Do medo de ser humano

Ser humano, na acepção humanitária da palavra, é um exercício e, como tal, exige os mesmos padrões de disciplina, dedicação, empenho e objetivação em resultados que qualquer outro exercício para que venha a funcionar a contento. É tarefa tão árdua que o humanitarismo não se constrói por si no ser humano: ele cresce disputando seu lugar palmo a palmo com aquilo que temos de mais forte, arraigado e, também, subestimado em nossa natureza: nossos instintos.

Eli Wiesel, ganhador do prêmio Nobel da Paz em 1986, em seu livro “A Noite”; no qual ele descreve sua experiência durante a Segunda Guerra Mundial, nos revela um episódio que ilustra bem como nosso instinto de sobrevivência predomina quando necessário. Durante uma viagem de trem rumo à um campo de concentração, sob o rigoroso inverno alemão (os vagões, que carregavam os judeus todos amontoados e espremidos, eram descobertos), o comboio realizou uma parada e as pessoas desceram para cavar a neve em busca de restos de comida. Seu pai, muito debilitado, que viajava com ele, achou um pedaço de pão enterrado e já no vagão, quando Eli se deu conta, estava tentando matá-lo enforcado por que ambos queriam comer o pedaço congelado de pão sem repartir.

O que eles vivenciaram na situação descrita acima, tanto pai quanto filho, foi o apelo irreprimível do instinto de sobrevivência. Ele foi mais forte que quaisquer outros laços desenvolvidos até então entre os dois. O alimento, mesmo que pouco e congelado, era o objetivo maior daquele momento não importando o obstáculo que precisassem transpor. Este é o exemplo de um drama pessoal dentre milhões de outros ocorridos no mesmo período, mas que serve perfeitamente para ilustrar o que considero como predomínio nato dos instintos sobre quaisquer convenções ou laços sociais em momentos de crise extrema. Podemos mensurar a situação e a atitude de um para com o outro em proporções que as definiriam como desumanas, pois a desumanidade é por inerência o oposto de humanidade: é a ação que quando perpetrada degrada, humilha e violenta a condição humana. Esse é o efeito que nossa natureza animal exerce quando confronta nossa natureza social.

Porém há desumanidades de matizes diversas, que diferem em peso e coloração umas das outras, como no caso de Suzane von Richtofen, que planejou friamente o assassinato dos pais; ou no caso do austríaco Josef Fritzl que aos 73 anos, em 2008, foi flagrado mantendo sua filha e os três filhos que teve com ela em cativeiro num período que já totalizavam 24 anos – ou como a tríade antropofágica de Garanhuns, que recheava salgados com carne de suas vítimas assassinadas em rituais de magia e os vendia pelas ruas da cidade. Todas elas, porém, partem de um mesmo fator: são geradas simplesmente pelo fato de sermos humanos.

A desumanidade tornou-se tão corriqueira que, salvo um ou outro exemplo mais chocante, quase não nos damos conta de que ela existe e caminha entre nós. Ela permeia também casos menos famosos – mas não por isso menos violentos – que pululam todos os dias em noticiários sensacionalistas. E ela se faz presente, ativa e dominante por uma simples questão: a desumanidade, por mais distante que pareça do comportamento humano, é totalmente humana, talvez mais humana até do que os comportamentos ditos humanitários aos quais somos apresentados atualmente.

Ser humano é algo de tão enorme raridade que quando encontramos pessoas que se destacam por serem genuinamente altruístas, como Madre Teresa de Calcutá e Gandhi, as tomamos como baluartes por gerações, justamente pela inexistência de pessoas com tais qualidades. Na esfera dos micro relacionamentos a desumanidade também corre solta pelos pés de sentimentos tais como a inveja, cobiça, descaso e falsidade, os quais muitas vezes culminam em desgraça e miséria. Em suma, não há aspecto do relacionamento humano que consiga se desprender de sua cota de desumanidade.

Talvez uma modificação semântica na palavra desumano não soasse mal. O que se considerava desumano antigamente, hoje assume ares de normalidade pela frequência. O que tomávamos por humano talvez já comece a perder seu sentido e as poucas ações de altruísmo e bondade que venham a surgir estejam fadadas a se tornar desumanas por serem completamente distantes e díspares do que chamamos hoje de comportamento humano.

Vários argumentos podem ser usados tanto para justificar como para condenar toda a desumanidade que presenciamos. O fato é que, como disse o filósofo espanhol, José Ortega y Gasset “O homem é o homem e suas circunstâncias”. Em era de tantas passeatas de conscientização e protesto pelos mais variados motivos, talvez seja hora de realizarmos uma passeata silenciosa, interna e reflexiva reivindicando a nós mesmos que sejamos menos políticos e mais humanos em nossas relações. E que, além do medo de ser humano e do ser humano que vivenciamos hoje, nos lembremos que toda a desumanidade que presenciamos, por mais deturpada que nos pareça, é apenas um reflexo nosso. O que falta, talvez, seja apenas isso, a consciência de que é nossa responsabilidade gerar as circunstâncias que nos tragam, novamente, o sentido pleno da palavra humanidade.