Brasília:fé cega, faca amolada - Jean Wyllys
22 de maio de 2007 - por Jean Wyllys
Embora me pareça um arquivo de gente, adoro Brasília. A monumentalidade da capital federal me fascina. E, aqui, estou até amanhã, dia 24. O motivo?
Recebi, das comissões de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e do Senado, o convite para ministrar duas palestras: uma em defesa do estado laico (laico vem do latim laicus e é o mesmo que leigo, equivalendo ao sentido de secular, em oposição do de bispo, ou religioso) e outra em favor do projeto de lei que busca criminalizar a homofobia (aversão aos homossexuais e violência contra eles).
A primeira palestra foi um sucesso. Parlamentares e lideranças aplaudiram as minhas colocações, elaboradas a partir de minha expereiência como jornalista e de minha formação na área dos Estudos Culturais.
A seguir, a minha fala:
Fé cega, faca amolada*
Por Jean Wyllys
Jornalista, escritor e mestre em Letras e Lingüística pela Universidade Federal da Bahia
Bom dia a todos! Antes de me apresentar, quero agradecer à Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados pelo convite para participar deste seminário.
Apresentar-se antes de emitir qualquer idéia ou de defender certos argumentos é mais do que dizer quem é você; é marcar o seu lugar de fala; é dar opacidade ao seu discurso; é deixar claro que sua fala é isso: um discurso, não a verdade (no máximo, uma verdade ou um lance nos “jogos de verdade” – essa expressão é do filósofo e historiador francês Michel Foucault, para quem a verdade não existe em si mesma, como uma realidade autônoma, transcendental; para ele, a verdade é sempre produto de um jogo de poder). Bom, dito isso, agora me apresento:
Meu nome é Jean Wyllys e tenho 33 anos de idade. Sou jornalista formado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia. Por sete anos consecutivos, trabalhei na imprensa baiana como repórter comprometido com as questões sociais e da coletividade e, por isso, ganhei quatro prêmios da ABI – Associação Baiana de Imprensa e menção honrosa em publicação da ANDI - Agência Nacional dos Direitos da Infância. Coordenei um programa de educação pela mídia e para a mídia na Organização de Auxílio Fraterno, organismo não-governamental que assiste crianças e adolescentes em situação de risco social. Fiz o mestrado no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, numa área do conhecimento chamada de Estudos Culturais ou Crítica Cultural e passei a lecionar Cultura Brasileira nas Faculdades Jorge Amado, onde criei um Núcleo de Mídia e Cidadania e uma pós-graduação em Jornalismo e Direitos Humanos. Sou gay de formação católica, não-militante e assumi minha orientação sexual bem como minha simpatia pelas religiões afro-brasileiras (o Candomblé e a Umbanda) num reality show de grande audiência.
Como alguém com esse perfil pode contribuir com um seminário em defesa do estado laico? De diversas maneiras, sei disso, embora tenha escolhido dar minha contribuição a partir de minha formação na área dos Estudos Culturais.
Os Estudos Culturais não entendem a cultura apenas como erudição (o fato de se conhecer técnicas e escolas de pintura; óperas e compositores de música erudita; livros e autores diversos) nem entendem a cultura como os lançamentos da indústria do entretenimento (como o fazem os “cadernos de cultura” dos jornais). A cultura é entendida como modo de vida, ou seja, fazem parte, da cultura, não só as artes, mas os também os falares, o modo como se come e o que se come, o modo como se dorme, as formas de se fazer sexo, as habitações, os trajes, as religiões, as leis e as formas de governar. Nesse sentido, preferimos falar em culturas, no plural. E, também nesse sentido, não há qualquer ser humano sem cultura. Todos temos cultura ou pertencemos a uma cultura.
Toda cultura é fundamentada em mitos, ou seja, os alicerces, os fundamentos das culturas são os mitos. Os mitos, por sua vez, são as narrativas que os diferentes agrupamentos humanos construíram para explicar suas existências e as manifestações da natureza em volta. Por isso, a maior parte dos mitos de uma cultura constitui as bases das religiões. Por exemplo, o mito hindu de Shiva dá conta das destruições e transformações que acontecem na vida; ele diz que o deus dança no meio de uma roda de fogo e que ele, com o pé direito, esmaga a cabeça de uma figura bestial - a ignorância – e, com o pé esquerdo, faz um movimento ascendente, indicando a liberação espiritual; cada vez que ele dança, acontece uma destruição ou transformação. Um mito tupi-guarani diz que a vitória-régia é uma índia que, apaixonada por Jaci, a lua, lançou-se nas águas profundas de um igarapé onde ela estava refletida. Tupã, deus supremo, com pena da índia, transformou-a numa exótica flor. Um mito iorubá diz que os oceanos são o ventre rompido de Iemanjá, a deusa mãe que corria grávida de toda vida que surgiram dos mares primitivos. O mito judaico-cristão da criação do homem e da mulher explica a menstruação e o surgimento da agricultura. Após descobrir que Adão e Eva comeram do fruto proibido, Deus condena Eva a sangrar periodicamente e a parir entre dores e condena adão a cultivar a terra para comer daquilo que dela extraísse com suor.
Acontece que os mitos não são meras estórias fantasiosas (a própria palavra mito, com o tempo, virou antônimo de verdade: “mitos e verdades sobre a TPM”, escrevem os especialistas no assunto). Aliás, a gente tende a achar fantasiosos apenas os mitos da cultura alheia. Imagino que alguém, aqui, possa estar chocado por eu ter tratado o texto bíblico como um mito tanto quanto o é o mito de Brahma. Minha intenção não é chocar nem ofender qualquer pessoa. Os mitos, eu volto a dizer, não são meras narrativas fantasiosas. Ao fundamentarem as culturas, eles as organizam, explicam-nos e nos constituem como sujeitos. Como diz o pensador francês George Sorel, o mito é um núcleo produtor de significados e ações. Prestem bem atenção nisso: o mito produz significados e ações. Por exemplo:
Se nós lemos num jornal que uma mulher, para se vingar do amante que a abandou, matou os próprios filhos, imediatamente nos remetemos ao mito grego de Medeia. Freud e a psicanálise foram buscar no mito de Édipo a explicação para os conflitos que existem entre nós e nossos pais. O que leva o povo de santo (os adeptos do Candomblé e da Umbanda) a respeitar o mar, as florestas e os rios se não os mitos de Iemanjá, Oxossi e Oxum? O que leva alguém a se sentir culpado por não amar o pai ou a mãe se não o mito de que Moisés recebeu de Jeová as tábuas dos dez mandamentos, entre os quais estava o “honrarás teu pai e tua mãe”? Por falar em Moisés, não podemos esquecer que o mito de que Jeová disse ao povo judeu “Crescei e multiplicai-vos” e o mito da destruição de Sodoma e Gomorra são os responsáveis pela repressão de qualquer prática sexual que não seja “papai e mamãe”, entre as quais está a homossexualidade – Esses mitos são tão fortes em sua produção de significados e ações que até mesmo pessoas que se dizem leigas, laicas, não-religiosas e intelectualizadas têm problemas com a homossexualidade. Recebi um libelo atribuído a Olavo de Carvalho, que o teria escrito para o Jornal do Brasil, em que ele rechaça de maneira jocosa e grosseira, semelhante à de um garanhão impotente, as reivindicações dos grupos gays organizados. Para quem não sabe, Olavo de Carvalho pertence ao baixíssimo clero da intelectualidade brasileira e se considera um homem esclarecido e leigo.
Os mitos produzem imaginários, mentalidades, visões de mundo, ideologias; e só podemos acessar essas mentalidades a partir de sua materialização. A fala e a escrita são os meios por excelência onde as mentalidades se materializam. Se alguém nos conta, às gargalhadas, uma piada do tipo: “branco correndo é atleta, negro correndo é ladrão”, é por meio de sua fala que podemos dizer que seu imaginário é racista. Graças à infame declaração do deputado Clodovil que eu me recuso a repetir, sabemos, hoje, que ele é misógino. A mentalidade machista e patriarcal de políticos brasileiros se materializou naquela lei que permitia aos homens assassinarem suas esposas adúlteras. A ideologia homofóbica de médicos e cientistas se materializou na inclusão da homossexualidade no código internacional de doenças.
Os mitos, portanto, organizam a cultura em geral, não só as religiões; as mentalidades, as visões de mundo, as ideologias que eles produzem vazam do espaço das religiões e impregnam todos os outros aspectos da cultura. A prova disso é que no preâmbulo da Constituição de 1988 que não só se pretende laica, leiga, neutra, mas, defende o laicismo do estado brasileiro é citada a palavra Deus, grafada em maiúsculo. O preâmbulo diz o seguinte:
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL”
Eu pergunto: Por que Deus (o deus judaico-cristão) é citado no preâmbulo de uma Constituição que se quer neutra e lei máxima de uma gente tão diversa culturalmente e adepta de diferentes credos (ainda que esta referência não seja reforçada pelo texto constitucional)? Ora, porque as ideologias ou mentalidades produzidas pelos mitos não se restringem ao âmbito das religiões. Em seu Artigo 19, a Constituição afirma que o estado brasileiro é laico e que, como tal, não deve nem pode estabelecer preferências entre as religiões; entretanto, o que se vê em prédios públicos são crucifixos e outros ícones e símbolos cristãos. O texto constitucional dá à pessoa humana o direito de acreditar ou não em um ser divino, mas, afirma que o estado não tem sentimento religioso. Sendo assim, por que a celebração de missas e cultos evangélicos em prédios públicos? Onde se assegura o direito das minorias não adeptas do cristianismo católico ou evangélico?
Se os significados produzidos pelos mitos estruturam nossas visões de mundo, será que possível existir um estado laico de fato? Se não, o estado laico deve permanecer como um objetivo a ser alcançado e como uma realidade pela qual se deve lutar todos os dias, enquanto certos mitos são derrubados, reinterpretados ou reconstruídos nos jogos democráticos ou nos jogos de verdade; o desejo de um estado laico de fato não deve desaparecer do horizonte das pessoas éticas, para o bem da coletividade. Se o mito é produtor de significados e ações para todos nós, devemos brigar para que o estado se mantenha longe daqueles em quem os mitos produzem significados e ações nefastos e letais: os fundamentalistas.
Fundamentalistas são as pessoas que crêem nos mitos, nos fundamentos, como verdades absolutas e inquestionáveis. Os homens-bombas mulçumanos que matam diariamente dezenas de pessoas no Iraque e em Israel são chamados de fundamentalistas porque acreditam no mito de que, ao se sacrificarem em nome de Alá, herdarão um harém no paraíso. O presidente Bush ao invadir o Iraque com suas tropas é fundamentalista porque acredita no mito judaico-cristão do povo eleito, o povo de Deus. Os portugueses que dizimaram a maioria dos povos indígenas brasileiros, sob a alegação de que os índios não tinham fé, lei nem rei, eram fundamentalistas porque acreditavam piamente no mesmo mito do povo eleito. A história nos mostra que o estado nas mãos de fundamentalistas só presta ao autoritarismo, à escravidão e à violência. O estado não pode cair nas mãos dessa gente porque ela não tem compromisso com a ética que assegura a vida nem com o bem-estar de todos. Essa gente quer estabelecer a paz dos cemitérios. Como diz a letra da canção, “fé cega, faca amolada”. Se a escuridão avança, mais que nunca devemos manter a chama acesa. Obrigado.
* Comunicação apresentada no seminário O legislativo em defesa do estado laico, realizado pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados. Brasília, 22 de maio de 2007.
Texto lido no evento "Adoção por casal homossexual", no dia 25 de maio de 2007, no Fiesta Convention Center, em Salvador/Ba