A Noção de Discurso: Orlandi e Benveniste

RESUMO

O presente trabalho buscou verificar a incidência do termo discurso em artigos produzidos por Eni Orlandi e Émile Benveniste. O propósito dessa verificação é tão somente por acreditar que o termo discurso, não é homogêneo, e não nos parece ingênuo pensar que dentro de distintos construtos teóricos possa haver múltiplas considerações conceituais transdisciplinar. Nossa hipótese é que todo discurso é um testemunho das especificidades culturais de um país, então ele pode revelar as especificidades do que cada autor enuncia ao discursar nos textos inventariados por nós neste trabalho. Para realizá-lo, inventariou-se o termo discurso dentro de textos específicos desses autores. A partir do que foi inventariado, percebeu-se que o objeto de nossa verificação é partilhado pelos autores no que diz respeito ao discurso como elemento a significar, e ao mesmo tempo ser afetado pela língua, no uso de caracteres linguísticos, intermediados por processos linguísticos, ideológicos e históricos. Assim, diante de tudo o que foi articulado nesta pesquisa, pode-se dizer que o discurso em algum momento figura como verdadeiro fundamento do estudo da linguagem, entrelaçando-se nos construtos teóricos dos autores pesquisados, a revelar-se importante organizador das propostas desses construtos.

Palavras-chave: discurso, ideologia, enunciação.

INTRODUÇÃO

Inegavelmente, a ciência, tornou-se algo imprescindível, quando pensamos ser difícil imaginá-la fora de nossas vidas. Entretanto, conhecê-la só foi possível a partir do advento da escrita. A escrita que nos possibilita redigir este artigo e torná-lo conhecido por muitos.

É justamente no texto, ambiente em que a escrita se materializa, e não menos a fala, é que vamos encontrar elementos motivo deste trabalho. Dentre esses elementos, podemos destacar o conceito de Discurso, proposto por Eni Orlandi, como sendo o que faz a mediação entre o homem e a realidade natural e social. Também vamos encontrar na Teoria da Enunciação, de Émile Benveniste, o conceito de enunciação, como sendo o que supõe a conversão individual da língua em discurso.

Pelo exposto, pode-se perceber que o termo discurso é apropriado aos autores, prestando-se a propósitos subjetivos e particularizado ao que cada teoria profetiza.

Diante do que enunciamos, podemos dizer que o objeto de estudo proposto neste artigo, está circunscrito em verificar o termo discurso, nas obras produzidas pelos autores anteriormente mencionados.

As obras a que fizemos menção estão reduzidas aos artigos: O aparelho formal da enunciação, de Benveniste, e o artigo O Discurso, capitulo I do livro “Análise de Discurso: princípios e procedimentos” de Eni P. Orlandi.

A escolha de tal verificação não se deu por acaso, uma vez que o termo discurso, não é homogêneo, não nos parece ingênuo pensar que dentro de distintos construtos teóricos possa haver múltiplas considerações conceituais transdisciplinar.

Diante disso, pode-se pensar que o aspecto terminológico do objeto verificado possa elencar possibilidades de intercessão entre as disciplinas concorrentes, o que nos inclina a esta verificação subsidiados pelo aporte teórico da Teoria da Enunciação de Émile Benveniste e da Teoria do Discurso oriunda da concepção francesa de discurso.

Convém esclarecer, que a abordagem por nós aventada nesta pesquisa, refere-se à qualitativa, nos moldes de (DESLAURIERS, 1991), e se molda no caráter interpretativo, sendo a coleta e análise dos dados proveniente do próprio contexto do objeto em estudo.

Nesse contexto interpretativo de nossa pesquisa, esclarecemos que a metodologia a ser praticada, considerando metodologia como o conjunto de regras para realizar uma pesquisa, restringe-se tão somente em destacar nos texto inventariados o termo discurso, e verificar as possíveis interpretações contextuais que cada autor concebe, ao enunciar o termo discurso dentro do próprio discurso.

Assim, considerando o que foi apresentado até o momento, compete-nos destacar que o interesse da pesquisa é tentar responder: como o termo discurso se entrelaça nos textos de Orlandi e Benveniste, e em que momento esse termo passa a ser definidor das propostas apresentadas pelos autores em seus textos?

Para discutir essa questão, pretendemos fazer o seguinte percurso: inicialmente (cf. item 1), apresentamos algumas considerações gerais acerca da leitura da teoria da enunciação de Émile Benveniste e (cf. item 2) a teoria do discurso em Eni P. Orlandi; em seguida (cf. item 3), procedemos a verificação da ocorrência do termo discurso em um corpus formado pelos artigos já mencionados anteriormente, procurando estabelecer possível congruência ou não na reflexão dos autores, de forma a perceber, em que momento o termo discurso passa a ser definidor das propostas apresentadas pelos autores em seus textos. Finalmente (cf. Conclusão), apresentamos considerações, que não finais, mas fomentadoras.

1 EUNCIAÇÃO: BENVINISTE

1.1 BENVENISTE

Nascido originalmente como Ezra, na Síria, em 1902, e naturalizado Émile, em 1924 na França; Émile Benveniste assegura sua tese, no universo dos linguistas, após publicar o primeiro volume de problemas de Linguística Geral, em 1966. Nessa época, pensava-se a linguagem abstraindo-se do sujeito. É nesse ambiente que a abordagem enunciativa vai despertar o interesse de notáveis. Jacques Lacan, por exemplo, convida Benveniste a contribuir com a revista La Psychanalyse, e em 1970, ao publicar na revista de linguística Langages, um artigo sobre enunciação ganha notoriedade com sua última publicação em 1974, Problema de Linguistica Geral II.

Em 1976, deixa-nos o linguista da enunciação. – sua abordagem diferenciada, o fez responsável por introduzir uma abordagem enunciativa, em que o conceito língua/fala ganha outras proporções.

Dentro dessa dimensão conceitual, é possível pensar que nosso protagonista destaca-se por deixar transparecer em sua obra, três perspectivas distintas. A primeira é pensar que ele atualiza o pensamento de Ferdinand de Saussure, o que nos permite dizer que o sistema de pensamento benvenistiano configura-se numa epistemologia, ou ainda, que produziu uma epistemologia. (FLORES et al, 2009).

A segunda perspectiva pode-se dizer, revela-se em uma forma diferenciada de se enunciar as relações interdisciplinares dentro de um construto teórico em que a linguagem desponta como elemento de excelência. Talvez por esse prisma possamos afirmar que Benveniste produz em um terreno limítrofe que lhe permite falar, em uma interdisciplinaridade, de filosofia, antropologia, sociologia, psicanálise, cultura, etc. (FLORES et al, 2009).

Não menos importante é pensar na Linguística da Enunciação como o limiar de uma nova articulação linguística conceitual. Esse reduto benvenistiano, não raro, difunde-se nos estudos da linguagem como em áreas a fins, corroborando para a prospecção de uma NOVA Linguistica. Essa pode ser considerada a última perspectiva. . (FLORES et al, 2009).

Dito isso, pode-se considerar que Benveniste ao introduzir os elementos da enunciativa (subjetiva) para o estruturalismo saussuriano, inova no pensamento: Sujeito e Estrutura juntos. Estabelece a oposição entre dois níveis de significação: o semiótico e o semântico, o que resulta ser o semiótico a indicação de que cada signo é distintivo em relação aos demais, dotados de valores opositivos. Não interessando a relação do signo com a coisa denotada nem da língua com o mundo. Já o aspecto semântico, a significação é o resultado da atividade do locutor que coloca a língua em ação.

Dos eixos temáticos já anunciados, também se pode considerar que não há em Benveniste uma visão idealista do sujeito – a concepção do aparelho formal da enunciação é vista como uma espécie de dispositivo que as línguas possuem para que possam ser enunciadas. Pode-se conceber esse sujeito como o que coloca a língua em movimento ao enunciar, por um ato individual de utilização. Esse aparelho nada mais é do que a marcação da subjetividade na estrutura da língua.

Finalmente, o que se vê em Benveniste é a maior questão que marca seus passos no que se refere à teoria da enunciação. Ele pergunta: como se dá a passagem da língua para a fala? É o que tentaremos mostrar no próximo seguimento.

1.2 ENUNCIAÇÃO

Que é enunciação? Nada melhor para o conhecimento, do que iniciarmos uma verificação de conceitos a partir de uma pergunta. Sendo assim, podemos dizer inicialmente que para se compreender o conceito de enunciação, a origem do conceito é sempre um caminho a ser percorrido. No caso, Ferdinand Saussure.

É nele que podemos perceber que a língua/linguagem humana, tem o aspecto social e individual. O aspecto social pode-se pensar como sendo o conhecimento internalizado que temos da língua. Esse conhecimento que é social e partilhado por todos os falantes de uma língua, é o que nos possibilita o mutuo entendimento. A esse conhecimento internalizado, Saussure vai chamar de língua. E a realização individual da língua ele vai chamar de fala.

Mas, do que expomos até agora fica algo a ser verificado antes de darmos sequência ao que foi enunciado até o momento. É o surgimento do conceito: conhecimento internalizado. O que é?

O conhecimento internalizado é o conhecimento partilhado por todos os falantes de uma determinada língua dentro de uma comunidade linguistica. Isso nós já o dissemos. Resta perceber o que é efetivamente esse conhecimento.

Para Saussure esse conhecimento se distingue em dois elementos: as diferenças semânticas e as diferenças fônicas. Pode-se dizer que essas diferenças nos permitem criar os significados e os sons da língua. Quanto aos significados, por exemplo, temos o porco um animal que se destina ao corte, seja a industrialização da carne, e o animal cachaço, no (Brasil), é o animal porco que se destina à reprodução. Nesse caso, porco e cachaço são termos que semanticamente geram significados distintos a caracterizar diferenças semânticas.

As diferenças fônicas ou de sons, por exemplo, podem ser facilmente identificáveis quando pronunciamos os seguimentos vocálicos. Esses se diferenciam pelos pontos de articulação em que são produzidos (THAIS CRISTÓFARO) e o grau de abertura da boca. Fatos bem discutidos sobre o assunto podem ser consultados em Silva , 2008. O importante é perceber que tais diferenças fônicas são comuns em todas as línguas.

Essas diferenças são o conhecimento partilhado por todos os falantes de uma determinada comunidade linguística, sendo a fala a realização desse conhecimento. Dito isso, podemos verificar então, o objeto da questão inicial. Para respondê-la efetivamente, podemos voltar a Benveniste e saber que a questão que o perturbava era a que deu início a sua teoria da enunciação. Como é que se passa da língua para a fala? Essa era a questão.

Benveniste vai concluir que se passa da língua para a fala por um ato individual de dizer. Vejamos:

• LINGUA FALA

ENUNCIAÇÃO

• Enunciar é dizer

• Enunciação é o ato de dizer

• Enunciado é o dito

A esse ato individual de dizer que a enunciação é a apropriação da língua por um ato individual, podemos nos perguntar: por que um ato individual? Porque só enuncia quem já se apropriou do conhecimento de determinada língua. Só se realiza um ato de fala da língua inglesa, por exemplo, aquele que detém o conhecimento dessa língua.

Dito isso, temos que:

A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização. O discurso, dir-se-á, que é produzido cada vez que se fala, esta manifestação da enunciação, não é simplesmente a “fala”? – É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua por sua conta. (BENVENISTE, PGL II, 1970: p. 82)

Do excerto acima, percebe-se que o objeto evidenciado por Benveniste se delimita ao entendermos que:

[...] as especificidades da enunciação e os elementos que a caracterizam, bem como o esboço do quadro formal da enunciação, não nos parece que o objeto seja o enunciado ou o texto do enunciado, mas, logicamente, a enunciação. Dessa forma, o linguista separa o ato do produto do ato. Voltando-se ao ato de enunciar, Benveniste o entende como um fato do locutor que, ao mobilizar a língua, estabelece com ela relações que determinam os caracteres linguísticos da enunciação. Portanto, o produto desse ato reterá as marcas de tal relação, de modo que devemos considerar a enunciação como esse “fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos caracteres linguísticos que marcam essa relação.” (BENVENISTE, 1970b/2006, p.82 apud KNACH, 2012).

As postulações disponibilizadas até aqui, permite-nos uma visão teórica, ainda que muito reduzida e humilde, entender um pouco do Sr. Benveniste, e sua teoria da enunciação. O conhecimento a seguir, somado ao que já disponibilizamos, poderá sustentar o entendimento do que nos predispomos a verificar, ou seja, como o termo discurso se entrelaça nos textos de Orlandi e Benveniste, e em que momento esse termo passa a ser definidor das propostas apresentadas pelos autores em seus textos?

No próximo seguimento, como forma de nos subsidiar para a análise do termo discurso, tentaremos dispor de algumas informações sobre Eni Orlandi e sua Análise de Discurso.

2 DISCURSO: ENI ORLANDI

2.1 ENI ORLANDI

Eni de Lourdes Puccinelli Orlandi é uma pesquisadora (1A do CNPq) e professora universitária brasileira. Foi a introdutora, no final dos anos 70, da Análise do Discurso no Brasil. De indiscutível notoriedade no mundo da analise de discurso, a professora detém um premio Jabuti em Ciências Humanas, com o livro As Formas do Silêncio, e não menos importante são suas mais de 35 publicações dedicadas especialmente a entender a linguagem humana.

Em seu livro Análise de Discurso: princípios e procedimentos, a autora vai deixar explícito o seu propósito em discutir questões sobre a linguagem, que é a análise de discurso.

Problematizar as maneira de ler, levar o sujeito falante ou o leitor a se colocarem questões sobre o que produzem e o que ouvem nas diferentes manifestações da linguagem. Perceber que não podemos não estar sujeitos a linguagem, a seus equívocos, sua opacidade. Saber que não há neutralidade nem mesmo no uso mais aparentemente cotidiano dos signos. A entrada no simbólico é irremediável e permanente: estamos comprometidos com os sentidos e o politico. Não temos como não interpretar. [...] nos colocar em estado de reflexão e, sem cairmos na ilusão de sermos conscientes de tudo, permite-nos ao menos sermos capazes de uma relação menos ingênua com a linguagem. (ORLANDI, 2007, p. 09)

Dessa relação menos ingênua com a linguagem, a pesquisadora vai se filiar ao filósofo francês Michel Pêcheux, uma de suas mais fortes referências, assumindo do filósofo, a tese de que não há discurso sem sujeito e nem sujeito sem ideologia. Esse sujeito é um sujeito linguístico-histórico, constituído pelo esquecimento e pela ideologia.

Enquanto seres humanos somos seres históricos, simbólicos e sociais. Ao considerar o sujeito, o sentido, comecei a me interessar, criticamente, pelo processo dessa identidade, assim como pelo modo como os sentidos eram constituídos. E, naquele momento de minhas reflexões, me dediquei a pensar o discurso sobre o brasileiro e do brasileiro sobre si mesmo. Para isto tinha de mostrar que a gente precisa atravessar a interpretação para chegar à compreensão do discurso. Na interpretação, somos pegos pelas evidências já construídas, ao sabor das quais nos relacionamos com nossa realidade, imaginária. Com a compreensão, não ficamos nos produtos, mas conhecemos os processos de produção, a historicidade em sua materialidade contraditória, concreta, que atingimos analisando a materialidade discursiva. ( Eni Orlandi em entrevista à Tatiana Fávaro, 2012- TV Universidade).

Em relação a essa materialidade, Orlandi vai pronunciar-se dizendo que ao questionar os linguistas que trabalham com o significante, restringindo a língua nela mesma, deve-se considerar que a língua como o que tem certa autonomia, não sendo fechada, há nela, a língua, uma abertura do simbólico.

Assim, quando a autora estabelece esse entendimento, ela preconiza que a primeira coisa a ser observada é que a analise de discurso não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas a forma como é praticada, produzindo sentidos, dentro da sociedade e da história.

Levando em conta o homem na sua história, considera os processos e as condições de produção da linguagem, pela analise da relação estabelecida pela língua com os sujeitos que a falam e as situações em que se produz o dizer. Desse modo, para encontrar as regularidades da linguagem em sua produção, deve-se relacionar a linguagem à sua exterioridade. (ORLANDI, 2007, p. 16)

Pensar dessa forma nos conduz ao entendimento de que ao estudar o discurso, o sentido se assenta na dimensão tempo e espaço das experiências humanas, deslocando o entendimento de sujeito e negando o caráter absoluto da governança do objeto da linguistica.

Em decorrência disso, não há na análise de discurso a concepção de língua fechada em si, mas o discurso como sendo um objeto sócio histórico. Vê-se nesse alvitre, uma crítica às ciências sociais e à linguística. Conforme Orlandi: um reflexo sobre a maneira como a linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua.

Partindo da ideia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua – discurso- ideologia. Essa relação se completa com o fato de que, como diz M. Pêcheaux (1975), não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o individuo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido. Consequentemente, o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentido por/para os sujeitos. (ORLANDI, 2007, p. 16-17)

Do exposto até o momento, podemos perceber que o discurso figura para a análise de discurso, como seu objeto próprio. O que nos permite propor para o próximo seguimento, uma breve e sucinta consideração a respeito do que teoriza Orlandi a respeito do discurso para então complementar nossa verificação, procurando responder: como o termo discurso se entrelaça nos textos de Orlandi e Benveniste, e em que momento esse termo passa a ser definidor das propostas apresentadas pelos autores em seus textos.

2.2 DISCURSO

O que é o discurso? É uma maneira de dizer alguma coisa eivada de outras coisas?

Para Eni Orlandi, o funcionamento da linguagem é que movimenta sua vida. Vida que a introduziu como a pioneira da Análise de Discurso no Brasil.

Segundo ela, trabalhar com a disciplina análise de discurso é estabelecer outra forma de pensar a linguagem, enquanto linguística. É no intuito de mostrar que não é o que você diz, é como você diz que implica num sentido. As palavras escolhidas para uma mesma coisa, por sujeitos ou em situações diferentes, significam diferentemente umas das outras .

Basta você falar português e eu também e o que eu estou dizendo fica absolutamente inteligível. Já compreender um discurso é conseguir explicitar a maneira como ele está produzindo sentido. E para chegar à compreensão, o analista não pode ficar só no que é inteligível, e nem mesmo no interpretável. Ele precisa entender como a interpretação está funcionando em você, em mim, pois, de uma certa maneira, eu posso, inclusive, estar produzindo sentidos que vão em uma outra direção, que você nem percebeu, não conseguiu interpretar, dadas as condições em que estão sendo produzidos. ( Eni Orlandi em entrevista à Tatiana Fávaro, 2012- TV Universidade).

Do exposto, pode-se dizer que ao criar distinção entre inteligibilidade, interpretação e compreensão, Orlandi deixa claro que o domínio da língua cria a inteligibilidade, e que compreender é saber como um objeto simbólico produz sentido, seja um enunciado; texto; pintura; música, etc. É saber como as interpretações funcionam. Cientes de que ao interpretar já estamos presos a um sentido.

Isto é o discurso, é o ritual da palavra. Mesmo o das que não se dizem.

De um lado, é na movência, na provisoriedade, que os sujeitos e os sentidos se estabelecem, de outro, eles se estabilizam, permanecem. Paralelamente, se, de um lado, há imprevisibilidade na relação do sujeito com o sentido, da linguagem com o mundo, toda formação social, no entanto, tem formas de controle da interpretação, que são historicamente determinadas: há modos de se interpretar, não é todo mundo que pode interpretar de acordo com sua vontade, há especialistas, há um corpo social

a quem se delegam poderes de interpretar [...] tais como o juiz, o professor, o advogado, o padre, etc. Os sentidos estão sempre administrados, não estão soltos. Diante de qualquer fato, de qualquer objeto simbólico somos instados a interpretar, havendo uma injunção a interpretar. Ao falar, interpretamos. Mas, ao mesmo tempo, os sentidos parecem já estar sempre lá. (ORLANDI, 2007, p. 10)

Diante dessa compreensão fica uma questão a ser indagada: como, enquanto sujeitos falante que somos, nós nos relacionamos com a linguagem em nosso cotidiano? Somos caracterizados pelo nosso discurso?

É no entremeio de muitas questões como as arroladas até aqui, que o discurso vai figurar como elemento objeto da analise de discurso, e descrito por Orlandi como a palavra em movimento. Estudar o discurso é observar o homem falando. (ou é enunciando?).

A Análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana. (ORLANDI, 2007, p. 07).

E é na confluência dessa existência com o discurso que vamos encontrar o individuo sendo interpelado em sujeito pela ideologia, e é assim que a língua faz sentido.

A partir dessas considerações, acreditamos ter proporcionado uma visão panorâmica a respeito dos autores já mencionados, o que nos possibilita empreender nosso intento, que é procurar no próximo seguimento tentar responder: como o termo discurso se entrelaça nos textos de Orlandi e Benveniste, e em que momento esse termo passa a ser definidor das propostas apresentadas pelos autores em seus textos?

3 A NOÇÃO DE DISCURSO: BENVENISTE E ORLANDI

3.1 CONSIDERAÇÕES

Tentaremos mostrar neste seguimento algumas concepções do termo discurso em teóricos envolvidos de alguma forma com o estudo da linguagem, para então, subsidiados por diferentes interpretações, verificar no texto de Orlandi e Benveniste, dentro do que já mencionamos; como o termo discurso se entrelaça em seus textos, e em que momento esse termo passa a ser definidor das propostas apresentadas pelos autores em seus respectivos textos.

O propósito dessa verificação é tão somente por acreditar que o termo discurso, não é homogêneo, e não nos parece ingênuo pensar que dentro de distintos construtos teóricos possa haver múltiplas considerações conceituais transdisciplinar.

Convém destacar, que o aspecto terminológico do objeto a ser verificado, permite-nos elencar possibilidades de intercessão entre as disciplinas concorrentes, e que tais possibilidades, no contexto das competências discursivas, possam nos conduzir ao entendimento de que analisar as especificidades do discurso, especificamente dos autores motivo de nossa análise, nos permite dizer que analisar o termo discurso, é reconhecer que, se todo discurso é um testemunho das especificidades culturais de um país, então ele pode revelar as especificidades do que cada autor enuncia ao discursar nos textos inventariados por nós neste trabalho.

Subsidiados pelo aporte teórico da Teoria da Enunciação de Émile Benveniste, e da Teoria do Discurso de concepção francesa, procura-se discutir como o termo discurso se entrelaça nos textos de Orlandi e Benveniste, e em que momento esse termo passa a ser definidor das propostas apresentadas pelos autores em seus textos.

O que nos conduz à tentativa de realizar este trabalho é saber que a linguagem é um poder, talvez o primeiro poder do homem. Mas esse poder não cai do céu. Somos nós que construímos; que moldamos, através de nossas trocas sociointerativas ao longo da historia dos povos.

A linguagem é uma atividade humana que se desdobra no teatro da vida social e cuja encenação resulta de vários componentes, cada um exigindo um “savoir-faire”, o que é chamado de competência. Uma competência situacional, pois não há ato de linguagem que se produza fora de uma situação de comunicação. Isso nos obriga a levar em consideração a finalidade de cada situação e a identidade daqueles ( locutores e interlocutores) que se acham implicados e efetuam trocas entre si. Uma competência semiolinguística que consiste em saber organizar a encenação do ato de linguagem de acordo com determinadas visadas (comunicativa, descritiva, narrativa, argumentativa), recorrendo às categorias que cada língua nos oferece. Enfim, a competência semântica que consiste em saber construir sentido com a ajuda de formas verbais (gramaticais ou lexicais), recorrendo aos saberes de conhecimento e de crenças que circulam na sociedade, levando em conta os dados da situação de comunicação e os mecanismos de encenação do discurso. Esse conjunto de competência constitui o que se chama de competência discursiva, e é fazendo-a funcionar que se produzem atos de linguagem portadores de sentido e de vínculo social. (CHARAUDEAU, 2009: p. 08-09. grifo nosso)

3.2 O DISCURSO: BENVENISTE

Falamos apenas através de determinados gêneros do discurso, isto é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente estáveis e típicas de construção do todo. Dispomos de um rico repertório de gêneros de discurso orais (e escritos). Em termos práticos, nós o empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos teóricos podemos desconhecer inteiramente a sua existência. (BAKHTIN, 2003, p. 282)

Com essas considerações preliminares podemos adentrar ao universo de Orlandi e Benveniste, de forma a verificar a significância do termo discurso ao transitarmos nos textos dos autores recentemente mencionados.

A partir do texto O Aparelho Formal da Enunciação, destacamos a seguir o conjunto de ocorrências do termo discurso, nesse texto, para em seguida propor nosso entendimento, e na seguência, verificar também em Orlandi, as possibilidades interpretativas do termo discurso.

Segue abaixo os excertos do texto O Aparelho Formal da Enunciação, último artigo produzido por Émile Benveniste em 1974. Esse texto é parte da obra Problema de Linguistica Geral II, e junto com sua primeira produção, de mesmo titulo, traduz a Teoria da Enunciação.

(1) O discurso, dir-se-á, que é produzido cada vez que se fala, esta manifestação da enunciação, não é simplesmente a “fala”? – É preciso ter cuidado com a condição específica da enunciação: é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que mobiliza a língua por sua conta. A relação do locutor com a língua determina os caracteres linguísticos da enunciação. Deve-se considerá-la como o fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos caracteres linguísticos que marcam esta relação (PLG II, p. 82)

(2) O mecanismo desta produção é um outro aspecto maior do mesmo problema. A enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso. Aqui a questão – muito difícil e pouco estudada ainda – é ver como o “sentido” se forma em “palavras”, em que medida se pode distinguir entre as duas noções e em que termos descrever sua interação. É a semantização da língua que está no centro deste aspecto da enunciação, e ela conduz à teoria do signo e à análise da significância (PLG II, p. 83).

(3) O ato individual pelo qual se utiliza a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro nas condições necessárias da enunciação. Antes da enunciação, a língua não é senão possibilidade da língua. Depois da enunciação, a língua é efetuada em uma instância de discurso, que emana de um locutor, forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno (PLG II, p. 83-84)

(4) Na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de co-referir identicamente, no consenso pragmático que faz de cada locutor um co-locutor. A referência é parte integrante da enunciação (PLG II,p. 84)

(5) O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instância de discurso constitua um centro de referência interno. Esta situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuia função é de colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação (PLG II, p. 84).

(6) O presente é propriamente a origem do tempo. Ele é esta presença no mundo que somente o ato de enunciação torna possível, porque, é necessário refletir bem sobre isso, o homem não dispõe de nenhum outro meio de viver o “agora” e de torná-lo atual senão realizando-o pela inserção do discurso no mundo (PLG II, p. 85)

(7) O presente formal não faz senão explicitar o presente inerente à enunciação, que se renova a cada produção de discurso, e a partir deste presente contínuo, coextensivo à nossa própria presença, imprime na consciência o sentimento de uma continuidade que denominamos “tempo”; continuidade e temporalidade que se engendram no presente incessante da enunciação, que é o presente do próprio ser e que se delimita, por referência interna entre o que vai se tornar presente e o que já não o é mais (PLG II, p. 85-86).

(8) Como forma de discurso, a enunciação coloca duas “figuras” igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação. É a estrutura do diálogo. Duas figuras na posição de parceiros são alternativamente protagonistas da enunciação. Este quadro é dado necessariamente com a definição da enunciação (PLG II, p. 87).

(9) Amplas perspectivas se abrem para a análise das formas complexas do discurso, a partir do quadro formal esboçado aqui (PLG II, p. 90)

Após verificar a incidência dos termos discurso nos excertos acima, percebemos que esse termo manifesta-se de forma diferenciada, compondo, o que podemos chamar de grupos contíguos, porém, distinguindo-se por propostas diferenciadas quanto á terminologia eivada de flutuação conceitual dentro do contexto expresso por cada termo, o que pode nos conduzir, inadvertidamente, a não aceitação da proposta terminológica apresentada pela teoria benvenistiana.

O sentido de discurso em O Aparelho Formal da Enunciação, de algum modo, nos suscita pensar sob um ponto de vista epistemológico da teoria, que a flutuação deve-se a constatação de processos homonímicos, sinonímicos, e polissêmico que a proposta terminológica pode apresentar, mais do que um problema, uma questão definidora de outras possíveis propostas investigativas que a teoria nos conduz.

Por esse alvitre, destacamos estudos pertinentes a essa questão, em FLORES & ENDRUWEIT, quando esses autores se dispõem a dividir a incidência do termo discurso, no texto de Benveniste, criando três grupos assim definidos:

• Grupo A: discurso como manifestação da enunciação

• Grupo B: discurso como instância da enunciação

• Grupo C: discurso como formas complexas

No grupo A, os autores vão concluir que Benveniste estabelece uma distinção entre o ato e o produto. Nesse caso, percebe-se que discurso é sinônimo de enunciação. O ato parece ser a fala, e o produto o discurso.

No grupo B, temos na expressão instância de discurso, a pedra de roseta da subjetividade; o homem inserido na língua, e sobre ela atuando a partir do domínio que da língua ele possa ter.

No grupo C, as formas complexas do discurso, enunciada com valores interpretativos muito amplos, de certo modo nos remete à Benveniste em outro texto de sua obra Problema de Linguistica Geral II, na qual ele diz:

É necessário ultrapassar a noção saussuriana do signo como princípio único, do qual dependeria simultaneamente a estrutura e o funcionamento da língua. Esta ultrapassagem far-se-á por duas vias: − na análise intralinguística, pela abertura de uma nova dimensão de significância, a do discurso, que denominamos semântica, de hoje em diante distinta da que está ligada ao signo, e que será semiótica; − na análise translinguística dos textos, das obras, pela elaboração de uma metassemântica que se construirá sobre a semântica da enunciação (BENVENISTE, PLG II, p. 67)

Parece-nos pertinente, porém cauteloso, supor que o autor, já em 1969, quando produziu o texto acima mencionado, preconizava uma semântica e uma sintaxe da enunciação. Ao dizer que é necessário ultrapassar a noção saussuriana, vai enunciar o Aparelho Formal da Enunciação.

Gostaríamos, contudo, de introduzir aqui uma distinção em um funcionamento que tem sido considerado somente sob o ângulo da nomenclatura morfológica e gramatical. As condições de emprego das formas não são, em nosso modo de entender, idênticas às condições de emprego da língua. São, em realidade, dois mundos diferentes, e pode ser útil insistir nesta diferença, a qual implica uma outra maneira de ver as mesmas coisas, uma outra maneira de as descrever e de as interpretar. (BENVENISTE, 1970, p. 81)

Pertinente a uma conclusão, não menos fomentar, acreditamos que esse momento, tão somente elucidativo, prestou-se a mostrar algumas possibilidades interpretativas a respeito do termo discurso dentro do contexto enunciado por Benveniste, no artigo O Aparelho Formal da Enunciação.

Sabe-se, contudo, que não há até aqui uma amplitude do que possa ser a realização desta pesquisa, certamente muito humilde e incompleta. Tal fato nos permite sinalizar que toda teoria, assim como toda fala, define-se em relação a outras teorias, a outras falas. Decorre disso, o intuito de mostrar no próximo capítulo, no texto de Eni Orlandi, O Discurso, artigo constante do capitulo I do livro Análise de Discurso: princípios e procedimentos, uma verificação quanto o uso do termo discurso e sua implicação terminológica dentro do objeto de nossa análise.

3.3 O DISCURSO: ENI ORLANDI

Na compreensão da autora, analisar um texto é buscar a compreensão dos processos discursivos, dentro de um complexo de significações, em que o analista se dispõe a depreender do sujeito, inserido no contexto da organização textual, o momento em que se dá a subjetivação no ambiente de produção textual.

Adentrar o universo de produção do artigo, O Discurso, é perceber que a autora inicialmente procura mostrar sua concepção de linguagem. Pronuncia-se declarando que o estudo da linguagem abarca muitas maneiras possíveis de estudá-la.

Mostra que a língua enquanto um sistema de signos é o objeto da Linguistica, e como sistema de regras que normatiza o falar e o escrever são o objeto da Gramática Normativa.

Dentro dessas concepções, pode-se entender que a palavra gramática é vista como algo cercado de significados vários, passível de muitas interpretações, assim como a palavra língua.

Nesse caso, a língua ganha destaque dentro dos estudos da linguagem, por haver muitas maneiras de estudá-la, quando se considera as diferentes épocas, distintas tendências, e a diversidade de autores com abordagens subjetivas.

Esse entendimento nos permite dizer que o estudo da linguagem ganha interpretação própria no discurso enunciativo de Orlandi, dentro de sua Análise de Discurso. Fato que traduz visão singular do termo discurso, e em algum momento pode dissipar-se em significados distintos e próprios a guisa da autora.

Cabe ainda mencionar, que:

A Análise de Discurso como seu próprio nome indica, não trata da língua, não trata da gramática, embora todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando. (ou enuncuando?). (ORLANDI, 2007, p. 15 )

Em face do exposto, dispomos a seguir, fragmentos de textos com incidência do termo discurso, com a finalidade de discutirmos possíveis significados desse termo dentro do que enuncia a teoria da Análise de Discurso, especificamente, o texto: O Discurso.

1) [...] O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando. (ORLANDI, 2007, p. 15).

2) A Análise de Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana. (ORLANDI, 2007, p. 15).

3) [...] não se trabalha, como na linguistica, com a língua fechada nela mesma mas com o discurso, que é um objeto sócio-histórico em que o linguistico intervém como pressuposto. (ORLANDI, 2007, p. 16).

4) Partindo da ideia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso, e a materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discurso – ideologia.

5) [...] Essa relação se complementa com o fato de que, como diz M. Pêcheux (1975), não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido. (ORLANDI, 2007, p. 17).

6) [...] o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentido por/para os sujeitos. (ORLANDI, 2007, p. 17).

7) Embora a Análise de Discurso, que toma o discurso como seu objeto próprio, tenha seu início nos anos 60 do século XX [...](ORLANDI, 2007, p. 19).

8) [...] conjugando a língua com a história na produção de sentidos, esses estudos do discurso trabalham o que vai se chamar a forma material (não abstrata como a da linguistica) que é a forma encarnada na história para produzir sentidos: esta forma é portanto linguístico-historica. (ORLANDI, 2007, p. 19).

9) [...] a Análise de Discurso é herdeira das três regiões de conhecimento – Psicanálise, Linguística, Marxismo – não o é de modo servil e trabalha uma noção - a de discurso – que não se reduz ao objeto da Linguística, nem se deixa absorver pela Teoria Marxista e tampouco corresponde ao que teoriza a psicanálise [...](ORLANDI, 2007, p. 20).

10) A análise de discurso, trabalhando na confluência desses campos de conhecimento, irrompe em suas fronteiras e produz um novo recorte de disciplinas, constituindo um novo objeto que vai afetar essa formas de conhecimento em seu conjunto: este novo objeto é o discurso.

11) A noção de discurso, em sua definição, distancia-se do modo como o esquema elementar da comunicação dispõe seus elementos, definindo o que é mensagem. [...] ao invés de mensagem, o que propomos é justamente pensar aí o discurso [...] (ORLANDI, 2007, p. 20).

12) A linguagem serve para comunicar e não comunicar. As relações de linguagem são relações de sujeitos e de sentidos e seus efeitos são múltiplos e variados. Daí a definição de discurso: o discurso é efeito de sentido entre locutores. (ORLANDI, 2007, p. 21).

13) Também não se deve confundir discurso com fala na continuidade da dicotomia (língua/fala)[...] (ORLANDI, 2007, p. 21).

14) O discurso não corresponde à noção de fala pois não se trata de opô-lo à língua como sendo esta um sistema, onde tudo se mantém, com sua natureza social e suas constantes, sendo o discurso, como a fala, apenas sua ocorrência casual, com suas variáveis etc. O discurso tem sua regularidade, tem seu funcionamento que é possível apreender se não opomos o social e o histórico, o sistema e a realização, o subjetivo ao objetivo, o processo ao produto. (ORLANDI, 2007, p. 22).

15) A Análise de Discurso faz outro recorte teórico relacionando língua e discurso. Em seu quadro teórico, nem o discurso é visto como uma liberdade em ato, totalmente sem condicionantes linguísticos ou determinações históricas, nem a língua como totalmente fechada em si mesma sem falhas ou equívocos. (ORLANDI, 2007, p. 22).

16) A língua é assim condição de possibilidade do discurso. No entanto a fronteira entre língua e discurso é posta sistematicamente em cada prática discursiva, pois a sistematicidades acima referidas, não existe, como diz M. Pêcheux (1975), sob a forma de um bloco homogêneo de regras organizado à maneira de uma máquina lógica. A relação é de recobrimento, não havendo portanto uma separação estável entre eles. (ORLANDI, 2007, p. 22).

Diante do que acabamos de observar, o termo discurso figura como elemento constituidor de significados bem próprios e pertinentes à teoria de Orlandi, diferenciando-se da noção de fala, quando a esta se deseja opô-lo.

Ademais, é conveniente perceber outros significados do termo discurso, antes de dar procedência a nossa verificação.

- em sentido lato, é o termo que melhor corresponde em português PAROLE, estabelecido por Saussure. É a atividade linguistica nas múltiplas e infindáveis ocorrências da vida do indivíduo (Camara, 1959, 20s). É portanto, a língua atualizada num momento dado, por um dado indivíduo, quer como FALA(discurso oral), quer como ESCRITA (discurso escrito). – em sentido estrito, o discurso é a reprodução que se faz de um enunciado atribuído a outra pessoa (Nascentes, 1946:37). Pode ser: discurso direto; discurso indireto. (Camara Junior, 1997: p.120-121) (grifos nosso)

Nessa visão clássica, podemos pensar as questões do narrador ao dar voz às personagens, ocupando-se em repetir o enunciado nos termos exatos em que foi feito, nesse caso: discurso direto. Também, quando o narrador transmite o conteúdo do enunciado com palavras suas, configura-se o discurso indireto.

Quando falamos em discurso direto e indireto, nos vem à mente construções textuais, e sempre que falamos em texto, dentre muitos notáveis, pensamos em Marcuschi (2009), relacionando texto, discurso e gênero. Mas no momento o que nos interessa é perceber a abordagem dele ao item discurso.

Para Marcuschi (2009), discurso pode ser considerado como o objeto do dizer, nos moldes de Coutinho (2004) e Adam (1999). Ainda em Coutinho (apud Marcuschi, 2009: p.81), uma das tendências atuais é a de não distinguir da forma rígida entre texto e discurso, pois se trata de frisar mais as relações entre ambos e considerá-los como aspectos complementares da atividade enunciativa. Decorre disso o discurso objeto do dizer e o texto objeto de figura.

No entendimento acima, o texto é visto como objeto abstrato e o discurso como realidade singular de interação-enunciação objeto de análises discursivas. Adam (1999, p.40).

A partir do que enunciamos – o termo discurso passa a ter diferentes perspectivas de significação dentro do contexto dos excertos acima relacionados. Dentre eles, pode-se perceber nos itens 01; 02; 08, e 12, um forte apelo à condição do termo discurso está relacionado com a produção de significado.

Podemos também destacar, que a relação com o aspecto ideológico é muito forte nos itens 03; 04; 05, e 06. Já nos itens 09 e 10, percebe-se que o termo em questão incorpora a condição de ser um objeto provido de multidisciplinaridade. Não menos importante é destacar dos itens 13 e 14 o que confirma, no inicio do artigo pesquisado, ser o discurso diferente da fala.

Nos demais itens, podemos cogitar significados bem distintos aos contextos em que estão inseridos. O discurso figura como elemento dicotômico à língua, subordinado a uma liberdade em atos e a condicionantes linguísticos, históricos, contraposto a uma língua nem sempre hermética e sem falhas.

Também, podemos entendê-lo como dependente da língua, mas não subordinado ao formalismo dela. Em algum momento, não há entre ambos, uma separação estável e perceptível aos incautos manipuladores do discurso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não há o que concluir, a não ser fomentar.

Embora nosso trabalho tenha partido de textos aparentemente distintos, os autores têm procedência filosófica na escola francesa dos estudos da linguagem. Fato que se somou para idealizarmos esta tarefa, justamente mediada pelas Teorias do Discurso e da Enunciação.

Ao dispor as teorias para verificação, desejamos também, não fomentar um certo maniqueísmo, e nem mesmo fazer de nosso trabalho uma exegese, mas tão somente dispor questões que sejam passíveis de se fomentar.

É com esse pensamento, e com base na Análise de Discurso, que procuramos perceber como um objeto simbólico produz sentido, nesse caso, nosso objeto é o termo discurso, transformando a superfície linguistica, o enunciado, em um objeto discursivo.

Isso nos possibilitou verificar como o termo discurso se entrelaça nos textos de Orlandi e Benveniste, e em que momento esse termo passa a ser definidor das propostas apresentadas pelos autores em seus textos.

A partir dessa questão, percebe-se que o termo discurso é pertinente a um e outro autor, quando procuramos entender que, toda teoria, assim como toda fala, define-se em relação a outras teorias, a outras falas.

Queremos dizer com isso, que a Teoria da Enunciação está em certa medida em outros autores, o que a faz responsável dentro de seu quadro teórico, e revela-se produtiva dentro de outros construtos teóricos.

Ao verificarmos os distintos autores, alvo de nosso trabalho, percebemos que em suas escritas, especificamente a partir do vocábulo discurso, esse é visto como manifestação da enunciação; o discurso como instância da enunciação, e o discurso como formas complexas. Questões já verificadas anteriormente.

Também encontramos outro entendimento quanto ao termo discurso; como o que tem a possibilidade de significar, o processo linguistico ideológico multidisciplinar, e a concepção de discurso diferente do conceito de fala.

Embora haja concepções distintas entre os autores, pode-se dizer que no computo geral, de alguma forma, os termos se complementam dentro dos aparatos teórico-metodológicos de autores pesquisados. Fato que pode ser bem compreendido em autores como: (CREMONESE, 2007); (BARROS, 1994); (FIORIN, 1999); (FLORES et al., 2009); (FLORES e TEIXEIRA, 2005).

Esses autores articulam que há interlocuções dos estudos enunciativos com outras áreas e citam como principais as intersecções da Enunciação com: a Literatura, a Filosofia, a Psicanálise, a Análise de Discurso, a Patologia da Linguagem, a descrição linguística, linguagem e trabalho e, por fim, texto.

Das interfaces mencionadas, pode-se dizer que se originam a partir de estudos de diversos teóricos da Linguística da Enunciação, dentre eles Benveniste.

É justamente por haver essa interlocução, que podemos sinalizar a incorporação de fastos da teoria benvenistiana em textos que articulam estudos da linguagem, passível de ser percebido em (FÁVERO e KOCH, 1988) – clara menção aos estudos da enunciação.

[...] texto, em sentido lato, designa toda e qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano, (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunicação realizado através de um sistema de signos. Em se tratando da linguagem verbal, temos o discurso, atividade comunicativa de um falante, numa situação de comunicação dada, englobando o conjunto de enunciados produzidos pelo locutor (ou por este e seu interlocutor, no caso do diálogo) e o evento de sua enunciação. O discurso é manifestado, linguisticamente, por meio de textos (em sentido estrito). (FÁVERO; KOCH, 1988, p. 25 - grifos nossos).

Referindo-se ao discurso a autora vai dizer em outra publicação, que:

[...] o discurso constitui uma unidade pragmática, atividade capaz de produzir efeitos, reações, ou, como diz Benveniste (1974), “a língua assumida como exercício pelo indivíduo”. Ao produzir um discurso, o homem se apropria da língua, não só com o fim de veicular mensagens, mas, principalmente, com o objetivo de atuar, de interagir socialmente, instituindo-se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como interlocutor, o outro, que é por sua vez constitutivo do próprio EU, por meio do jogo de representações e de imagens recíprocas que entre eles se estabelecem. (KOCH, 2004, p. 19-20 - grifos nossos).

Esse discurso, em que a língua assumida como exercício pelo indivíduo, vai figurar em Orlandi como sendo palavra em movimento, prática de linguagem: com o estudo do discurso observa-se o homem falando. (ou enunciando?) (ORLANDI, 2007, p. 22).

Ao falar, ou enunciar, o homem produz sentido, passa a significar, esse processo, que é o discurso, revela-se entre os falantes, ambos, apresentam-se em seus discursos. Esse entendimento ganha dimensão semelhante nos dizeres dos autores.

[...] na enunciação, a língua se acha empregada para a expressão de uma certa relação com o mundo. A condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de se referir pelo discurso [...](BENVENISTE, 1970, p. 84).

Para esse autor, a enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso, e é o que põe em funcionamento à língua. O mesmo discurso significado como palavra em movimento, proposto por Orlandi, é o que vai mediar às relações do homem e a realidade natural e social. Nesse processo de mediação, pode-se concebê-lo como um objeto sócio histórico, e a partir dessa concepção é possível refletir sobre a maneira como a linguagem está materializada na ideologia e como a ideologia se manifesta na língua.

Partindo da ideia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso, e a materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discurso – ideologia. [...] Essa relação se complementa com o fato de que, como diz M. Pêcheux (1975), não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido. [...] o discurso é o lugar em que se pode observar essa relação entre língua e ideologia, compreendendo-se como a língua produz sentido por/para os sujeitos. (ORLANDI, 2007, p. 17).

Quando se fala em possibilidade de significar, entende-se um sujeito afetado pela língua e pela história. Ele é assim determinado, pois se não sofrer os efeitos do simbólico, submetendo-se à língua e a história, ele não se constitui, ele não fala, não produz sentidos. (ORLANDI, 2007, p. 49).

Já em Benveniste, pode-se observar que a enunciação é o colocar em funcionamento a língua por um ato individual, e supõe a conversão individual da língua em discurso, sendo o discurso o produto da fala. Nesse contexto, a relação do locutor com a língua determina os caracteres linguísticos da enunciação. Deve-se considerá-la como o fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos caracteres linguísticos que marcam esta relação. (BENVENISTE, 1970, p. 82-83). O texto organiza os gestos de interpretação que relacionam sujeito e sentido. (ORLANDI, 2007, p. 26).

Tanto um autor quanto o outro, partilham semelhante entendimento no que diz respeito ao discurso como elemento a significar, e ao mesmo tempo ser afetado pela língua, no uso de caracteres linguísticos, intermediados por processos linguísticos, ideológicos e históricos.

A partir do que foi inventariado, percebeu-se que o objeto de nossa verificação é partilhado pelos autores no que diz respeito ao discurso como elemento a significar, e ao mesmo tempo ser afetado pela língua, no uso de caracteres linguísticos, intermediados por processos linguísticos, ideológicos e históricos.

Assim, diante de tudo o que foi articulado nesta pesquisa, pode-se dizer que o discurso em algum momento figura como verdadeiro fundamento do estudo da linguagem, entrelaçando-se nos construtos teóricos dos autores, a revelar-se como importante organizador das propostas desses construtos, e de intermeio, conduz-nos a entender que toda teoria, assim como toda fala, define-se em relação a outras teorias, a outras falas. No entanto, essa herança passa pelos sujeitos que as produz, deixando-nos a hipótese de que há tantos construtos teóricos quantos forem os sujeitos que os teorizam.

Por isso, acreditamos que o ato enunciativo seja uma forma de organizar o discurso, e aí estamos nos filiando à (CHARAUDEAU, 2009), uma vez que não há argumento que já não tenha sido atual, mesmo acreditando poder parafrasear o que seja ideológico.

Pensar que o termo discurso, possa ter aqui, destino diferente do que você já tenha pensado, é fazer deste artigo algo incomum, pois ele é um texto acadêmico, que a princípio deve atender aos ditames do academicismo, estruturar-se em um modo Enunciativo, e ser organizado a partir de um modo Argumentativo.

Porém, não desejamos nos furtar ao compromisso de finalizar este artigo com uma proposta pedagógica. Em face do que já comentamos, acreditamos ser conveniente enunciar a proposta de (CHARAUDEAU, 2009), quando esse autor diz:

O Modo Enunciativo tem uma função particular na organização do discurso. Por um lado, sua vocação essencial é a de dar conta da posição do locutor com relação ao interlocutor, a si mesmo e aos outros – o que resulta na construção de um aparelho enunciativo, (Aparelho Formal da Enunciação- Benveniste); por outro lado, e em nome dessa mesma vocação, esse Modo intervém na encenação de cada um dos três outros Modos de organização. É por isso que se pode dizer que este Modo comanda os demais. (CHARAUDEAU, 2009, p. 74 - grifo nosso)

Modo ENUNCIATIVO Modo DESCRITIVO

(localiza – situa)

Modo NARRATIVO

(ações, enredo, história, fatos, personagens)

Modo ARGUMENTATIVO

(mostra ponto de vista – exerce influência sobre interlocutor)

(quadro a partir do original em: (CHARAUDEAU, 2009, p. 74)

Por entender que o aspecto didático facilita o entender pedagógico, essa é a razão pela qual insistir em mostrar e finalizar este artigo com o quadro abaixo.

Modos de organização do Discurso. (PATRICK CHARAUDEAU, 2009, p. 74),

MODO DE ORGANIZAÇÃO FUNÇÃO BASE PRINCÍPIO DE ORGANIZAÇÃO

ENUNCIATIVO Relação de influência

(EU > TU)

Ponto de vista do sujeito

(EU > ELE)

Retomada do que já foi dito

(ELE)

• Posição em relação ao interlocutor

• Posição em relação ao mundo

• Posição em relação a outros discursos

DESCRITIVO Identificar e qualificar

Seres de maneira

Objetiva / subjetiva

• Organização da construção descritiva

( Nomear – Localizar – Qualificar)

• Encenação descritiva

NARRATIVO Construir a sucessão das ações de uma história no tempo, com a finalidade de fazer um relato.

Organização da lógica narrativa ( actantes e processos)

Encenação narrativa

ARGUMENTATIVO Expor e provar casualidades numa visada racionalizante para influenciar o interlocutor

• Organização da lógica argumentativa

• Encenação argumentativa

4 REFERÊNCIAS

BENVENISTE, Émile – Problemas de Linguística geral I. Pontes:1989.

BENVENISTE, Émile – Problemas de Linguística geral II. Pontes:1989.

CAMARA JUNIOR, Joaquim Mattoso – Dicionário de linguística e gramática. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

CHARAUDEAU, Patrick – Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2009.

FIORIN, José Luiz (org.) – Introdução à linguística: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2008.

FIORIN, José Luiz (org.) – Introdução à linguística: Princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2008.

MARTELOTTA, Mário Eduardo (org.) – Manual de linguística. São Paulo: Contexto, 2009.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de Discurso: princípios & procedimentos. Campinas: Pontes, 2009.