UM TRABALHO NO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO : UMA PROVOCAÇÃO PARA A VIDA

Participávamos de um grupo de jovens religiosos, no final da década de 70. Era um grupo incomum, porque embora ligado à igreja católica, recebia participantes que não possuíam religião definida, sendo um deles, inclusive espírita. Formava um caldo interessante, porque as discussões, ainda que às vezes, estéreis, produzia muitos encaminhamentos para discussão. Era realmente um agrupo eclético, e por assim dizer, quase ecumênico. A linha que nos norteava era a solidariedade com o próximo. Queríamos inconscientemente modificar o mundo, pelo menos minorar o sofrimento dos que estavam a nossa volta. Diversos temas vinham à pauta, tais como moradores de vilas paupérrimas, desempregados, idosos do asilo, crianças sem acesso a brinquedos ou lazer. Era uma pauta bem extensa, mas houve um tema que foi sugerido por mim. Tratava-se de se fazer algum tipo de trabalho com os pacientes do hospital psiquiátrico. Houve de imediato, uma certa aversão e inclusive um certo pânico por integrantes do grupo. Tinham aquela ideia da agressividade da loucura, da falta de controle, do perigo iminente do confronto. Naquela época, provavelmente eu não pensasse nestes termos, mas hoje, eu diria que é um medo interior, um medo da loucura que todos nós temos. Um medo da falta de perder o comando sobre nós mesmos. Mas eu era um aluno que estava iniciando no curso de Letras e também trabalhando na Furg, já na biblioteca, no início de carreira. Tinha 20 anos, pouca experiência da vida, tal como os meus companheiros de grupo e somente estava disposto a fazer alguma diferença na sociedade marginalizada que percebíamos principalmente em gota gota através dos jornais e da tv, Conta-gotas, porque nesta época de censura e ditadura, pouco se sabia da realidade do país. Eu que já trabalhava, e numa biblioteca, tinha acesso a livros como “As veias abertas da América Latina “ de Eduardo Galeano, no qual o autor fazia uma digressão histórica desde a descoberta da América, com a desvalorização dos índios, e sua inevitável redução, através das perdas enormes que sofriam, até os dias atuais, do século XX, inclusive, no Brasil, onde o Estados Unidos marcavam presença forte através do FMI, prometendo milagres, mas apenas organizando um controle financeiro sobre o País e em toda a América. Havia outros livros, principalmente utilizados por professores do curso de história, que eu percebia politizados e que procurava acompanhar, fazer perguntas e muitas vezes, lê-los ao serem devolvidos. Havia as músicas do Chico Buarque, que diziam entre aspas tudo o que pensava sobre a situação do Brasil e eu, um pouco diferente para os jovens da época, curtia muito o Chico. Detestava a jovem guarda. Havia também as discussões das Comunidades Eclesiais de Base, ligadas à Teologia da Libertação, nas quais eu participava de corpo e alma. Seu foco principal era a reunião em comunidades produzidas a partir da proximidade dos bairros, que compartilhassem dificuldades e miséria, compostas por membros despossuídos e descontentes com a realidade social e política em que viviam. Queriam pregar a mensagem bíblica anexada à luta pela melhoria social, sem perder a caridade e os preceitos da fé. Eu participava de seminários imensos, realizados na Escola Salesianos e toda aquela efervescência de ideias e ideais me encantava e me tornava mais consciente de meus projetos. Por outro lado, havia as conversas intermináveis entre meu pai e um tio, que discutiam política intensamente, muitas vezes, de forma velada, para que suas ideias não saíssem das quatro paredes de nossa sala. Também, conversava com meu pai, sozinho, eu na arrogância da idade imatura, ele na experiência de seus anos vividos, concordava comigo em vários pontos e elucidava outros. Estou certo, que minhas convicções políticas se originaram destas minhas experiências, sei que aproveitei o que pude e absorvi um pouco da realidade do País que era a minha Pátria, uma Pátria, que para qual o governo tinha um lema: Brasil, ame-o ou deixe-o. Os brasileiros que discordavam do atual regime deveriam sair do País.

Mas, voltando ao nosso grupo. Meus amigos não se preocupavam muito com esta discussão política, ao contrário, queriam falar em festas, brincadeiras nas garagens (pequenos bailes nos quais dançávamos ao som da Rita Pavone ou dos Pholhas, de rosto colado com as meninas). Cada vez o grupo se reduzia para discussões políticas e eu não tinha com quem conversar sobre isso. Havia uma menina , que estudava no Lemos e embora nossos assuntos versassem em geral sobre literatura, havia um pouco de tudo e até de política. O grupo de jovens, no entanto, estava interessado nas atividades de ajuda ao próximo, o que sem dúvida era uma atitude valiosa.

Quanto ao tema escolhido por mim, que era o de trabalhar no hospital psiquiátrico, do qual eu ainda não tinha uma noção exata do que faríamos, houve mais dois integrantes corajosos a toparam a tarefa árdua. Depois de muita discussão, resolvemos iniciar o trabalho a partir de uma conversa avalisada de um psiquiatra, meu amigo. Foi o que fizemos. A princípio, ele ficou um tanto indeciso sobre o resultado final do nosso trabalho, ou se haveria algum resultado positivo, prevendo tratar-se de uma utopia de jovens despreparados. Adiantou-nos em fazer um pequeno relatório sobre os pacientes e o ambiente inóspito que iríamos encontrar. A cada observação, ficávamos mais entusiasmados com a possibilidade de interagir de algum modo e transformar a situação, por mínima mudança que ocorresse. Sabíamos que não faríamos milagres, mas a nossa disposição era muito grande. Por fim, ele elogiou nossa coragem, inferindo que havia uma brecha em nossa utopia, pois a realidade mostrava que o fato de alguns doentes serem abandonados no hospital psiquiátrico por muitos anos, a nossa presença oportunizaria a possibilidade de algum retorno positivo. Afinal, seria uma visita exclusiva deles. Desejou-nos boas-vindas e acertou nossos horários de ida ao hospital. Seria nas tardes de sábado e quando dispuséssemos de um período livre, poderíamos ir às quartas, dias de visita.

Já naquele primeiro dia, a nossa reação um tanto assustada seria considerada natural, visto que o ambiente físico era soturno, triste, muito parecido com o de uma prisão. Além disso, observávamos aquelas pessoas andrajosas caminhando pelos corredores, falando consigo mesmas, disputando baganas de cigarros, rindo ou chorando à toa, transmudando sua fisionomia em imagens distorcidas, às vezes, com ódio, noutras, irônicas ou simplesmente passivas e tristes. Alguns permaneciam parados, nos cantos, em absoluta depressão e isolamento. Um que outro agredia a si mesmo ou batia nas paredes, indo de imediato para a cela de punição, onde deviam ficar como resultado de seus atos agressivos. Aquela situação nos revoltava e nos deixava angustiados. Mas não tínhamos como fugir. Devíamos enfrentar o problema.

Com o passar do tempo, começamos a nos ambientar mais no hospital, conhecíamos cada meandro das salas que compunham o posto de atendimento de medicamentos, a copa onde faziam as refeições, geralmente um café com leite e pão torrado, servidos em copos de plástico e o pátio onde muitos deles permaneciam e alguns recebiam as visitas dos parentes. Também começamos a conviver com os pacientes mais antigos, aqueles que fatalmente moravam no hospital por terem sido abandonados por parentes e não tinham para onde ir. Havia uma senhora, a Dona Guides que fora abandonada há mais de 20 anos pelo companheiro, que sumiu e nunca mais voltou. A partir daí, ela passou a não falar com mais ninguém, apenas movendo o corpo para lá e para cá e evitando muita proximidade. Um que outro nem sabia quem os tinha deixado ali e se tinham parentes na cidade ou não. Havia toda uma gama de pessoas que formavam uma comunidade heterogênea, sem citar as doenças, que por desconhecimento médico, não citaremos. Mas falo dos tipos que constituíam o grupo de pacientes, desde prostitutas poliglotas que trabalhavam em geral, no porto, até homens que abusavam de crianças (pelo pouco que nos diziam) e também bêbados de passagem transitória, mas que vez ou outra, voltavam, assim como homens que tinham uma vida produtiva, mas que se descontrolavam emocional e fisicamente por algum motivo, até os viciados em drogas. Estes é os que mais contavam histórias.

Por uma estratégia de trabalho, decidimos que cada um de nós deveria se ocupar principalmente de três pacientes. Claro, que em meio às conversas, estaríamos sempre prontos a interagir com os demais, mas àqueles três nos dedicaríamos, quase com um objetivo definido. Sendo assim, eles perceberiam que a visita era quase exclusiva e poderiam ter um melhor rendimento. Claro que não esperávamos melhoras, longe de nós esta ousadia. pretendíamos que se sentissem melhor, apenas, um pouco mais aceitos, mais felizes.

Entre as pacientes com as quais me envolvia, obedecendo o nosso planejamento era justamente a Dona Guides, aquela senhora abandonada pelo companheiro e que se recusava a falar. Sem dúvida, nos dedicávamos a outros pacientes, mas ela estava sempre por perto. Em determinados dias, ela desaparecia, ficava em sua cela ou num canto do pátio. Nestes momentos, eu me aproximava, sentava num banco qualquer e mostrava alguma coisa que pudesse chamar-lhe a atenção, como uma revista, ou uma fotografia. Às vezes, falava de minha família, minha infância e ela ouvia sem emitir um som. Por momentos, parava de se mexer e eu tinha a impressão que ela ouvia atentamente. Noutros, se dispersava, fumava a bagana, que sempre tinha na boca de poucos dentes e movia-se sem parar. Nesta ocasiões, eu me calava. Deixava que as nuvens de seu cérebro amainassem e me detinha em outros pacientes. De esgueio, percebia a presença dela por perto. Com o passar do tempo, ela entendeu qua a visita era para ela e começou a me seguir. Eu fingia não entender, e dispondo de uma psicologia de almanaque, começava a narrar-lhe pequenas histórias, muitas delas, inventadas. Um dia li um conto meu. Acho que não achou a menor graça. Mas assim, eu levava adiante o meu objetivo.

Uma outra atividade que planejávamos era a de organizar festas, geralmente dedicadas aos aniversariantes da semana e quando não havia nenhum, inventávamos que um de nós estava de aniversário, para termos o motivo da festa. O que desejávamos na verdade, é que eles se divertissem um pouco, ouvissem músicas, esquecessem o triste cotidiano que constituia suas rotinas. Os bolos nós conseguíamos, via de regra, em padarias ou confeitarias. Os doces e refrigerantes, nós mesmos comprávamos. Cantávamos parabéns ao redor da mesa, juntávamos todos, inclusive a única enfermeira que trabalhava aos sábados, e oferecíamos um presente ao aniversariante. Numa dessas festas em que não havia nenhum paciente de aniversário, inventamos que eu era o aniversariante do dia. No meio da festa, vieram ao meu encontro com uma euforia e sinceridade, que me emocionou, me felicitando, desejando sorte e alegria. Naquele momento, me senti culpado pela mentira, mas ao mesmo tempo, sabia que era por uma causa boa.

Fazíamos também campanhas de higiene, com produtos que arrecadávamos com os colegas de trabalho, da universidade, com os vizinhos, e até através de solicitações a supermercados. Todos os produtos de higiene pessoal, além de produtos de beleza aumentavam a auto estima e proporcionava também uma espécie de necessidade estética. Alguns se penteavam com as escovas que ganhavam, outros falavam nos xampus que ganhavam e repassavam a nossa campanha aos familiares. De certo modo, os induzíamos a melhorarem o visual, embora em relação a uma minoria, pela dificuldade da doença, segundo o estágio em que se encontrava.

Geralmente, em dias de tempestade, eles ficavam muito ansiosos, como se o prenúncio de alteração do clima os afetasse pessoalmente, de tal forma que se mostravam agitados e irritados. Num desses dias, em virtude de meus colegas faltarem e em virtude da enfermeira permanecer na portaria, por ter confiança em nosso trabalho, eu fiquei sozinho entre eles. A princípio, não me preocupei e decidi cumprir minha tarefa como de hábito. Entretanto, o clima piorou, começando uma chuva esparsa, aliada a trovoadas e escuridão. Eles começaram a caminhar pelo corredor indo até a copa e voltando, com gritos, em absurda ansiedade. Por um momento, temi algum caso mais agressivo. E quanto mais um gritava, mais o outro ficava nervoso, o que ia desencadeando uma reação de ansiedade e agressividade cada vez maior, como em dominó. Então, tive uma ideia, que no fundo, não era muito honesta, mas que poderia acomodar as coisas. Lembrei que carregava pastilhas nos bolsos. Gritei bem alto, para todos ouvirem, como fazia a enfermeira, que estava na hora do remédio. Imediatamente, alguns fizeram fila e os demais se aprumavam, esticando as mãos, na espera do medicamento. Acho que a fila lhes proporcionava um certo prazer, como um ritual a ser cumprido, porque conheciam o bem estar que aquelas pílulas produziam. Comecei a distribuir as pastilhas, sempre exigindo que se organizassem, para evitar confusões, e por incrível que pareça, começaram imediatamente a se acalmarem e voltar para a copa, onde costumavam ficar.

Eram experiências incríveis e uma que me tocou profundamente, ocorreu a partir de um fato inusitado e jamais esperado por nós, muito menos nas reuniões que tínhamos semanalmente com o psiquiatra para relatarmos as nossas atividades e presumíveis reações dos pacientes. Tratava-se de Dona Guides, a senhora que evitava falar, cujo fato marcante e emocionante foi a necessidade que mostrou em se expressar de alguma forma. A princípio, emitia verdadeiros grunhidos, exigindo muito esforço e uma boa dose de euforia, mas aos poucos, foi elaborando frases inteiras, cujo conteúdo servia para concordar conosco ou tentar argumentar qualquer coisa. Claro que eram expressões modestas, mas percebíamos a necessidade que tinha em dizer-nos que estava em contato, que queria a nossa presença, que precisa de nós. Mal sabia ela, que a alegria que nos proporcionava, acrescentava sentido a nossa vida. A troca de experiências se consolidava e nos sentíamos plenos em nossa missão. O medo de hospital psiquiátrico ou dos considerados loucos, não era para nós. A loucura grassava Brasil afora, transformando homens decentes em párias, alijando-os de suas liberdades individuais, torturando-os, expulsando-os de sua pátria. A loucura era muito maior e devastadora, do que a que nós presenciávamos e convivíamos.

Além de Dona Guides, havia mais dois pacientes com os quais eu me ocupava mais detidamente, conforme o combinado. Tratava-se de um homem, beirando os 40 anos, talvez, que costumava ler as notícias e quaisquer artigos nos jornais e os descrevia minuciosamente, com uma capacidade criadora incomparável. Também havia outra senhora que falava muito, praticamente sem ouvir, apenas o que sua mente conturbada ditava e em muitas oportunidades , entrava em surtos, que a levava a esquecer por um tempo de nossas visitas.

Dediquei-me com mais afinco à Dona Guides, neste texto, para descrever um fato que me deixou muito emocionado e me fez rever muitas coisas em minha vida. Certa vez, sofri um acidente, em virtude de um sequestro que sofri e acabei ficando doente por algum tempo. Para minha surpresa, em determinado dia, apareceram estas três pessoas em minha casa, acompanhadas por uma enfermeira. Era a primeira vez que Dona Guides saia para a rua, após tanto tempo, e nos gestos que fazia e nas poucas palavras que usava, demonstrava uma satisfação intensa. Os demais pareciam orgulhosos da visita. Eu, com os sentimentos à flor da pele, estava muito feliz, por ter de alguma forma provocado aquela pequena revolução. Uma revolução que não somente atingiu a ela, mas a todos nós e principalmente a mim.