Gagueira Fundamentatal"

“Gagueira Fundamental”

Por Marco Antônio de Araújo Bueno

A expressão não é minha, pertence ao G. Deleuze, filósofo contemporâneo que bate duro contra os conformismos conceituais e fustiga as bizarrices desta nossa hipermodernidade tão tagarela, tão exuberante em respostas pra tudo e tão... lacunar. Lacunas abissais de sentido, no jeito de consumir e expressar idéias e afetos. Gagueira, aqui, não é coisa de fono nem de generalismos psicológicos. É atitude! Forma de resistência contra a fluência domesticada. E foi outro filósofo de prenome abreviado “G”, outro Gilles, o Lipovetsky, quem cunhou “hipermodernidade” bem a propósito de uma analogia com hipermercado...

Não é minha, mas me pertence por dois motivos. Primeiro, eu a adotei, e só não a tenho praticado pra fazer compra básica, ir ao banco ou abastecer o carro, coisas que não me tomam muito tempo. Segundo motivo: estou ficando gago, cada vez mais gago, e de propósito!

O pano de fundo da resistência proposta por G.Deleuze é a obra de arte, e ele vai fundo na postura de transgressão, que constitui a potência que a demarca, na linha direta de Nietzsche. Pega o “ponto G”, pra não perder nem o trocadilho nem a alusão a uma espécie de orgasmo do sentido, embutida em seus “agenciamentos” filosóficos. Para o que me interessa aqui, o contexto é a comunicação, e a postura (esqueçam “atitude”, palavrinha já reabsorvida e estéril) é a de emancipação. De quê? Do tédio, no mínimo. Ou, pra ficar mais elegante, da colonização dos meus atos de fala, por uma espécie de eloqüência pré-editada, essa que me obriga a dizer conforme. Tirante as saudações (Alô! Bom dia!, Belê?) e a burocracia dos formulários verbais, considero um delito grave preencher silêncios com a verborragia prescrita pela cartilha do papo-jacaré, contra a fobia do não ter o que dizer. Pois é prescrição mesmo, com poderes de regulamentação do ritmo, da velocidade, da adequação às circunstâncias e, pior...do que deixa de ser falado pelo fluxo da própria falação.

Falar-se pra manter-se incomunicável, já que, tamanha é a excessividade de tudo, que a própria ameaça de silêncio conspira. A gente passa um rodo nos fragmentos de informação do dia, retira-lhes qualquer contexto, separa tudo em bloquinhos e gruda neles alguns adesivos ou ícones, como rótulos bem práticos. Agora é só esperar uma sinalização, uma ameaça de conversa e pronto, o “kit blábláblá” estará operante. Contemplamos pouco, refletimos menos ainda. E falamos pelos cotovelos. Incomunicabilidade - palavrão, pois sim, hiper-palavra pra palavra pouca.

Estamos vivendo rente ao fantasma dos fatos; os fatos perdendo sua carga de significação para as imagens e estas, pulverizando-se, substituindo-se umas às outras, viram borrões isolados. Para nos orientarmos, apontamos para borrões e emitimos ruídos. Quando decodificados, temos a ilusão do diálogo, da troca simbólica. Na verdade, permanecemos mudos.

Pois estou me desobrigando de responder a esse padrão de mutismo ruidoso. E apresento-lhes esse meu “des-falar”, sob a forma de uma gagueira subversiva. Com funciona?

Bem, de cara é necessário uma não aceitação fundamental: a de submeter o que há de singular em mim (dimensão estética) e de outrem (dimensão ética) ao idêntico. Não se trata apenas de “respeitar” a diferença, é preciso trazê-la à visibilidade escancarada, cutucá-la com a vara curta do silêncio, das pausas longas, da recusa ao tatibitate marmanjo habitual. Isto é gagueira.

Ao contrário do que se pensa, os vacilos verbais recheados de gíria e outras embreagens coloquiais (dos muito jovens, por exemplo), a titubeante falsa modéstia dos “operários-padrão” da linguagem dominante (das celebridades sob holofotes, por exemplo) e outros estereótipos da má fluência ensaiada (do pseudodiscurso acadêmico dos economistas, da pseudo-religiosidade dos vigaristas do ramo da fé, da indignada “moralidade” de políticos golpistas-o “exemplo”, por excelência...), nada disso é, aqui, o que chamo de gagueira. É tudo jogo de cena ou malvadeza retórica. Comparados às esquisitices de linguagem que brotam nas salas de bate-papo, estas lhes superam em riqueza pura, verdadeiros diamantes do tesouro da Língua, e ponto.

Só pra ilustrar a idéia dessa gagueira, imaginem o Pivô, o competente entrevistador da TV francesa (separando bem o Jô... do trigo), todo hiperbólico e loquaz entrevistando uma conhecida escritora. Ele esperneia palavras, pergunta o imperguntável, abusa do lugar-comum, vertiginosamente palavroso. Ela (incomum, singular, reflexiva) subverte o tempo televisivo, comete longas pausas, pensa longo e responde curto, reticente. Questiona-se vagarosa e docemente, repete finais de frases, incorpora e sustenta a fragilidade do dizer, silenciando a platéia. E Pivô? Pouco riso e muito siso.

Responder questionando-se a si próprio no outro, eis uma nobre estratégia de gagueira. Uma “nanoprofilaxia” contra os microtraumatismos de todo falar esvaziado. Gagueira.

Dizem que é coisa de analista. Concordam com isto? Faz mal bater um papo assim aflito com alguém? Aflita, Hilda Hilst confidenciou-me certa vez (se é que faz sentido juntar confidência com Hilda Hilst...) que um escritor não deveria dar entrevista: “(...) é muito difícil pra mim... falar, falar das coisas que não se esgotaram no escrito (...) falar de mim, que escreve...”.

Inventaram um guarda-chuva que avisa quando vai chover! E se não chover? Você o carrega fechado, claro, até ele avisar. Então você o abre até que pare de chover e depois o fecha quando a chuva parar, embora ele não avise que a chuva parou. “Será que vai chover?” Já dizia Herbert Viana - o compositor, e emendava: - “Eu acho que vai chover”.A música falava da mulher que “despistava” o tempo todo, diante de um cara carente de atenção. E a gente anda carente de inventividade. Gaguejar é resistir, deixar pistas de si pelos cotovelos e descobrir a toda a carência sob guarda-chuvas que não avisam nada, e vivem esquecidos pelos cantos.