Sobre mãe Madá e nós
Conheci Madalena Herculano dos Santos quando tinha dez anos, então jovem estudante universitária por quem meu pai se apaixonara poucos meses depois de separar-se de minha mãe, no início dos idos anos 1970.
Com vinte e um anos, também apaixonada por meu pai, poucas semanas depois de iniciar o namoro com ele, Madalena, sertaneja de Pombal, resolveu vir morar conosco, que estávamos sob os cuidados de meus avôs paternos, já que minha mãe fora morar na casa de uma irmã sem ter condições de levar os três filhos que tivera com meu pai: eu, seu filho mais velho, Sérgio, com seis anos, e Valeska, então com três.
Mas não demorou a que minha avó falecesse, depois de padecer alguns anos por causa de um câncer que lhe devorava o útero, sem que o Deus em quem ela tanto cria, e a quem constantemente clamava por socorro, para contrariar Suas regras tivesse feito outra coisa além de Sua própria vontade.
Dessa forma foi-se minha avó, deixando como herança para Madalena seu marido, meu avô paterno que, cego e esclerosado, se lhe tornara um fardo entre mais quatro pessoas – já que, para uma jovem sertaneja de vinte e um anos, nunca poderá ser considerado fácil cuidar de três filhos que não são seus, um velho e um homem com pouco senso prático, tendo sido meu pai dedicado mais às tarefas que lhe exigiam esforços intelectuais do que em acompanhá-la ao supermercado, entre outras cotidianas que Madalena, a despeito de sua juventude e inexperiência, executava com esmerada dedicação e responsabilidade.
Para complementar sua sacrificante labuta cotidiana, a jovem “Madá” ficou grávida de meu pai, e então nasceu Karin a quem, como filho mais velho – sempre disposto a apoiar meu pai em suas decisões – prontamente aceitei como irmã mais nova, tendo tido a iniciativa de pedir ao meu irmão e a minha irmã que então deixássemos de chamar Madalena de “Madá” e passássemos a chamá-la de “Mãe”, uma vez que, no mínimo, nossa nova irmã consideraria estranho que, sendo nós seus irmãos e, portanto, os outros “filhos” de Madalena aos seus novos olhos, não a chamássemos “mãe”. E não apenas lhe apoiei assim: graças à necessidade de mãe Madá concluir seu curso de Economia, eu ficava em casa a cuidar de meu irmão, irmãs (estando Karin com seis meses) e de meu avô durante muitas noites, quando ela e meu pai, professor universitário, dirigiam-se à Universidade para efetivação de suas tarefas acadêmicas, tendo tido eu orientações de mãe Madá sobre como realizar outras tantas tarefas domésticas – como lavar pratos e cozinhar – a auxiliá-la em casa, garantindo-me certa independência futura de necessárias participações de mulheres a minhas próprias tarefas domésticas, contribuindo eu indiretamente a emancipações que as tendenciosamente feministas de então, como mãe Madá, começavam a conquistar.
Dessa forma, durante quase cinco anos esteve mãe Madá conosco a dar todo seu empenho a que, de refeições a roupas (que ela mesma costurava), de cuidados médicos a carinhos, tivéssemos o melhor que uma mãe pudesse nos dar, tendo resolvido depois separar-se de meu pai que, ausente de casa a maior parte do tempo a viver sua intensa vida profissional, preferindo muitas vezes a companhia de seus amigos em reuniões etílico-intelectuais, deixara de lhe dar a devida atenção, o que naturalmente a fez se cansar de seus sacrifícios de mãe-postiça, esposa esquecida e resolver cuidar da própria vida.
Mas, mesmo longe de nós, eu sempre a visitei; não apenas por gostar dela e continuar a considerá-la minha “mãe Madá”, mas também por sentir saudade de minha irmãzinha Karin, a quem sempre eu prestigiei em festas de aniversário e em outras datas comemorativas onde, na qualidade de seu irmão mais velho, eu pensei sempre dever estar, tendo algumas vezes minha irmã Valeska ido morar com ela. Mesmo que isso provocasse o ciúme de minha mãe, com quem mãe Madá sempre tivera boas relações.
E assim continuei minhas tarefas de “filho postiço”; e mesmo quando mãe Madá tentou se relacionar com outros dois homens, com os quais fiz amizade, tendo também ela me prestigiado quando de minhas exposições de artes visuais, durante minhas apresentações como músico e os lançamentos de meus livros, muitos dos quais foi dedicada revisora – tendo mesmo feito questão de, como boa familiar canceriana, ampliar sua tarefa revisora a observar, ainda sentindo-se preocupada mãe, para onde eu dirigia “minha” vida, o que às vezes me provocava muita irritação, já que eu tinha perspectivas diferentes dela – como da maioria das pessoas – sobre o valor de certas “coisas” e sobre a necessidade de conquistá-las, o que, todavia, não lhe fez limitar sua curiosidade pra saber sobre quem ou o quê me influenciava (como de resto influenciara meu pai) a não considerar o poder de minha inteligência, a força de meus talentos e a negligenciar as oportunidades que se apresentavam, criticando-me por ter muito cedo mergulhado nas responsabilidades do casamento sem que ainda tivesse desenvolvido as condições necessárias para tanto – o que também a aborrecia ao perceber que, a despeito de todos os seus esforços a levá-la as decisões ideais, o mesmo se dava nas atitudes de sua filha Karin.
Como sertaneja, e proveniente de família sem muitos recursos financeiros, mãe Madá, com apoio de meu pai, trouxe toda a família para morar na capital (menos o pai dela, que se recusou a vir); família que, como boa filha, ela sempre fez questão de administrar em auxílio ao melhoramento das condições de vida de seus membros: a mãe, uma irmã e um irmão, e então eu entendia as aflições dela ao notar que nós, então sob condições diferentes da dela, “boas vidas” que éramos e, portanto, com melhores condições de desenvolvimentos não dávamos a devida importância as conquistas de todos os necessários melhores bens materiais a melhores usufrutos da Vida – Vida que, a despeito de nossos muitos sacrificantes esforços, vias de regra faz tão somente Sua vontade e que não tardou a levar embora meu pai que, em vida, influenciara-lhe inevitavelmente a novos interesses sobre o valor de perspectivas de outras culturas, o que, certamente associado a sua morte prematura, como a de seu irmão mais velho e de sua mãe, mais tarde fez mãe Madá me convidar a acompanhá-la numa visita a um templo Hare Krishna, cultura que ela passou a estudar entre outras espiritualistas que, melhor que o Cristianismo, pudesse lhe revelar a razão primeira e última de tudo de bom e de ruim presente no Vazio.
Mas o Tempo passa e então o que nos interessa hoje não nos interessará amanhã; mesmo que tal desinteresse não seja explicitado da mesma forma por todas as pessoas, estando mesmo muitos idosos ainda empenhados a se considerarem na fase de uma “melhor idade” – expressão repudiada por mãe Madá, que ridicularizava a situação daqueles que, como ela, definhando sob a força dos anos, plenamente inseridos na “Idade do Com Dor”, se consideravam “jovens” iniciantes na existência.
Assim, aos poucos mãe Madá foi se cansando; e não apenas por fumar demais e não fazer exercícios físicos, pois o que antes lhe dava prazer, o trabalho, as reuniões com os amigos e amigas, com a família, as viagens, suas leituras de livros e filmes, assim como suas audições de músicas e atenção aos programas de televisão, tudo se lhe tornou enfadonho e inútil. E ela considerava assim não apenas por sofrer periodicamente profundas crises de depressão, mas porque sua consciência, então ampliada por seus estudos e por suas vivências, fizera-lhe perceber, no fim, quão inútil é todo esforço depreendido à aquisição de todos os “bens” que, da família à escola e no trabalho, nos disseram (e dizem) importante conquistar – como ela mesma nos dissera outrora; o que talvez não seja uma justificativa a desconsiderar sua depressão como a doença que, de lágrima em lágrima, de trago em trago, de apatia em apatia terminou por provocar seu aneurisma e sua morte.
A ela, nossos agradecimentos por sua dedicação e esforços a que fôssemos pessoas melhores neste mundo, tanto para nós mesmos quanto para os outros. Nossos agradecimentos por seu amor, enfim, tantas vezes expresso a fazer-nos confundi-lo com raiva; amor recompensado com o presente que ela tanto desejou que a Vida lhe desse e que Ela lhe deu: uma morte rápida e um tanto indolor a ajudá-la a cair fora das convivências com as contendas, as ansiedades, outras aflições inúteis deste mundo e, talvez em outro, encontrar sua tão desejada inabalável tranquilidade.