NATAL: CANÇÃO PARA OS FILHOS DO POVO

Tenho me perquirido muito desde que tomei consciência do mundo em que vivemos, da areia movediça em que meus pés chafurdam e da dura realidade de ser um pertinaz combatente em nome da Liberdade.

O que resta para um poeta retratar num mundo em que a expressiva maioria das pessoas não mais tem rosto, não mais tem tempo para o cultivo da sensibilidade, não mais tem nem um nome que seja dito com a doçura do verbo amar.

Tenho dito que a invocação da centelha criadora, com qualquer nome que a ela se queira dar – Deus, talvez – tem de ser feita com a reverência e o cultivo místico do intocável e do impalpável. Relutei durante anos, em admitir a verdade: o ente criador é uma criação humana.

Quando falece a nossa humana tessitura, quando tudo já está por terra, só o ato desesperado de busca permite a criação. Só assim posso tentar explicar a criação do Divino. A boca cheia de amor – que amor também é fuga do que é palpável – com que os homens e mulheres do povo invocam o pequenino mestre numa manjedoura, sorridente e feliz envolto na aura dos puros.

Quanta esperança exulta nos casebres do Povo quando é tempo de Natal. Papéis, pequenos recortes de revistas, pedaços de propagandas dos grandes magazines (onde tudo é festa), são afixados nos catres onde dormem os filhos do Povo. Na mesa, por certo, onde não há o necessário sequer para a sobrevivência, só a invocação do Altíssimo permite a sublimação.

Que fantasia a mais pode criar um poeta compromissado com o seu tempo e o seu próximo, se não a de repetir que é preciso mais do que nunca repartir não só o pão, mas descobrir o mistério do outro, a linguagem humana de amar.

Descobrir-se no fadário do Cristo, em sua dimensão de vida e morte para o renascimento e redenção da cristandade inteira. Não é isto o que está a nos apontar a escritura sagrada pela mão dos escribas, tão humanos quanto nós?

E ao pressentir a chegada de um novo Natal, o renascimento do Cristo em cada um de nós, me atenho a pensar com o Padre Vieira, no "Sermão da Sexagésima":

“Palavras sem obras são tiros sem bala; atroam, mas não ferem."

– Publicado no jornal “O Pampeiro”, ano I, nº 01, Porto Alegre, Janeiro de 1984, editado por Sangar Luís Vidal. Edição revisada.

– Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 2014.

http://www.recantodasletras.com.br/artigos/4636491