A CORA CORALINA DE FLORES DE GOIÁS

Flores de Goiás, no Nordeste Goiano, possui uma das mais belas história de resistência do povo negro no Brasil. Fundada há quase 300 anos, a cidade respira e transpira a história o tempo todo. Para que parte do rico acervo imaterial não seja

levado pelo vento há o esforço de pessoas que se dedicam a

contar a história do local. Uma delas é a professora aposentada

Deuzimar Ferreira, popularmente conhecida como Deuzinha.

É uma figura única. Celebrada pelos moradores, Deuzimar Ferreira tem 54 anos de vida e um jeito único de contar

histórias. Muito falante, é convidada a ministrar palestras nas

escolas e comunidades de Flores de Goiás e em faculdades da

região. De múltiplos talentos, escreveu e publicou dois livros

sobre a saga do município: História de Flores de Goiás (2004) e

Flores Avante (2006). “Estou escrevendo mais dois ao mesmo

tempo: um romance, que aborda minha vida, e outro de

História, que fala sobre a influência do povo negro na formação

de Goiás”, adianta Deuzinha.

A escritora é uma das dez filhas de Maria Gonçalves dos Santos

e Deusdezinho de Souza Ferreira, que foi o primeiro prefeito

eleito de Flores de Goiás, na década de 1960. Cresceu na

simplicidade do sertão. Com cinco anos já recitava poesias em

festas tradicionais e em batizados e casamentos. Mesmo antes

de ler e escrever, já decorava versos e estrofes de poemas.

Chegou, inclusive a recitar um discurso para o governador,

durante inauguração de uma balsa sobre o Rio Paranã, na

cidade.

Cursou as séries iniciais em uma escola local. Como na década

de 1970 não havia o ginásio (hoje segunda fase do Ensino Fundamental) em Flores, mudou-se em 1973 para Formosa,

para dar prosseguimento nos estudos. Estudou em escola

de padres holandeses. Inquieta, fez cursos de inglês e com

o magistério, retornou para Flores com uma incubência do

prefeito da época: ajudar a fundar o Curso Ginasial, lecionando

matemática, inglês, ciências físicas e biológicas.

Paralelo a isso, Deuzimar Ferreira estava sempre escrevendo

poesia, redação, música e se envolvendo em atividades

culturais. Lecionou na Escola Estadual Marechal Humberto de

Alencar Castelo Branco, na cidade, de 1981 a 1997. Depois,

ocupou cargos de coordenadora pedagógica e diretora. Há dois

anos se aposentou do magistério.

Literatura

Fã de Cora Coralina, Deuzimar acredita que cumpre missão

semelhante à dama da Cidade de Goiás: através das letras,

saudar e contar seu rincão. É autora do hino oficial do

município, composto em 1990. “Trazes um sangue africano/

levas contigo no luar/cantos cadentes soberanos/juntos iremos

contemplar”, canta na terceira estrofe. “Que fiz em cinco

minutos na Câmara Municipal diante dos vereadores, que

pediram para eu incluir mais uma estrofe antes da aprovação.

Pedi uma caneta e um papel e cinco minutos. Foi o bastante”,

lembra.

Suas obras reforçam a importância do Rio Paranã, manancial

de vida para Flores de Goiás. No maior rio da região,

Deuzimar chorou a morte de uma irmã, engolida pelas águas

verdes do Paranã. Se não fosse a sua pesquisa, amparada

em documentos, fotografias e entrevistas com membros da

comunidade, poucos aspectos de Flores seriam conhecidos

como a construção por escravos da Igreja Nossa Senhora do

Rosário, em 1740, uma das mais antigas de Goiás. Segundo

documentos oficiais, a fundação da cidade data de 1729.

Deuzimar, no entanto, apresenta em suas obras evidências de

que Flores surgiu no século XVII. Era um quilombo antes da

chegada de fazendeiros baianos.

É através da sua obra que se eternizam lendas como a do

Negro D´Água. “Seres negros como o carvão, corpo idêntico

ao do homem, cabeça pelada como uma cabaça, olhos

vermelhos iguais fogo, dentes afiados de fera, mãos e pés com

barbatanas”. De acordo com a crença popular, relatada por

Deuzimar Ferreira, o monstro devorava crianças que iam ao rio

tomar banho sem a companhia dos pais e puxavam moças para

o fundo das águas. E ainda reviravam canoas de pescadores.

Trabalho duro

Deuzimar não gosta de escrever usando o teclado de

computador. Faz tudo com caneta e papel e organiza em

pastas. Escreve todos os dias. “Coloco uma música instrumental

e me inspiro”, explica.

A pesquisa é árdua. “Subi em casarões para fazer fotografias,

revirei baús de casas em busca de documentos, entrevistei

moradores, busquei arquivos da igreja, de cartórios. Não é um

trabalho fácil”, completa. Mas, Deuzimar não tem vocação para

o fácil. Escolheu o caminho das pedras: sua missão é contar a

história de um povo, que nasceu para o destino da resistência.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 21/12/2013
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