A BOLSA OU A VIDA
“Cesse tudo que a musa antiga canta, que outro valor mais alto se alevanta” (Camões)
CENA 1: Inconformados porque a dentista Cinthya Magali só tinha R$30,00 em mãos, quatro assaltantes puseram fogo em seu consultório e a queimaram viva, em São Bernardo (2013).
CENA 2: Não satisfeito em roubar o dinheiro e o celular de Janaína Mattos, um assaltante cortou a garganta e extirpou os seios da jovem, como se fosse Jack o Estripador, em Cerro Azul, Paraná (2014).
CENA 3: Inconformados porque não conseguiam dirigir o carro automático da estudante Natália Costa, já deitada na rua, quatro ladrões passaram por cima dela com outro veículo, matando-a, em São Paulo (2015).
Estes exemplos bastam. Não adianta mais tapar o sol com a peneira: vamos reconhecer que, em termos de segurança pública, o Estado brasileiro faliu. Ou, como diz o meliante: perdeu...perdeu. Poucos crimes são esclarecidos e, mesmo assim, as prisões vivem superlotadas, sem condições de cumprir a função ressocializadora da pena, o que gera um índice alarmante de reincidência na base de 70% da população carcerária, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça. Até porque a capacitação profissional só alcança 3% dos presos.
Assim, quase sempre, quando um suspeito é detido – maior ou menor de idade –, ele ostenta um rosário de antecedentes criminais. E, a cada detenção, mais se distancia da desejada recuperação. Muitas vezes, a cadeia é apenas uma pausa entre dois crimes. “Estamos enxugando gelo”, disse outro dia um policial inconformado com o contínuo prende-e-solta nas delegacias.
Como consequência dessa intranquilidade generalizada, a paisagem urbana sofreu uma drástica mudança nos últimos tempos. Cada vez mais brotam câmaras de vigilância nas esquinas, nas lojas e até em escolas. Nas ruas não se vê nenhuma casa sem cerca elétrica, nenhum prédio sem porteiro ou sistema eletrônico. No trânsito aumenta a frota de carros blindados, com vidros escuros e rastreadores de todo o tipo. Para abrir qualquer porta o cidadão precisa utilizar uma penca de chaves ou uma coleção de senhas. E, apesar de todo esse cuidado, ele fica cada vez mais vulnerável. Em certos casos, o bandido já nem precisa de uma arma de fogo para fazer a abordagem. Uma faca basta. É a banalização do roubo e do latrocínio sangrando famílias todos os dias. Por uma bicicleta. Por um par de tênis. Por um boné. É o quanto vale a vida atualmente. Daqui a pouco teremos uma população acuada, com medo de sair de casa até para comprar o pão de cada dia. Minha casa, minha fortaleza.
Diante desse quadro, é melhor jogar a toalha. Reconhecer que o próprio Estado “perdeu” para a bandidagem. Tornou-se incapaz de proteger, ao mesmo tempo, a bolsa e a vida do cidadão. Chegou, pois, a hora de se fazer uma opção pelo bem mais valioso: a vida. Se é assim, vamos então institucionalizar essa realidade, abolindo de vez o crime de furto e assemelhados, ou seja, aqueles que não resultem na morte da vítima e não afetem sua incolumidade física. Vão-se os anéis mas ficam os dedos (além do susto), não é esse o ditado? Ou, para lembrar William Shakespeare: “Quem furta minha bolsa, furta uma ninharia. É qualquer coisa, nada; era minha, era dele, foi escrava de outros mil.”
Já no caso de morte, invalidez ou lesão corporal grave da vítima, aí a mão fica mais pesada. Implacável. Pena máxima de 30 anos sem firulas jurídicas. Sem progressão de regime. Sem indultos ou saídas temporárias. Só não falo em prisão perpétua para não mexer em cláusula pétrea, já cutucada pela PEC 421/09. Só não falo na Lei de Talião porque vingança não é justiça.
Numa época em que se discute abertamente a descriminalização do aborto e do consumo de drogas, notadamente da maconha, por que não incluir nessa cruzada o crime de furto ou roubo simples? É a abolitio criminis (art. 2º do C.P.). Aconteceu com o adultério, com a sedução e com a mendicância. Pode acontecer com qualquer crime contra o patrimônio. Sinal dos tempos.
De outro ângulo, por construção doutrinária e jurisprudencial, não existe o princípio da insignificância para as hipóteses de pequeno furto ou pequeno estelionato? Então vamos turbinar esse princípio: diante da vida, passa a ser insignificante qualquer bem que a vítima porte no momento da abordagem. Aliás, na prática, por acomodação ou falta de estrutura, a própria autoridade policial muitas vezes negligencia a apuração de delitos de menor potencial ofensivo. E, sabendo disso, a vítima nem leva ao seu conhecimento ocorrências dessa natureza.
Mesmo assim, dados do Ministério da Justiça (Departamento Penitenciário Nacional) revelam que quase a metade da população carcerária do país (48,9%) é constituída de condenados por crimes contra o patrimônio, enquanto os condenados por crime contra a pessoa representam apenas 11,81%. É de se supor, consequentemente, que a eventual descriminalização dos delitos não violentos contra o patrimônio resulte num considerável desafogamento de todo o aparato repressivo penal (polícia, ministério público e justiça) e na maior oferta de vagas no sistema carcerário. Ambiente propício para que se agilize e se torne mais efetiva a punição dos criminosos que não respeitam a vida alheia. Para estes, chumbo grosso. Trinta anos no xilindró para quem rouba e mata, ou mata para roubar. Sem regalias.
“Estupra mas não mata”. A frase infeliz terá uma nova roupagem: “leva mas não mata”. Esta é a mensagem que vai chegar ao criminoso (como se fosse um pacto), principalmente se ele perder a sensação de impunidade. Ele pode levar, mas vai pensar duas vezes antes de estripar ou pôr fogo na vítima porque o assalto não rendeu o que ele esperava, ou para acobertar o delito-fim. Ele tem de fazer uma opção evangélica: ser o bom ladrão ou o mau ladrão. E aí, quem sabe, diminuirá a agonia dos pais todas as vezes em que um filho for para o trabalho ou para a escola. Ele voltará. Ainda que nu, o filho voltará para casa, para os braços da mãe.
Todavia, essa rendição da sociedade não significa um cenário de zorra total. As compensações materiais passariam ao domínio do direito privado, com a celebração de contratos de seguro para os bens de maior valor. Comerciantes incrementariam a segurança privada em suas lojas, com possibilidade de dedução parcial da despesa na carga tributária. Por que não?
Será que falei muita asneira? Para amenizar o delírio de um sexagenário, eu digo que essa poderia ser uma solução emergencial, até que a “pátria educadora” deixe os palanques e entre efetivamente nas salas de aula, diminuindo as desigualdades sociais responsáveis, em boa medida, pelo descalabro na segurança pública. Afinal, segurança e educação são dois pratos da mesma balança. Um equilibra o outro.
Vamos pensar no assunto. E também agir. “Pensar como se estivesse na quietude de um templo e agir como se estivesse no fragor de uma batalha.” Este era o lema do saudoso Ulysses Guimarães, inspirado em Santo Inácio de Loyola.
E, de fato, parece que alguém dentro do Estado já começou a agir:
CENA 4: Sensibilizados com a situação de um desempregado que foi preso por furtar dois quilos de carne para alimentar o filho, agentes policiais pagaram sua fiança e ainda lhe deram uma cesta básica, no Distrito Federal (maio/2015).
Para quem leu Os Miseráveis, de Victor Hugo, a cena tem algo de familiar. Na ficção, Jean Valjean foi perseguido implacavelmente pela polícia porque furtou um pão. Na vida real, depois de preso Mário Lima foi socorrido pela polícia porque furtou um pedaço de carne (isso num país em que petrocorruptos desviaram milhões e milhões de reais sem o menor pejo).
Quem está certo? O inspetor Javert ou os bons samaritanos da 20α. Delegacia de Polícia de Gama Oeste?
Não vale ficar em cima do muro. Mas vale relembrar a visão apocalíptica de Josué de Castro:
“Metade da população não come, e a outra metade não dorme com medo dos que não comem.”