A POÉTICA DE NAURO MACHADO ( III )

Nauro Machado é um poeta profundamente cinestésico, conforme mostram os poemas desde a sua estreia em 1958 com o livro CAMPO SEM BASE. Vejamos “Metamorfose Inicial”, que é o manifesto de um canto que silenciou para sempre no dia 28 de novembro de 2015:

“Me crio em nova forma. Não

a que em quartos, corpos

gastos sofrem, tão sós,

pastos vis de um mútuo asco

solitário. Bem os sei também

distendidos, parto enfim

da morte, não a própria

(dificílima),

mas suja e dividida

com outrem. Me crio em nova

forma. Uma, incessante, dia meu, -

árduo, que sobre o piso a

comida de ontem jaz. Sabe a

tarde, loucura, carne ou

legume? No banho seu odor

me penetra — sabre. Foi e

já não é, coube e já não

cabe: cai, ressequida, lúcido

ódio! Me crio em nova

forma. Não esta, mas outra

maior, dia meu, mais árduo,

onde meus ócios secam,

apodrecidos, no tédio

das palavras.”

É também o anúncio de uma nova estética no final dos anos 50, quando ouvíamos ainda os ecos da ruptura da Semana de Arte Moderna de 1922. E Nauro Machado é uma ruptura dentro da ruptura, solitário profeta no mundo de uma nova linguagem que ultrapassou os modismos modernistas. Ele manteve uma unidade formal de extraordinária coerência, produto de uma criatividade radical, que não pode ser dissecada através de rotulações generalistas. Só a metafísica dialética ousa penetrar-lhe as entranhas.

samuel filho
Enviado por samuel filho em 02/01/2016
Reeditado em 04/01/2016
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