Por Uma Mitologia das Carrancas do Vale do São Francisco
Por Uma Mitologia das Carrancas do Vale do São Francisco
Por: Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo Nogueira Luna) - UPE/FFPG
As carrancas dos barcos do Vale do São Francisco hoje perderam sua função inicial de proteção das embarcações contra perigos concretos e imaginados do percurso do rio por uma função de peça de comércio artesanal. Algumas carrancas, quando apresentadas pelo marchand, como de autoria deste ou daquele mestre artesão mais reconhecido, alcançam no comércio de peças de artesanato internacional valores consideráveis. Assim, no lugar de servirem como elemento protetor contra maus espíritos e perigos do rio, que avisariam com três gemidos a proximidade destes, bem como com suas feições agressivas afugentariam outros espíritos, as carrancas, mais comumente têm sido utilizadas como peças decorativas de cantos de salas e escritórios.
De fato, quanto à origem das carrancas, seu aparecimento perde-se um pouco no tempo, os primeiros registros de existência das carrancas aparecem na segunda metade do século XIX, segundo Zanoni Neves:
“Na segunda metade do século XIX, os barqueiros adotaram a figura, hoje conhecida como carranca. Um dos primeiros cronistas a mencioná-la foi Durval Vieira de Aguiar em 1882: ''Na proa vê-se uma carranca ou grifo de gigantescas formas, de modelos sem dúvida transmitidos pelos exploradores dos tempos coloniais'' (1979, p. 33). Figura, figura de proa e leão de barca são os termos ou expressões que os remeiros e outros ribeirinhos utilizavam para se referirem às carrancas.”(Zanoni, 2006)
Alguns estudiosos mais ligados ao âmbito das teorias menos comprováveis cientificamente e de caráter mais polêmico, sustentam que esse seria um indício da passagem dos Vikings pelo Brasil em época muito anterior ao descobrimento. Um dos defensores dessa tese é Jacques Mahieu, que no livro Os Vikings no Brasil argumenta que existem vários indícios dessa passagem, como inscrições na Amazônia, na Pedra da Gávea (RJ) e as carrancas que seria um costume transmitido pelos Vikings. Tese ousada, mas que peca pela ausência de dados comprováveis de qualquer uso de carrancas anterior ao período de colonização do Vale do São Francisco.
De qualquer forma é inegável a possibilidade de comparações entre aspectos funcionais, estéticos e culturais das carrancas do São Francisco e as carrancas das galeras vikings.
Alguns artesãos se destacaram na produção de carrancas, hoje, com o decréscimo e quase desaparecimento da navegação ribeirinha assim como o fim dos gaiolas, a utilização das carrancas ganhou uma função de artefato artístico artesanal, de modo que a flutuabilidade, bem como a adaptabilidade da carranca ao barco tornou-se um aspecto mais secundário.
Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany (1884-1987), ou simplesmente “Guarany”, destacou-se como o maior artista de carrancas. Guarany é bisneto de José Dy Lafuente, jesuíta espanhol, refugiado do Convento da Bahia que amasiou-se com uma negra africana de Moçambique, indo morar na cidade de Curacá, às margens do São Francisco, próximo a cidade de Juazeiro, onde passou a trabalhar como professor e constituiu sua família.
Ana das Carrancas é Ana Leopoldina Santos, filha de artesã e agricultor, nasceu em 1923, em Santa Filomena, distrito de Ouricuri, Pernambuco. Ana das Carrancas é um dos nomes mais conhecidos quando se fala em carrancas do rio São Francisco
Ubaldino, filho de Guarany, que começou sua produção em 1972 é outro importante artesão de carrancas.
Mestre Davi (Davi José Miranda Filho), um famoso carranqueiro de Pirapora perpetua, através da arte de talhar a madeira, a história e a cultura dos povos ribeirinhos. Mestre Davi tornou-se internacionalmente conhecido quando Jacques Cousteau levou uma carranca a todos os cantos do mundo pelo barco "Calypso".
Dona Lurdes Barroso, carranqueira também de Pirapora, é uma artista que demonstra habilidade no manuseio de instrumentos como facão, machado e formão.
Expedito Viana, ainda de Pirapora (MG) é outro importante artesão carranqueiro que preserva a arte de entalhar a madeira. Expedito ficou conhecido quando confeccionou a majestosa estátua de São Francisco de Assis, com 3,5 metros de altura, que se encontra na Avenida Salmeron, na Praça do Posto Três Palmeiras.
Listamos aqui apenas alguns dos nomes mais conhecidos no universo do artesanato de carrancas.
O que buscamos destacar nesse nosso breve texto, porém, não é um painel dos artistas, nem tampouco a busca da explicação da origem das carrancas. Nosso intento maior é uma observação acerca do modo de produção das carrancas e um comentário acerca da natureza estética dessas figuras.
As carrancas, em geral, são feitas de madeira, assim como os barcos a que se destinavam. Com a utilização de instrumentos para o corte e o talhe da peça de madeira (facão, machado e formão) o artesão vai moldando a peça de maneira intuitiva. Não se tem o hábito de se fazer um esboço ou desenho, mas diretamente na madeira o artista vai compondo a cabeça da figura. Ana das Carrancas, de Ouricuri, por sua parte, usa o barro extraído do próprio rio São Francisco para composição de suas figuras de carranca. Sendo originalmente artesã ceramista, Ana compunha antes panelas, potes, brinquedos, boi-zebus, cavalinhos e santos de barro, agora quando ela passa a produzir carrancas também de barro o que ocorre é a transposição de uma técnica para outra, uma vez que as ferramentas para composição já não serão as mesmas, havendo pois destaque nesse caso para as próprias mãos no ato de moldar o barro e o torno de oleiro, bem como o forno para cozimento.
Simbolicamente o material usado, madeira ou barro, dá a dimensão da própria modificação da função de uso da carranca. A de madeira tem com o barco, também de madeira, uma identificação harmoniosa do material. Essa identificação, como que garante à cabeça de carranca, colocada na ponta da proa, a condição de vigia, de cabeça do barco personificado ou metamorfoseado num vivente, cuja cabeça é a carranca e o corpo o próprio barco. Nas galeras vikings era essa a conotação que a estrutura do barco buscava, contendo algumas não só a cabeça de carranca (em geral a cabeça de um dragão), como no outro extremo, a popa, se colocava uma estrutura semelhante à calda do animal. Ao se fazer a carranca de barro, quebra-se essa harmonia de material, uma vez que o barro vindo do leito do próprio rio agora mantém não com o barco, mas com o próprio rio sua identificação. Nesse sentido, a carranca de barro como que se distancia da função de protetora do barco para ser a representação do espírito do rio que pode proteger ou não a embarcação em função da intenção do navegador ser aceita pelo rio ou não. Assim, navegadores virtuosos, tementes a Deus, que navegam atendendo as necessidades das populações ribeirinhas seriam protegidos, de outra forma, navegantes gananciosos, astutos pela descoberta de riquezas teriam contra si o espírito do rio. Porém, é fato, que a produção de carrancas de barro, notadamente as de Ana das Carrancas têm uma função mais de peça decorativa artística de colecionadores e admiradores da arte popular do que propriamente a função de carrancas de embarcações.
As carrancas, em geral, são apresentadas como figuras com bocas enormes abertas mostrando, por vezes, dentes caninos proeminentes. Tal boca e dentes têm a intenção de conotar a agressividade da figura, feroz na ação de proteção da embarcação, que ao cabo, representa o próprio corpo do animal formado pelo conjunto barco-carranca. Assim, metamorfoseado em animal aquático que desliza pelas águas do rio, sua boa e seus dentes formam o primeiro aspecto dessa força animal e vital. Abrindo a boca, supõe-se um rugido, ou em alguns casos, um canto de aviso aos espíritos malignos da chegada da embarcação, bem como da força que a protege. Os olhos da carranca, por sua vez, grandes também, conotam a noção de que tudo a carranca vê, não apenas o mundo concreto, físico, mas principalmente o invisível, o espiritual e mágico, o mundo dos espíritos. No caso específico de Ana das Carrancas, que costumeiramente vazava os olhos de suas carrancas de barro, numa espécie de homenagem incorporada ao seu imaginário, devido ao fato de seu marido, José Vicente, ser cego; tal característica dos olhos das carrancas de Ana mostra ainda mais esse aspecto de visão de um mundo invisível, não acessível aos olhos do mundo físico.
A cabeleira da carranca, marcante no caso das de Guarany, demonstra a força vital e guerreira da carranca, como se fosse uma juba caindo pelos lados do pescoço da figura. As cores formam outro aspecto importante da carranca. O vermelho usado em muitas figuras, assim como o negro e o branco reforçam as idéias expostas pelos olhos, cabelos, boca e dentes. São as cores mais usadas. Outras têm a coloração dourada também, algumas carrancas mais antigas têm a coloração desbotada, ou descascada, fruto da característica do pigmento, no mais das vezes, pouco resistente às intempéries, ou ainda, ao sol forte da região, descolorindo depois de algumas estações. Já as carrancas que são adquiridas por colecionadores, admiradores e turistas e que as colocam nas salas, nos escritórios, estas mantêm por mais tempo o vigor de suas cores, abrigadas que estão dos efeitos nocivos do sol e da água do rio.
De forma geral, as cabeças das carrancas têm aspectos antropomórficos híbridos. As orelhas, por vezes, são de leão ou cachorro, quando são de aspecto humanóide, são destacadas em tamanho assim como a boca, os olhos e os dentes. A língua, quando é colocada na figura, também têm o mesmo padrão de desproporcionalidade. Segue-se assim também as sobrancelhas, o nariz e o queixo. Desse modo, o conjunto da figura impressiona pela aglutinação de elementos desproporcionais que disputam o espaço da cabeça, formando um conjunto de aspecto monstruoso, algo diabólico.
Nesse sentido, a proteção declarada que a carranca oferece também apresenta um sentido invertido das figuras de proteção religiosa usadas na náutica. A cruz, a imagem de algum santo ou santa (Nossa Senhora dos Navegantes, Santa Bárbara, Santo Olavo, Bom Jesus Protetor dos Navegantes, entre outras), se caracterizam por uma imagem amistosa ou de bem-aventurança, de aspecto protetor, ao passo que a carranca se contrapõe pela agressividade nas suas formas monstruosas, agressivas. Numa espécie de simbiose ou sincretismo, a carranca típica do São Francisco interpõe-se como o artefato que usa da força diabólica para uma missão de proteção ao navegante cristão. O mal a serviço do bem. Signo, talvez, de uma associação entre a simbologia imagética característica de mitologia africana ou mesmo ameríndia com a religiosidade cristã. Os aspectos africanos da carranca aparecem mais ainda quando observamos as que têm cores fortes (como o vermelho e o tom negro) com o fato das formas desproporcionais ou bem proeminentes como é característico das peças em madeira do artesanato antropomórfico africano banto, iourubá e/ou de nação de angola.
Sabemos que as primeiras populações ribeirinhas do Rio São Francisco a partir do período da colonização eram de característica negra ou índia, como atestam relatos do Padre Martinho Nantes (séc. XVII), do viajante Sir Richard Burton (1867), de Saint-Hilaire (séc. XIX), entre outros. Os remeiros ou barqueiros eram predominantemente de característica negra, sendo até o período anterior à abolição da escravidão, escravos que faziam o serviço de travessia e ligação entre as diferentes cidades. Teodoro Sampaio traz informações mais detalhadas acerca da natureza étnica dos remeiros.
Não se deve esquecer, porém, que a cultura cabocla também incorporou elementos da cultura indígena, de modo que a idéia de espíritos do rio e espíritos da mata possam ajudar ou prejudicar uma travessia é também natural do imaginário ameríndio. Os cabelos das carrancas, em geral, grandes, mas também com predominância da cor negra e lisos ajustam-se mais ao tipo étnico indígena sulamericano do que africano.
As carrancas são o resultado, a nosso ver, de um cruzamento de influências do imaginário cristão português, notadamente do âmbito dos navegadores e exploradores transposto para o cenário da colonização do sertão, misturados sobremaneira com fortes doses do imaginário africano e ameríndio. O cristianismo deu o sentido de proteção, os elementos afro e ameríndio os aspectos estéticos e formais da carranca, como concretizações de figuras de espíritos malignos dominados pelo sentido cristão e postos a serviço da exploração das águas do rio.
Referências Bibliográficas:
MAHIEU, Jacques. Os Vikings no Brasil. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.
NANTES, Padre M. 1979 Relação de uma missão no rio São Francisco. São Paulo/Brasília, Cia. Editora Nacional/MEC/INL.
NEVES, Zanoni. “Os Remeiros do São Francisco na Literatura” em: Revista de Antropologia. São Paulo, vol 46, n.1, 2003. fonte:Fonte:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012003000100004.
PARDAL, Paulo. Carrancas do São Francisco, coleção Raízes. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
SAINT-HILAIRE, A. 1975a Viagem pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. Vivaldi Moreira. Belo Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp.
SAMPAIO, T. 2002 O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo, Companhia das Letras.