A BONECA DE LOUÇA
A BONECA DE LOUÇA
Numa reunião de amigos para conversarem, dançarem e ouvirem músicas, coisas da juventude de então, realizavam-se brincadeiras ingênuas e não comprometedoras, diferentemente de hoje que, em tais circunstâncias, rolam drogas e maledicências. Entre as adolescentes Nenzinha e Licinha, ao se conhecerem, houve uma atração muito grande de afinidades, respeito e sinceridade. Compartilhando conversas amenas, elas se transformaram em confidentes de problemas e aventuras comuns.
Naquele tempo, as festas eram realizadas para os jovens se divertirem. Os moços paqueravam as damas com respeito e estas, por sua vez, faziam-se respeitadas com atitudes de recato. Hoje, os indivíduos já saem de casa, geralmente “turbinados” e enturmados, procuram seus pares com segundas intenções para “ficarem” e usarem drogas lícitas e ilícitas vendidas indiscriminadamente nos locais de baladas, barezinhos e shows, onde prolifera a prostituição sem controle e sem a vigilância dos pais e das autoridades competentes. Ó tempos! Ó costumes!
Diante da amizade construída, Nenzinha e Licinha fizeram um pacto de adotar uma boneca de louça. Batizaram-na com o nome de Angélica – antropônimo escolhido por ser a angélica uma planta de flores brancas cujo perfume inebria a todos e por ser formosa e símbolo de pureza – e combinaram que ambas cuidariam dela como se fosse uma filha de verdade. Que a afeição que as unia se revitalizasse naquele gesto de compromisso com simpatia e estima pela adotada.
Proposição aceita e acertada, elas fizeram uma festa de batizado com toda pompa e circunstância. Convidaram os amigos para a solenidade, e um dos presentes exerceu a função de padre que, paramentado adequadamente para a função, efetuou o seu mister a rigor: chamou os convidados, as madrinhas e padrinhos escolhidos e realizou o ato respeitosamente como convém o ritual. Pegou um recipiente com água e bradou alto para que todos ouvissem a sentença: “Te batizo, Angélica, em nome do Senhor, para remissão de teu pecado, recebei o dom do Espírito Santo, para sempre, Amém. Que as comadres e padrinhos assumam a responsabilidade de juntos criarem como filha verdadeira a quem acabamos de batizar”.
Após a cerimônia, houve comes e bebes, troca de ideias e muitas histórias a respeito da responsabilidade da adoção como determina a lei.
A partir de então, as comadres habitualmente se encontravam e se tratavam efetivamente com respeito e dignidade. A boneca a quem devotavam proteção e afeição era motivo de alegrias. As conversas de ambas giravam em torno da protegida pela qual assumiram a obrigação dos cuidados.
Certo dia, inesperadamente, Nenzinha recebe um recado da comadre Licinha que a chamava com urgência. Como o lugar era pequeno e a distância curta, a solicitada foi às carreiras e encontrou a comadre agonizante. Esta, no estertor da morte inesperada, recomendou-lhe que cuidasse da sua filha, referindo-se à boneca – solteira, e por não ter filhos, a boneca servia-lhe de consolo e preocupação de ‘mãe’ –. Que tomasse conta da afilhada com todo carinho e zelo, finando-se em seguida, para desespero de todos que a conheciam e sabiam do seu procedimento exemplar.
Deus acima de tudo. Descansa em paz, Licinha. Morreste tão imaculada como nasceste, pura e de sentimentos nobres, portanto mereces o acolhimento no Reino dos Céus. Esses são os desejos da comadre Nenzinha que tanto te amou e admirou pelo teu modesto modo de ver o mundo e compreender as pessoas.
Esse conto me foi relatado por dona Nenzinha e fala de um sentimento de amizade, do relacionamento pessoal, de um grande apreço e solidariedade pelo ser humano e que teve a reciprocidade de afeto, de companheirismo e de respeito que se traduziu num pacto de concordância e de afinidades. Hoje em dia, talvez não se encontrem amizades com essas características.
Antonio Novais Torres.
antorres@terra.com.br
Brumado, em 25/05/1997.