Inclusão na Aceitação...

Se pessoas sem nenhum compromentimento mental, neurológico ou físico têm , muitas vezes dificuldades no desenvolvimento da auto-estima, da percepção de seu esquema corporal, imagine-se a pessoa com déficits quaisquer...Algumas negam a própria deficiência:um paciente moreno,de feições afro-indígenas, dizia-me ser a cara do Tom Cruise, de quem colecionava recortes de revistas sobre seus filmes.Uma jovem que nasceu sem pernas(possuía coxas, pés residuais e apenas um braço com mão perfeita-o outro terminava em um dedo gigante, único),muito bonita de rosto e com um lindo tronco:cintura fina, busto bem proporcional,confessou-me que jamais se lembrava dela própria assim , defeituosa para os padrões....Olhava-se ao espelho da cintura para cima, mal olhava os membros diferentes:vítima da Talidomida,usada pela mãe na gestação, inteligentíssima, anda sozinha, a pé(rapidamente ) ou de ônibus,para onde quer, viaja, tem muitos amigos...Exerce seu direito garantido na Constituição, de “ir e vir”, trabalha, ama.Namora um paraplégico e senta-se ao colo dele para beijos ardentes.Se, por um lado, a questão afetivo-sexual fica resolvida, a sua negação de deficiência é sintomática.Ás vezes, essa bela vencedora passava horas chorando, sem dizer nada, à minha frente, que apenas tomava sua mão e lhe dava presença...Chorava não porque não Se aceitava, mas porque os outros a tratavam de forma diferente...

Quando adultos, principalmente os que ficam em casa com a pessoa que tem necessidades especiais,trabalhassem desde cedo,desde o nascimento, essa necessária aceitação da realidade de si mesmos, ela por certo, aceitar-se-ia melhor.Há facies estigmatizadas, como de alguns lesionados cerebrais, com movimentos também diferentes,sendo as mais conhecidas, os traços fisionômicos dos que têm Síndrome de Down.Estes costumam ter deficiência mental, mas nem todos e para alguns, a diferença é mínima.São treináveis, sobretudo.E afetivos, doces, muitos com talentos para a arte ou esportes.Há pouco, na Semana da Mulher, a Dra.Elaine Matozinhos fez uma festa para homenageá-las e indiquei,para representar a juventude e a dança, uma jovem sobre quem sua mãe, falecida no ano passado, escreveu o livro “Na Palma da Mão”.Junto a este, que me foi oferecido, veio um por-folio de suas apresentações,prêmios.e um currículo.Isso, a empoderou...

No HJK tive um paciente, depois entregue a uma de minhas estagiárias, porque assumi os recursos Humanos, mas sob minha supervisão direta,que, fácies de Down ou não, era conhecido por ser poeta, por se apaixonar e fazer versos, com sua letrinha correta.Meu irmão Lourival Júnior, não escreve nem lê, mas possui medalhas de ouro em natação e conversa de forma muito filosófica sobre o que observa.Quando pequenino, foi colocado em escola especializada, que rejeitou, porque não se reconhecia nos demais.Ou seja:criado como “normal”, aceitava-se como apenas mais um membro de sua família.E ponto.No parto, teve uma compressão e por isso nem lê nem escreve.Mas tem mais:a compreensão...

Para se trabalhar esse esquema corporal com auto-estima positiva,é preciso que a criança seja mostrada a si mesma no espelho, desde novinho:”Olhe seus olhinhos puxados,que gracinha, parece um japonesinho”...A criança pode ser comparada com crianças orientais,por fotos, gravuras,em tv,cinema,com vizinhos...Um braço diferente, com um boneco quebrado, mas muito solicitado para as brincadeiras, por exemplo.Fazer corridas com carreiras de roda, reunindo-se famílias de hemiplégicos, favorecer os namoros com iguais ou não espantar nem nega a sexualidade que aflora fora de época, muitas vezes, mas é verdadeira.Comentar, em novelas,que os casais às vezes trocam de parceria, para explicar,por exemplo, que a moça da vizinha, chamada de” namorada”,de repente, estar com outro, casa-se com alguém.Meu mano,hoje trintão, quando vou visitá-lo, diz, naturalmente:”Sabe,maninha, fulana, que foi minha namorada?Já casou e tem um bebê.Ontem, fui visitar...”Mais que um engodo, essas estratégias os fazem aceitar naturalmente o vai-e-vem da vida.Eficientes também perdem amores, trocam de parceiros...A inclusão deve ser praticada por parentes e vizinhos.Muitos adolesentes, a maioria, é muito sensível a essa relação de ajuda, prestando-se(emprestando-se!) ao desenvolvimento afetivo de muitos especiais, sem causar-lhes traumas nem rejeitá-los.Impossível?De forma alguma.Até namoradinhos podem entrar no jogo.Claro, resgatar toda e qualquer prudência em relação a aproveitadores sexuais, é importantíssimo.Ensine seu especial a reconhecer um ,a se defender.Nem é preciso falar em sexo, sexualidade, se ele não tem como entender e sim do cuidado com os genitais, com a privacidade, a necessidade de não se expor a estranhos, a quaisquer pessoas abusivas.

Pedir que a pessoa se deite sobre papel Kraft ou papel jornal e traçar com pincel atômico a forma de seu corpo e depois pedir que ela(se for possível), desenhe o contorno também do seu, depois comentar naturalmente as diferenças, é muito bom, se outras diferenças estiverem sendo o tempo apontadas:entre animaizinhos, flores,objetos.Isso dimensiona a pluralidade das possibilidades de ser...

Certa vez, eu estava em uma horta e mostrava uma folha totalmente anômala à turminha de adolescentes horticultores.Um jovenzinho advindo de uma escola para especiais,comentou,naturalmente:

_Olha,Clevane,igual a mim:diferente!...

E então,deu uma boa risada .Todos os outros e eu,rimos junto.Não dele,mas “com” ele,isso faz toda a diferença...

Ser transparente, colocar o especial em todas as situações familiares e sociais,escolares dos “competentes”,vai lhes dar a dimensão dessa competência,sem segregá-los.A noção de esquema corporal somente entrou em uso no século XIX.Algo muito importante,mas que trouxe uma dicotomia:os que são passíveis de auto-reconhecimento,por valer a pena e aqueles a quem não valia mostrar suas deficiências ...Felizmente,hoje mudou para melhor tal premissa perversa.E mais :amor é a melhor receita, ainda e sempre(*)

Clevane Pesoa de Araújo Lopes

Psicóloga, CRP 04-2539

Belo Horizonte,31/03/2005

(*) Trecho de palestra na APAE de Manhuaçu,MG, Brasil.