ERA UMA BOA PESSOA
José Saramago, escritor português da província de Ribatejo, em seu livro “As Intermitências da Morte”, trás de forma romanceada a invenção de uma nação que foi agraciada pela “greve” da morte.
Do texto retiramos: “De repente, a morte suspendeu suas atividades no país. A nação se embandeirou: tinha sido escolhida para a imortalidade...”.
Mamãe sabe quem morreu? A resposta era bem simples, quase desmilinguida: “Antes ela do que eu”.
Dela ninguém escapa!
A fila é grande, mas apressadinhos andam furando a fila. Eu hem! Se a morte é um descanso prefiro viver cansado.
Os supersticiosos me desculpem por tratar deste assunto tão sem graça.
Aqui faço um aparte para falar não ‘dela’, mas do cerimonial em torno ‘dela’.
O velório substitui qualquer assembleia quando o tema principal não é a figura humana, suas atitudes e ações do ali falecido, mas a conhecida “fofoca atualizatória” daqueles que há muito não se davam notícias.
Tirando os familiares mais diretos do “passante”, os demais, ‘convocados e convidados’, perambulam observando cada um deles com a curiosidade de saber quem é e que ligação tem com o “ausente”.
Olá compadre? Como vai primo? Oi meu irmão. Tudo bem? Como vai a saúde? Tia veio? Sabia que vó tá bem doentinha? Visse o jogo ontem? Volta ainda hoje? Passe na casa de madrinha que ela tem uma encomenda para levar pra seu irmão.
De algum canto alguém acena-lhe chamando e apresenta: “Essa é minha filha. Puxa! Já tá uma mocinha!” “Muito bonita!” E a conversa vai se diversificando: “Foi de quê? Quantos anos tinha?” Na maioria da vezes a resposta serve de comparação íntima, numa avaliação de seu atual estágio: “Tô muito melhor, disso eu não sofro.”
Um sorriso aqui, outro lá, e o “já não vivo” acolá sem poder franzir o canto da boca, para trocar umas ideias com os demais: quietinho e caladinho, como nunca.
Era uma boa pessoa!
“Mas bebia demais (rebate sua vizinha)”. “Raparigueiro que só ele (reforça sua cunhada)”.
De vez em quando, alguns voltam ao recinto principal, dão uma olhada para a “urna”, faz o sinal da cruz, dá uma tapinha no ombro de quem está ali ancorado e volta para a “assembleia”.
Os grupinhos vão se formando conforme a afinidade ou assunto em pauta: Mulher, filhos, trabalho, escola, política, futebol, regime da lua, e por ai vai.
Tem espaço para uma piadinha? Tem! Afinal brasileiro é expert em tornar o ambiente menos tenso.
Contam que um bêbado entrou num velório (nesse não) e se aproximou do caixão que estava com quatro velas grandes, acessas, e começou a cantar: “parabéns pra você, nesta data querida...”. Neste instante alguém se aproxima e diz: “ei, amigo aqui é um velório, não é aniversário não”. Ao que o bêbado responde com os olhos repuxados (típico de asiático que acabou de nascer): “Hig! Bem que eu estava desconfiando. Achei o bolo tão cuuummmppprrriiiidddo!”.
José Cavalcanti, no livreto “Gaveta de Sapateiro” conta que certo dia, como num desses, lá pras bandas do açude de Boqueirão de Piranhas, uma mulher aos prantos dizia: “Ai meu marido, ai meu marido”. Sua amiga se aproximou e, na maior inocência, tentando confortá-la: “Calma mulher, você ainda é moça, logo arranja outro homem.” Não me fale nem nisso, mulher! “Ai meu Deus, meu maridinho!...” “Tenha paciência, marido é como pau de porteira: Vai um vem outro”. A viúva também não mediu palavras: “É, mas nunca hei de encontrar um pau como aquele!”. E danou-se a chorar.
Isso sim é gostar do ‘resto’ do marido!
O quorum da “assembleia” aumentou significativamente. “Olha ali... olha ali... que princesa!” É a filha do “ausente” e foi logo complementando: “Aquele ali é o marido dela”. “Como cresceu essa menina! Tá tomando chá de elástico?” Veja só quem chega: ”Aquele abusado. No dele eu não vou. Quero nem saber.”
Tá chegando a hora H. A hora da partida final. A rigor já ocorreu a partida. Agora é a hora dos discursos, das orações, das lembranças, das despedidas, do choro mais agudo e até do desespero. Resta agora apenas a lembrança (se foi boa) ou o alívio (se não foi tão boa assim).
Tem alguém que diz que nessa hora, a ‘alma’ do dito cujo fica observando quem está ali e quem ficou lhe devendo dinheiro, para dedurar depois ao homem da foice. Vixe!!!
Bem, lá no início citei superstição. Mas, não é tanto assim. Vejamos: Papai, já assinou o livro? “Não meu filho, não estou precisando de nada não”. Mas papai é apenas um livro de presença, não é um baixo-assinado não. “Já falei com a viúva, viu meu filho”.
O senhor é supersticioso, não é papai? “Sou não meu filho, é que disseram que Deus manda São Pedro fazer backup de todos esses livros e daí segue para os “anjos” nos chamarem.”
Papai tinha razão: É por isso que hoje em dia eu só coloco o nome abreviado e uma mensagem singela. Nada de telefone ou email. Fica mais difícil de me acharem.
Para celebrar a vida é preciso celebrar a morte. Calma! Deixe explicar: Deixar morrer em nós, o egoísmo, a indiferença, o ódio, a omissão, a preguiça, a falta de compromisso, a vingança, a falta de caridade, entre tantas outras mazelas, nos fará muito melhor e trará um renascimento diário para nossas vidas.
Sim! E o que aconteceu com a nação de “As Intermitências da Morte” de José Saramago?
“Cansada de ser detestada pela humanidade, a ossuda resolve suspender suas atividades. De repente, num certo país fabuloso, as pessoas simplesmente param de morrer. E o que no início provoca um verdadeiro clamor patriótico logo se revela um grave problema. Idosos e doentes agonizam em seus leitos sem poder "passar desta para melhor". Os empresários do serviço funerário se veem "brutalmente desprovidos da sua matéria-prima". Hospitais e asilos geriátricos enfrentam uma superlotação crônica, que não para de aumentar. O negócio das companhias de seguros entra em crise. O primeiro-ministro não sabe o que fazer, enquanto o cardeal se desconsola, porque "sem morte não há ressurreição, e sem ressurreição não há igreja".
Um por um, ficam expostos os vínculos que ligam o Estado, as religiões e o cotidiano à mortalidade comum de todos os cidadãos. Mas, na sua intermitência, a morte pode a qualquer momento retomar os afazeres de sempre. Então, o que vai ser da nação já habituada ao caos da vida eterna?
Ao fim e ao cabo, a própria morte é o personagem principal desta "ainda que certa, inverídica história sobre as intermitências da morte". É o que basta para Saramago, misturando o bom humor e a amargura, tratar da vida e da condição humana.”
Recomendo!
A leitura, não a morte!