Feitos um para o outro - vinho com comida
Harmonizar vinho com comida é um dos princípios mais importantes para qualquer enófilo, mas esta ainda é uma questão pouco compreendida no Brasil. Muita gente sequer pensa no assunto, apanhando a primeira garrafa que tem pela frente para acompanhar qualquer prato que esteja à mesa. O mais longe que muitos chegam é repetir alguma regrinha básica -- algo do tipo "peixe tem que ser com vinho branco" -- como se fosse uma lei divina, sem tentar compreender qual a lógica por trás disso. Outros acham o cúmulo da frescura a simples existência de um profissional, o sommelier, que fica em restaurantes caros para dizer o que o cliente deve beber.
Por isso fico bem à vontade para dizer que harmonização não é uma frescura sem sentido. Até porque estamos falando de algo que, no fundo, é simples: harmonizar significa escolher o vinho que melhor combina com a comida. Só isso. Todos temos critérios desse tipo, que usamos em nosso dia-a-dia por força do hábito. Exagerando um pouco, é o que nos leva a não comer peixe junto com feijoada, por exemplo, ou tomar café preto ao mesmo tempo que se saboreia uma lasanha. Não funciona. Por outro lado, a acidez da laranja ou da caipirinha faz sentido com a feijoada, enquanto um bolo de fubá que acabou de sair do forno fica divino com café recém-coado. Isso é harmonizar.
Com o vinho, essa questão pode e deve ser observada. O grau com que isso será feito depende do refinamento da pessoa e da ocasião. Ninguém deve quebrar a cabeça ou fazer cara de enjoado para tomar um vinho com pizza, por exemplo. O bom senso manda escolher uma garrafa simples e ser feliz. Mas até nessa situação corriqueira ter alguma noção de harmonização é um trunfo. Quem optar por um desses rótulos superconcentrados do Novo Mundo certamente vai deixar de sentir o gosto da redonda, pelo menos daquelas com sabores mais suaves. Um chianti simples, um pinot noir sul-americano ou um merlot ligeiro respeitarão mais a pizza do que um Syrah australiano com 15% de álcool.
Quando se tem pela frente uma comida sofisticada, contudo, é também bom senso dedicar um cuidado especial para a escolha do vinho que vai escoltá-la. O básico é selecionar um rótulo que não se sobreponha ao prato. Mas um grande sommelier deve ser capaz de ir além e eleger um vinho que melhore a comida e vice-versa. Pode ser uma combinação surpreendente, quase um desafio intelectual; ou então uma proposta mais conservadora, porém executada com maestria. Para quem tem um lado gourmet e realmente valoriza os prazeres da mesa, um casamento perfeito entre o vinho e o prato pode ser uma experiência sublime -- muito mais recompensadora do que se o mesmo vinho e a mesma comida fossem saboreados separadamente. Quando isso acontece, a harmonização é elevada quase a uma arte e a refeição transforma-se num acontecimento. Um exemplo? Que tal um Barolo Falletto Bruno Giacosa 1982 acompanhando um coelho à caçadora e um risoto de trufas? Nada mau.
É claro que existe um componente subjetivo na harmonização. Uma combinação perfeita exige conhecimento e criatividade do sommelier e sensibilidade do cliente para entender o que foi proposto. No exemplo acima, o Barolo envelhecido tem aromas que lembram cedro, cogumelos e trufas. Trata-se de um vinho encorpado para acompanhar a caça, mas não superconcentrado, já que a carne do coelho não é excessivamente forte ou gordurosa. Embora um Barolo desses dure mais de 40 anos, a essa altura seus taninos já estão aveludados e suaves, ideal para a carne tenra do coelho. Deu água na boca?
Pouca gente pode bancar uma harmonização dessas, mas é possível fazer casamentos memoráveis gastando bem menos. Não há regras rígidas, mas algumas dicas ajudam o enófilo iniciante:
1-) Procure vinhos e comida de intensidade parecida. Pratos muito fortes pedem vinhos encorpados; pratos delicados, vinhos mais leves. Um não deve se sobrepor ao outro para que o gosto de ambos seja percebido.
2-) O mais fácil é fazer harmonização por similaridade: um vinho doce (como Porto ou Sauternes) para comidas doces, um vinho com aromas de especiarias (como alguns Syrah) para pratos condimentados, e assim por diante.
3-) O risco de errar é maior, mas é bom saber que harmonização por contraste também funciona -- e como. Parece estranho, mas experimente um queijo azul, tipo gorgonzola, com um vinho doce de colheita tardia.
4-) Quando vários vinhos são servidos num jantar, é praxe começar com espumantes de aperitivo, depois brancos ou tintos leves e por fim os tintos encorpados. Um fortificado doce, como um Porto, fecha magnificamente qualquer refeição. (O Porto, aliás, é um dos poucos vinhos que conseguem acompanhar chocolate)
5-) Na dúvida, se você tem uma garrafa muito boa (e cara) em casa e não sabe ao certo como é o vinho, procure acompanhar com uma comida que não seja marcante ou forte demais. Nesse caso, é melhor errar para menos e deixar o vinho se sobrepor. Queijos verdes, pimenta ou excesso de condimentos podem fazer com que você perceba muito pouco do que estiver bebendo.
6-) Vinhos com acidez elevada são bons para pratos gordurosos. Taninos também ajudam a quebrar e digerir a gordura. Os vinhos supercontrados, frutados e com muita madeira que invadiram as prateleiras são difíceis de harmonizar. Vinhos elegantes brigam menos com a comida.
7-) Depois de adquirir alguma experiência, ouse e seja criativo (mas com critério). Que tal tentar um champanhe para acompanhar o prato principal? As possibilidades são ilimitadas. Só não perca o bom senso.
8)- Há muitas outras dicas -- o espaço para comentários está aberto a quem quiser acrescentar sugestões --, mas para começar está de bom tamanho.
PS.: Ah, sim, a clássica regra de vinho branco para acompanhar frutos do mar que citei no primeiro parágrafo está certa. É bem difícil harmonizar peixes e mariscos com tintos.