é uma obra de arte pungente, mesmo.
Bacana também é ver a estupefação do cineasta no set de filmagens em meio aos jovens atores completamente nus, no making of do dvd. Não dá pra não ver.