DESENREDO - CRIATURAS PERDOAM?
Desenredo – Personagens Perdoam?
Às vêzes nos lançamos a construir o enredo de um romance, uma situação, uma peça, um conto, uma ação na vida real ou fictícia, enfim...
Imaginamos sermos possuidores do mais absoluto domínio dos elementos necessários para a construção da obra: a engenharia, a técnica, a tipologia, a trama, o tempo, ambientação, as estratégias da vida real que combinadas à ficção vão criar a disponibilidade para nos dedicarmos com fidelidade, disciplina e perseverança ao trabalho de dar vida a mais uma criação da nossa engenhosidade, nossa fantasia, nossa carência, nossa necessidade de iluminação, cura ou libertação. Escolhemos o modo e tempos verbais e decretamos primeira ou terceira pessoa. Conforme nossa natureza, mais ousados, incipientes ou covardes, preferimos assumir o papel do narrador, ficando a observar e palpitar sobre nossa própria loucura.
No caso dos grandes talentos da literatura universal, tais criadores trazem à luz os frutos da sua genialidade e total controle das criaturas imaginadas.
No nosso caso, insipientes na arte de sermos deuses oni-potentes, presentes, e enes oni-adjetivos possíveis, enredamo-nos no emaranhado da nossa própria teia, nas ciladas fantasmagóricas de seres insuspeitados, nos perdemos no ciclone de emoções e acontecimentos que nos arrastam com a violência do vento sul, cegam nossos olhos levantando a areia, surpreendendo-nos em ingênua espera de banhar-nos nas águas salgadas da incansável e óbvia maré.
Destarte, a ousadia fala mais forte e alto e nos aventuramos nas águas da Toninha. Mas esta é uma praia de surfistas, não para amadores. Vai-se o chapéu, fica a cabeça.
Não era hora de desaparecer como uma lenda.
Personagens de ficção adquirem vida própria. Estavam ali à espreita, prontas a nos darem mais uma lição.
Crianças, ainda que inteligentes, brincando com fogo, saem queimadas. E são perigosamente ardilosas. Ensaiam um horror ante a possibilidade de uma tragédia, mas no íntimo, riem.
Se somos ainda tão inocentes na arte de tramar, se nos deixamos pegar pelo rabo e sermos girados ao ponto de não discernirmos o que é realidade ou fantasia, divino ou humano, pecador ou santo, místico ou sonho, trevas ou luz, Deus ou Satan, que bem adviria o arrebatamento de tal criatura à dimensão do além-vida? Por isso, o Universo nos poupa das armadilhas do mundo, ainda há muito que aprender, antes do arrebatamento fatal.
Então nos lançamos a criar vidas, inventamos personagens, julgamo-nos capazes de ver sua alma, iluminar ou escurecer seu espírito, atingimos com punhal seu coração, conduzimos seus passos como fantoches, criamo-los à nossa imagem e semelhança, imprimindo neles nosso caráter e nossa vontade feito marionetes.
De repente, somos surpeendidos à beira do abismo da imensa viagem que empreendemos, horrorizados ante a epifania de inusitada e descomunal bocarra em gargalhada dessas criaturas idealizadas, sacolejando o tronco com uma mão na cintura e outra segurando o queixo entre o polegar e o indicador, para depois zombar variada e folgadamente com o dedo em riste.
Na Literatura Grega, existe um único pecado que os deuses não toleram: a Soberba – querer ser Deus. Ter o poder de vida e morte sobre outras criaturas, levá-la à sublimação e à queda, condená-la à fogueira pública e à felicidade, dispor do amor e do ódio, decidir entre a vingança e a piedade, o ciúme e a confiança, o doar e receber, o dar e tirar. Estabelecer o ciclone e a bonança, a guerra e a paz. Sentenciar entre o paraíso e o inferno, sem direito de apelação ao purgatório, nem à expressão da última vontade no derradeito suspiro.
Deuses pagãos conhecem o conceito do ciúme e da vingança; o perdão é um conceito introduzido por Quem, na filosofia cristã, remiu a Humanidade de amarras atávicas e definitivas. Perdoar sete vezes era o entendimento usual, como de Pedro, o fiel cumpridor da Lei. Mas o Cristo Imolado, do alto da Cruz, olha para seus algozes e leva até as últimas conseqüências a disponibilidade do perdão: “Não, Pedro, perdoar sete vezes é para os normais, os cumpridores formais da Lei. Para os que querem superar seu vôo, estes devem voar acima do nível da sobrevivência, este vôo rasteiro na beira da praia, suficiente apenas para captar seu peixinho no bico e matar a própria fome e dos seus.
Se você quer mais, deve lançar-se ao alto mar, voar acima do seu bando, e aí sim, perdoar setenta vezes sete. Então o Crucificado dá a mais pragmática demonstração daquilo que ensinou sobre o perdão: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem”.
Entre os humanos, os mais evoluídos ou espiritualizados, fala-se de compaixão.
Será que criaturas, personagens tratados com tal desdém, conhecem a palavra perdão?
13/09/2005