DE UMA CONVERSA COM O PROFESSOR PASQUALE: QUESTÕES SOBRE A LÍNGUA E SEU ENSINO[1]
DE UMA CONVERSA COM O PROFESSOR PASQUALE:
QUESTÕES SOBRE A LÍNGUA E SEU ENSINO[1]
Profa. Clara Dornelles (UNIVALI/UNICAMP)
claradornelles@yahoo.com.br
Profa. Jeanete Terezinha de Souza (UNIVALI)
jeanete@cehcom.univali.br
Adriano Salvi (Letras/UNIVALI)
Adriano.salvi@univali.br
Paulo Sérgio de Senna (Letras/UNIVALI)
paulodesenna@bol.com.br
RESUMO
Este artigo tem como principal objetivo contribuir para a discussão sobre as abordagens tradicional e lingüística no ensino de língua portuguesa. Dois textos base, o primeiro apresentando a perspectiva da gramática tradicional e o segundo, a da lingüística, foram construídos para servir de provocação para o debate entre alunos, egressos e professores do Curso de Letras, nossos “comentadores”. Através dos comentários sobre os textos base, pretendíamos acessar as representações de colegas do Curso sobre o conceito de gramática e sua aplicação no ensino e o papel da lingüística na prática pedagógica do professor de línguas. Os temas que se sobressaíram nos comentários e que foram focados em nossa discussão final foram: a noção de uma gramática “contextualizada”; a preocupação com a oralidade; o embate entre gramáticos e lingüistas e a relação entre uso de gramática e ascensão social. Muito além de buscar respostas definitivas, este texto pretende mapear as discussões que perpassam a prática e reflexão sobre o ensino de língua portuguesa e defender a idéia de que é necessário, talvez inevitável, assumir a desestabilização do objeto de ensino e buscar maneiras contextualmente sensíveis e compromissadas de renovar a prática pedagógica.
Palavras-chave: ensino de língua portuguesa, gramática tradicional, lingüística, renovação
ABSTRACT
The main objective of the present article is to contribute to the discussion on the traditional and linguistic approaches to the field of portuguese language teaching. Two texts were constructed and distributed for commentary among students and professors of the Curso de Letras. The first text presents the traditional grammar perspective and the second, the linguistic perspective. Our intention in promoting a debate was to access our coleagues’ representations on the concept of grammar and its application in teaching, and on the role of linguistics on the practice of language teachers. The topics that emerged from the commentaries and that were focused on on our final discussion were: the notion of a “contextualized” grammar, the preoccupation with orality, the debate among grammarians and linguists and the relation between grammar and social ascension. Beyond the search for definite answers, this text intends to map the discussions that pass by the practice and reflection on portuguese language teaching, and to sustain the idea that it is necessary, maybe inevitable, to assume the desestabilization of the object of teaching and look for contextualized and engaged ways to renew the pedagogical practice.
Key words: portuguese language teaching, traditional grammar, linguistics, renewal.
1 INTRODUÇÃO
A história deste artigo tem início no dia 26 de maio de 2003, quando Itajaí recebeu a visita do Professor de Língua Portuguesa, Pasquale Cipro Neto, a convite da Prefeitura Municipal. Sua fala atraiu aproximadamente mil pessoas. Formavam o público professores e alunos de cursos de Ensino Médio e Universitários de comunidades locais.
Por trabalharmos na área do ensino da língua, percebemos que a fala do Professor Pasquale suscitou aspectos importantes a serem considerados na formação do professor de língua. Tais aspectos estão ligados a uma visão normativa da língua e do seu ensino, não considerando as contribuições que os estudos lingüísticos têm trazido para o repensar das práticas tradicionais e sugerir novas formas de abordagem desse ensino.
Como foram raras, durante a palestra, interferências nesse sentido, este fato nos serviu de provocação para buscar a compreensão que nossos colegas, professores e alunos do Curso de Letras, têm a respeito de questões fundamentais, tais como: conceito de gramática e sua aplicação no ensino; e o papel da lingüística na prática pedagógica do professor de línguas. Para acessarmos as representações que essas pessoas trazem a respeito desses temas, o grupo construiu dois textos que viriam a servir de referência para a reflexão e o posicionamento. O primeiro texto tratou de “Gramática Normativa/Tradicional e ensino de língua portuguesa”. O segundo, de “Lingüística e ensino de língua portuguesa”[2]. Convidamos, então, professores, acadêmicos e egressos do Curso de Letras, para tecerem seus comentários a partir dos textos base. O último passo foi nossa própria análise sobre os posicionamentos dos comentadores.
O resultado desse processo tomou a forma de um ensaio em que está a multiplicidade de opiniões e idéias sobre nosso objeto de reflexão –a língua e seu ensino. Do início ao fim, o texto propõe-se a mostrar os vários enfoques que nós, como falantes e estudiosos, podemos perceber sobre a língua, incluindo nossas certezas e contradições.
2 TEXTO 1: GRAMÁTICA NORMATIVA/TRADICIONAL E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA:UMA VISÃO POSSÍVEL
Cada vez mais o brasileiro preocupa-se com a forma correta e culta da língua a fim de melhorar sua comunicação e, conseqüentemente, seu nível social. Afinal, qual é o destino de um profissional que encontra dificuldades em transcrever um relatório ou fazer uma solicitação ao seu chefe repleta de erros de português?
Qual o destino de alguém que não domina o português padrão, tendo em vista que esse é exigido cada vez mais na busca por emprego, em concursos ou testes de admissão, refletindo desta forma um novo contexto histórico em que vivemos, de mudanças no mundo do trabalho e exigências cada vez maiores de qualificação profissional?
Vale lembrar ainda a questão da cidadania. O domínio das regras da língua escrita e do bem falar é um dos meios de as pessoas alcançarem a condição de cidadãos. Somente a partir do acesso a essa modalidade da língua, que tem na gramática sua orientação, é que temos acesso às leis, aos espaços sociais privilegiados, à defesa de nossos interesses.
Dados os fatos, é claro a qualquer indivíduo que a gramática normativa é de fundamental importância para o bom entendimento entre as pessoas e sem ela não há elaboração clara de idéias e menos ainda o alcance de nossas intenções em uma situação de comunicação, deixando-nos fadados à incompreensão. Assim, sem dominar a forma padrão, as regras da língua e os recursos da retórica, é impossível ter sucesso na comunicação.
É também através da gramática normativa que conseguimos, até hoje, manter a unicidade de nossa língua. Levando em conta o tamanho do nosso país-continente, imagine quantos dialetos estaríamos usando a partir das especificidades regionais, se não tivéssemos o parâmetro da escrita e as normas a garantirem a unidade do idioma.
Não poderíamos deixar de mencionar, ainda, a invasão de estrangeirismos que sofre nosso idioma, tornando-se, com isso, contaminado por culturas externas que impõem toda a sua hegemonia comercial e cultural, e acabam também por dificultar a compreensão entre os usuários da língua enxertada. Sem entrar no mérito da questão, o que é inadmissível é o uso tolo e indiscriminado de estrangeirismos, que deve ser controlado. Em um país em que existe ainda uma dificuldade tão grande para a aquisição da prática escrita, do bom português, isso serviria apenas para agravar o problema.
Nesta perspectiva, podemos buscar subsídios na etimologia das palavras, que traz embasamento suficiente para um amplo esclarecimento sobre os conceitos da língua aos nossos estudantes. Peguemos como exemplo a classe gramatical dos substantivos. Temos que buscar o verdadeiro sentido lexical para compreendermos esta classe. O substantivo designa algo que realmente possui substância, subsistência. Sendo assim, a partir do que sugere Pasquale, devemos abrir as torneiras dos substantivos, buscar na raiz da palavra o seu significado, entender a sua substância na frase. Isso induzirá o aluno ao raciocínio e as aulas não mais se basearão nos arcaicos métodos da decoreba.
A gramática normativa tem ainda grande importância na redação de um texto claro, coerente, preciso e eficaz. Tomemos como exemplo as conjugações verbais, que determinam com precisão o tempo em que se situa o acontecimento e contribuem para que não confundamos os sujeitos dentro das orações.
Então, é neste momento que se torna fundamental a conscientização dos profissionais de Letras. Temos como função garantir a formação do bom falante e do bom escritor. Para tal, torna-se, mais do que nunca, necessário que mantenhamos o ensino da gramática normativa como a primordial base de nossos esforços em prol de uma educação sensata e de qualidade.
2.1 Comentários sobre o texto 1[3]
Comentador A: “Em um curso de graduação em Letras, é de extrema importância que seja valorizado o uso da gramática normativa na produção de textos orais e escritos. Os acadêmicos, futuros professores de língua portuguesa, são responsáveis por ajudar a manter o padrão culto da língua e uma certa unicidade de comunicação em um país tão imenso, com tal pluralidade cultural e influências tão variadas. Estudos mais recentes têm mudado bastante o enfoque do ensino de Língua Portuguesa, propondo o ensino da gramática de forma contextualizada para que realmente seja aprendida e aplicada na fala e na escrita, na forma de textos que estejam de acordo com a norma culta”.
Comentador B: “Com a modernidade, tudo o que é tradicional deixa de ter seu valor e passa a ser considerado ultrapassado e/ou ineficaz. Mas, o que vem a ser, de fato, tradicional? Se ensinar conceitos gramaticais for tradicional, os professores de Língua Portuguesa devem ser tradicionais. Entretanto, se o problema for a estratégia usada pelo profissional, sem a devida prática textual, creio que se adequaria o termo ultrapassado.Há ainda outros campos a serem explorados para um domínio do “português padrão”, como a leitura, por meio da qual se deve trabalhar também a oralidade, além da interpretação.
Comentador C: “Tem-se que a gramática, entendida como um conjunto de normas que devem ser seguidas, vem de um lugar determinado historicamente: de elites intelectuais. O primeiro problema que se coloca é como aproximar essas normas do conhecimento lingüístico já incorporado pelos usuários, principalmente aqueles que vêm de camadas populares. O segundo, trata da relação que há entre conhecimento efetivo de uso da gramática e ascensão social. Ascensão em que sentido? O terceiro ponto se refere à relação entre conhecimento efetivo de gramática e uso efetivo e exercício pleno da cidadania. Penso que são três questionamentos que poderiam merecer atenção”.
Comentador D:“É interessante notar como as opiniões mudam com o passar do tempo. Não muito distante, os gramáticos acreditavam que a gramática deveria ser passada como garantia de um processo de aprendizado, ou seja, independente da situação do aluno, as regras deveriam estar contempladas corretamente, não sendo necessário uma contextualização. Hoje, defende-se a idéia de se entender primeiro a etimologia da palavra para somente depois fazer as devidas conexões. Por exemplo, o substantivo tem que ser entendido para depois entrar em ação com suas devidas propriedades, contextualizando assim uma situação. Acredito que, como professora do 3º ano do Ensino Médio, os vestibulares e concursos também estão evoluindo nestes aspectos. Hoje os exames não são mais individualizados. Pelo contrário, há uma interdisciplinaridade e, conseqüentemente, uma contextualização. Falar corretamente a língua exige muito mais que conceitos e normas. Falar corretamente exige cultura e classe social. Sabemos que o poder da língua defende classes e circunstâncias e paralelamente a escrita. Cabe a nós, professores, não criarmos ranços gramaticais em nossas aulas, e sim contextualizar o mundo, através da escrita, para que ambos sigam sempre juntos”.
Comentador E: “Todos os argumentos que sustentam a necessidade do ensino da Gramática Normativa são válidos. Mas existe uma realidade que não pode ser escondida, esquecida ou deixada de lado. O lingüista Marcos Bagno, no artigo “Nossa língua vai mal?[4]”, produzido para um debate na TVE-Rio e reproduzido por vários meios, questiona veementemente o predomínio forçado da gramática tradicional, questiona a maneira como se ensina português no Brasil e acredita que ainda não foi feito o verdadeiro levantamento lingüístico da nação. Preservar e ensinar a matriz, a norma padrão, é fundamental, mas devemos estar prontos para repensar nossos métodos, devemos acabar com alguns paradigmas e criar outros. Quiçá o problema não esteja só naquilo que tentamos ensinar, e muitas vezes não conseguimos. Talvez o problema maior resida na nossa metodologia de ensino, na maneira como abordamos e repassamos o assunto. Preservar não significa, deste nosso modesto ponto de vista, fechar com sete chaves o tesouro lingüístico e não permitir que nada entre e o contamine. A língua é um ente vivo e como tal deve ser tratada. Estudiosos da língua, professores, escritores, todos devem colaborar e encontrar uma saída. Com certeza sairá desse esforço comum o consenso que deixará como legado uma língua forte, viva, vibrante”.
Comentador F: “Acreditar que a língua portuguesa está restrita apenas ao que se encontra nas gramáticas, nos dicionários e nos livros didáticos é, no mínimo, ignorar a realidade de hoje. Toda língua evolui naturalmente e segue seu caminho, acompanhando as transformações e mudanças que ocorrem com as manifestações da cultura dos povos. Valorizar-se a língua materna de um indivíduo, a que ele traz internalizada desde seu nascimento, é de suma importância, mas deve-se atentar sempre para a necessidade do ensino do português padrão, como instrumento imprescindível à formação do bom falante e do bom escritor. O artigo, ao destacar a gramática normativa como essencial à aprendizagem da língua portuguesa, busca conscientizar, de maneira clara e objetiva, os profissionais da área de Letras, quanto à formação de cidadãos com plena capacidade de uso da norma culta, tendo preparo adequado à busca de seus objetivos profissionais, econômicos e sócio-culturais”.
3 TEXTO 2: LINGÜÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: OUTRA VISÃO POSSÍVEL
Na sociedade da informação e do mercado em que vivemos, as pessoas têm sua competência comunicativa testada dia a dia. Com esta grande mudança no cenário mundial já não é mais suficiente sabermos nomenclaturas, estruturas artificiais e afins. O grande desafio do ensino de língua materna hoje, no Brasil, é possibilitar a formação do cidadão letrado – aquele que sabe fazer uso social da escrita, da leitura e da oralidade, em contextos diversificados, de acordo com suas necessidades. Sabendo fazer uso social da língua(gem), o indivíduo letrado pode pensar e agir com autonomia, não apenas decodificando palavras, mas enredando-se em discursos, provocando, resistindo, revelando-se a si mesmo (ou não), fazendo uso das estratégias que o contexto demandar e causando os efeitos de seu interesse.
Se o letramento é o objetivo do ensino, não podemos nos preocupar apenas com a correção lingüística, pois um aluno crítico não apenas corrige a língua, mas também a manipula segundo seus interesses e a transforma. Para aproximarmos uma formação desta complexidade, é necessário que primeiro os professores tomem conhecimento das pesquisas feitas sobre língua(gem). A partir das contribuições da Lingüística e da Lingüística Aplicada, dos estudos sócio-pragmáticos e discursivos, isto é, aqueles que levam em conta a situação de enunciação e suas implicações (ou as condições de produção, segundo a análise do discurso) e tratam o texto como objeto central de análise, muita coisa mudou também na educação, principalmente nas metodologias de ensino da língua. Houve uma valorização da língua em contextos de uso reais, explorando-se o desenvolvimento da análise lingüística e da produção e interpretação de textos presentes na vida de qualquer cidadão. O ensino tem sido, portanto, planejado a partir do objetivo de desenvolver no aluno uma competência comunicativa que passa tanto pela competência gramatical ou lingüística, quanto pela textual.
Em se tratando de produção textual, é importante deixar claro que ela não se restringe à escritura de redações, mas inclui o manejo de uma gama de tipos de textos orais e escritos, afinal, para que se consiga fazer uso social da língua(gem), será necessário conhecermos o maior número de recursos de que esta dispõe. A proposta, portanto, seria tornar as aulas de língua(gem) em espaços para a discussão dos diferentes usos da língua, possibilitando ao aluno interpretar e fazer escolhas coerentes com a situação de conversação ou de escrita, não sendo passivo diante do texto. Tanto a leitura quanto a produção textual envolvem criatividade, confirmação ou refutação de hipóteses acerca do que é exposto/proposto, conforme os conhecimentos da atividade, da estrutura textual e de mundo do leitor/produtor. Seguindo esse raciocínio, as capacidades técnicas deverão ser desenvolvidas de forma empírica, através da leitura variada – (tele)jornais, revistas, literatura, cinema, música – e da produção constante, várias vezes por dia, todos os dias: narrativas, cartas, entrevistas em contextos formais, debates etc. É claro que, incluído neste trabalho, estaria o aprendizado da norma culta e de recursos expressivos provenientes de outras variedades e campos semióticos. Ao propiciarem atividades que desenvolvam as competências dos alunos em leitura e produção textual, os professores estarão contribuindo para aumentar o grau de letramento desses alunos.
Muitos professores, ao se confrontarem com esta realidade, estão tentando alcançar novas maneiras de lidar com o texto no processo pedagógico. Esses profissionais apóiam uma prática baseada no conhecimento de mundo do aluno, preparam aulas visando utilizar os conhecimentos já conquistados pelos discentes, ampliando e modificando sua forma de ver e sentir a realidade, um plano pedagógico pautado na interação professor/aluno. Nesse âmbito, a leitura será fundamental para que o próprio professor incorpore as novas pesquisas e teorias desenvolvidas sobre o assunto, para que saiba como trabalhar com seus alunos. Um professor que trabalha a partir de uma única visão, não produz, não planeja suas aulas, apenas confiando em sua apostila ou livro didático, não pode e não conseguirá fazer com que seu aluno ultrapasse qualquer fronteira, já que ele mesmo não o faz. Ao contrário de ignorarmos as mudanças presentes, aprendermos e buscarmos formas de aprimorar nossa metodologia é o primeiro passo para uma mudança maior na educação e, conseqüentemente, para alcançarmos nossa real cidadania.
3.1 Comentários sobre o texto 2
Comentador A: “Sabemos que uma Língua falada por um povo é um organismo vivo e, como tal, está em constante evolução. Portanto, quem a utiliza, quem a ensina, tem que aprendê-la constantemente, para não ficar por fora das mudanças que ocorrem com ela. Os professores não podem mais ficar presos a manuais antigos e obsoletos ou trabalhando a língua apenas com textos clássicos dos séculos passados. Ao trabalharmos os aspectos gramaticais, é preciso incluir textos variados, atuais e até a produção dos próprios alunos se quisermos que tenham competência em leitura e produção textual, que tenham a capacidade de entender realmente o que lêem”.
Comentador B: “As aulas de Língua Portuguesa têm tomado, realmente, um novo rumo a partir do desenvolvimento e publicação de pesquisas no campo da lingüística. Novas estratégias têm sido criadas para que se dê conta dessa nova perspectiva. A gramática, que deve ser trabalhada sim, deixa de ser um fim e passa a ser um meio. Entra em cena uma nova habilidade: o desenvolvimento da oralidade, que propicia um trabalho prazeroso, diversificado, rico. Resta esperar que os frutos desse processo de ensino sejam melhores que os de até então”.
Comentador C: “Este novo texto está muito interessante e provocativo. Vem reforçar uma preocupação, inclusive encontrada em minhas aulas (...). É preocupante o que se encontra nos planos de ensino de professores. Não há clareza conceitual com a noção de língua com que se trabalha, com uma certa gradação de competências lingüísticas, entre outros. Portanto, vale a pena verticalizar a discussão”.
Comentador D: “Assim como percebemos mudança no ponto de vista dos gramáticos, percebemos no dos lingüistas, que antes acreditavam que a contextualização era de extrema importância, a comunicação deveria ser respeitada, independente da norma culta, isto é, a ligação entre o emissor e receptor era o que importava. Hoje, podemos perceber que ambos os lados, dos gramáticos e dos lingüistas, estão entrando em sintonia, pois não podemos separar a língua de uma contextualização. Os lingüistas, que sempre defenderam a contextualização da língua junto ao indivíduo, agora defendem o uso da norma padrão como carro chefe da nossa língua”.
Comentador E: “A proposta deste texto parece clara, concreta e pertinente. O ensino de Língua Portuguesa exige uma constante renovação por parte do professor. Aquele indivíduo falante, autoritário, dono da verdade, não só está fora de moda, também se transformou num ser pré-histórico, ultrapassado e sem nenhuma capacidade para ensinar. Experiências no campo da Lingüística, no campo da Educação, na Psicologia e em outras áreas, enriqueceram o ensino. O professor deve lançar mão de novos métodos, provocando a discussão, chamando os alunos para o debate, recriando o conhecimento. Muitas "linguagens" fazem parte do nosso dia, desde a mais simples e coloquial, até aquelas mais complexas, envolvendo termos técnicos, passando pelas novidades criadas pela internet e pelos jovens. Todas elas cumprem um papel determinado e seus limites são claros. Ninguém, com um mínimo de discernimento, escreve uma carta formal usando a linguagem que vemos nos chats, nos bate-papos da Internet. Mas quando alguém assume o papel de internauta, navegando no mundo virtual, esquece a formalidade e adere à nova linguagem. Isso está no nosso dia a dia. O professor deve pesquisar e entender o real estágio do conhecimento do aluno. A partir desse ponto, deve fundamentar e desenvolver seu trabalho, recriando o conhecimento do aluno e levando-o para um novo estágio. A inovação e a criatividade são fundamentais no processo educacional. Num mundo cada vez mais complexo e competitivo, a interação do professor é fundamental, principalmente se ele consegue trazer para a sala de aula elementos novos que vão além da cartilha”.
4 NA TRAMA DOS DIÁLOGOS: NOSSOS CONTRAPONTOS
Neste diálogo entre os textos, queremos destacar alguns temas que saltam dos comentários, por serem recorrentes e significativos para o debate aqui proposto: a noção de uma gramática “contextualizada”; a preocupação com a oralidade no ensino da língua materna; o embate entre gramáticos (tradição) e lingüistas (modernidade) e a relação entre uso de gramática e ascensão social.
O primeiro tema eleito nos posicionamentos dos comentaristas é a evolução dos conceitos de gramática, principalmente a relação necessária entre gramática normativa e contexto, que vem sendo chamada por muitos professores de “gramática contextualizada”.
Os estudos lingüísticos que tomaram por base os modelos pragmáticos inseriram a noção de contexto, compreendido como as condições imediatas de uso da língua, isto é, os sujeitos e suas intenções na ação comunicativa estão mediatizados por uma realidade social e histórica – o aqui e agora- que determinam o que dizem e como dizem. Assim, para alcançar as intenções nos mais diversos contextos discursivos, os sujeitos lingüisticamente competentes farão escolhas quanto ao léxico, ao tipo de texto , bem como em relação à norma mais adequada a cada situação comunicativa.
O que vimos percebendo nas propostas de ensinar uma tal “gramática contextualizada” vai em outra direção. Muitos manuais didáticos têm trazido o ensino da gramática tradicional dentro de textos, no intuito de “modernizar” e “arejar” o ensino da língua – “ensinar a gramática tradicional com a devida prática textual” (Comentador B), uma vez que a lingüística textual está aí e precisa de alguma forma ganhar espaço na sala de aula. É visível o equívoco: passa-se um verniz de novidade na GT quando se usa o texto como pretexto para ensiná-la.
Para um ensino relevante da língua portuguesa é preciso que os professores se apropriem dos estudos sobre o texto, a gramática do texto, isto é, as regras e estratégias lingüísticas envolvidas na construção do texto enquanto unidade de sentido, bem como compreendam e dominem a língua padrão requerida em contextos de uso formais. A partir dessa diferenciação é possível planejar estratégias adequadas e que realmente desenvolvam a competência comunicativa de nossos alunos.
O segundo ponto a discutir é a oralidade, que vem ganhando espaço nas aulas de língua e sendo compreendida como competência fundamental a ser desenvolvida pela escola. Mas é preciso diferenciar as formas de abordá-la no ensino.
A oralidade no sentido de discussão em sala de aula é definida como objeto constituinte de reflexão coletiva no processo de formação escolar, no qual o professor faz uso de estratégias para que o aluno participe dos momentos de aprendizagem por meio do gerenciamento de diálogos interativos, tendo em vista que, ao verbalizar, ele organiza conhecimentos.
Outra forma de apresentá-la é com a preocupação no desenvolvimento da oratória e no poder de persuasão do orador como forma de obter status social, sobressaindo-se na “arena das palavras”. Exemplo característico são os políticos, advogados, professores, palestrantes e comentaristas no ramo da comunicação, que têm, neste atributo, a base de sua profissionalização. Podemos considerar a oralidade também como um elemento de análise dentro de um novo contexto de ensino, ou seja, como esta assume o novo espaço de educação baseado em um discurso mais científico e real e menos técnico e ideal.
Há quem compreenda, ainda, a oralidade como instrumento para treinar a dicção, exemplo disso são as leituras orais em sala, exigidas pelo professor, que pouco têm a ver com a verdadeira importância da leitura na vida dos alunos.
Outra questão levantada pelos comentários aos textos base foi o embate entre gramáticos e lingüistas. Nesse embate, destacamos a noção de "norma culta". De um lado, temos os gramáticos defendendo a correção lingüística pautada em um modelo ideal de norma. De outro, os lingüistas defendendo uma visão de norma real, fruto dos usos lingüísticos dos falantes. Filiar-se a uma ou outra concepção terá impactos importantes na sala de aula de língua portuguesa (e até mesmo de outras disciplinas), uma vez que a norma culta se configura como um dos principais objetos de ensino-aprendizagem durante toda a vida escolar.
Apesar de concordarmos que o conhecimento proveniente da gramática normativa não pode ser desconsiderado por um estudioso da língua, entendemos que sua perspectiva não é mais suficiente para subsidiar um ensino que se quer pautado em uma visão social da linguagem. Se consultarmos algumas das gramáticas normativas atuais e materiais didáticos, veremos que, apesar de considerarem a dinamicidade da língua, essa dinamicidade não aparece nos momentos de estudá-la. Na maioria dos casos, é a prescrição que está presente[5], não se dando possibilidade de análises complementares, em termos de sintaxe e semântica, tampouco de pragmática e discurso. Dentro da perspectiva prescritiva, o ensino da norma culta não vai muito além da dicotomia certo-errado.
Uma visão social da linguagem vai considerar a norma culta como as variedades usadas pelos falantes cultos os falantes pertencentes à classe social e economicamente prestigiada, residentes em zonas urbanas e com escolaridade superior completa. Nesse sentido, a norma culta está presente nos usos lingüísticos desses falantes em situações reais, orais e escritas (no Jornal Nacional, no Diário Catarinense ou na Folha de São Paulo, na sala de aula da universidade, nas novelas e também na literatura). Considerando-se a dinamicidade da língua, não podemos falar em norma culta no singular: a norma culta é, então, plural; existem variedades cultas, que diferem de uma região para a outra e que mudam com o tempo. A análise lingüística pautada nesta visão considerará os efeitos de enunciados lingüísticos na prática do falante.
Estudos lingüísticos[6] têm demonstrado que, por mais que se direcione o ensino de língua a uma perspectiva "ideal" de norma culta, o que prevalece no cotidiano é o "real", pois existe limite na regulação lingüística e a norma mais forte é aquela que vem da própria língua, sistematicamente re-construída pelos falantes. Muito mais do que rejeitarmos o tradicional em prol de uma (pós)modernidade inevitável, precisamos pensar em como esse tradicional se insere no mundo de hoje. Lidar com a língua como se a gramática normativa fosse início, fim e meio é fechar os olhos para várias das conquistas dos estudos da linguagem. A gramática normativa tem seu valor historicamente constituído e inquestionável. As outras gramáticas (descritivas, reflexiva, gerativa etc.) trazem um conhecimento que não pode ser desprezado. Mas a língua mesmo, ela está na boca e no corpo do povo. A grande questão é deixar nosso objeto de ensino a língua ser (de fato) como ele é: dinâmico e heterogêneo. Ainda, ao sistematizá-lo e recortá-lo, para efeitos pedagógicos, não podemos nos esquecer de que sua manipulação envolve outras normas, "ocultas"[7]. Ao ensinar a língua, ensinamos também valores e crenças que muitas vezes nós mesmos não enxergamos -- há ideologias implícitas que reforçamos ou questionamos. Cabe dizer que a norma culta é um dos pilares do ensino de língua e compreender as diferentes visões sobre ela e os efeitos dessas visões é uma tarefa também daquele que a quer ensinar.
Um último ponto a destacar é a relação entre uso de gramática e ascensão social. Não há indícios de que conhecer a norma ideal leve o aluno a melhorar sua condição social, uma vez que não há conexão direta entre o uso lingüístico e o processo de ascensão social. No entanto, percebemos que há mais oportunidades para aqueles que sabem manipular a língua em diferentes situações, com pessoas de diferentes classes sociais: e esta competência comunicativa deveria estar acessível a todos. Afinal, qualquer um pode aprender a norma culta (que é apenas uma parte da competência comunicativa), o que não quer dizer que "tudo seja válido", que “o que vale é a compreensão”. Um uso inadequado da língua pode ser reflexo de uma competência comunicativa pouco desenvolvida e pode deixar o falante em situações desconfortáveis. Além disso, sabemos que o falante que não sabe manipular a norma culta, usá-la como bem entender, pode ser alvo de preconceito lingüístico.
Entretanto, se trabalharmos apenas com a norma culta ideal, dificilmente o aluno irá incorporá-la nas práticas sociais reais, especialmente os alunos que não pertencem à classe social de prestígio. A proposta é conhecer a norma real através do estudo de gêneros textuais que circulam em todas as esferas da sociedade. Isso não significa que não haveria estudo de gramática, afinal, não existe língua sem gramática, que é o foco da análise lingüística. É proposta também trabalhar os conceitos gramaticais, no entanto, demonstrando a própria dinamicidade desse tipo de conhecimento metalingüístico, pois os conceitos também mudam.
5 NOSSAS CONSIDERAÇÕES (QUE NÃO SEJAM FINAIS!)
O ensino de língua, assim como vem ocorrendo em todas as áreas onde se encontra a ciência, dispõe de diversas teorias/idéias sobre o mesmo objeto. Este é o reflexo de vivermos em um mundo que é redescoberto constantemente pelas ciências e transformado pela informática. As transformações na nossa sociedade criaram um novo mundo em que o conhecimento a ser descoberto não é mais visto como algo-em-si, isolado, mas em suas complexas relações com o contexto a que pertence. Surge, assim, um conflito entre o mundo das certezas (tradicional, regido por leis imutáveis) e o mundo das incertezas (complexo, em constante transformação)[8]. Esse conflito nos obriga a fazer parte do mundo pensante, que sejamos sujeitos interrogantes, que tentam encontrar um novo centro ou ponto de apoio em meio às dúvidas e incertezas.
As transformações acima mencionadas dependem de nossa crescente conscientização em relação a elas e ao novo lugar que cabe a cada um de nós nesse universo. A apreensão dos profissionais da língua a este respeito é compreensível, uma vez que nossa tendência natural é optarmos pelo mundo das certezas, das leis imutáveis. No entanto, o primeiro passo para mergulharmos nessa nova realidade é a auto-conscientização de que somos forças atuantes no contexto em que vivemos e que precisaremos escolher: seguir o rumo natural da sociedade ou ficarmos à margem dela.
Nesse sentido, cabe, finalmente, indagar sobre a perspectiva de ensino a ser assumida pelo profissional de Letras. Entendemos ser necessário que o professor tenha clareza quanto a seu objeto pedagógico, que assuma a desestabilização do ensino tradicional de gramática e se insira no discurso e prática de renovação do ensino de língua materna.
6 REFERÊNCIAS
BAGNO, M. (Org.) Norma lingüística. São Paulo: Loyola, 2001.
BAGNO, M. (Org.) Lingüística da norma. São Paulo: Loyola, 2002.
BAGNO, M. Norma oculta. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
COELHO, N. N. Edgar Morin: A ótica da complexidade e a articulação dos saberes. Pluriverso (Revista Eletrônica). Fev. 2001.
RAMOS, J. M. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
[1] Gostaríamos de agradecer aos alunos, egressos e professores do Curso de Letras que contribuíram com seus depoimentos para a concretização do nosso trabalho.
[2] Tais textos tentam refletir a visão corrente no meio acadêmico, não tendo a preocupação de defender pontos de vista, mas sim de provocar o debate.
[3] Por questões de ética acadêmica, não identificamos os comentadores. Os textos foram editados a partir dos comentários originais.
[4] Texto disponível em: http://www.marcosbagno.com.br/conteudo/artigos_e_conferencias.htm
[5] Claro que algumas gramáticas demonstram esse caráter prescritivo mais explicitamente do que outras. Percebemos, no entanto, que seu uso está inserido em uma prática social prescritiva, ou seja, faz-se delas uso e interpretação sob uma ótica normativa.
[6] Por exemplo Ramos (1997), Bagno (2001 e 2002).
[7] Bagno (2003).
[8] COELHO (2001) disponível em http://www.suigeneris.pro.br/nelly1.htm