Costume e razão
Podemos nos acostumar com qualquer coisa, e uma vez que nos acostumamos a ela, passa a ser natural, aceitável. Para a maioria torna-se inexorável, imutável.
A polícia da CIDADE do Rio de Janeiro mata mais gente que a de toda a Europa junta! Notem o tamanho do absurdo! Mas aqui isso é aceitável; sempre foi assim, continuará sendo; normal.
!!!
Esse dado não inclui um outro igualmente assustador: o estranho fenômeno das balas perdidas. De alguma maneira extraordinária, uma infinidade de balas se perdem por toda a cidade do Rio de
Janeiro, de maneira, que, naturalmente, muitas delas acabam sendo encontradas por incautos; fenômeno tipicamente carioca, natural apenas nestas paragens, e mais frequente nas favelas.
Tais disparates locais podem ser facilmente expostos e compreendidos, dado que acontecem apenas em uma única região, em uma única cidade.
Fenômenos mais abrangentes parecem ainda mais naturais e imutáveis.
Crimes consistem em se causar um mal a alguém; no caso das drogas, a suposta vítima é o próprio criminoso. Penaliza-se, então, o indivíduo, por, supostamente, ter causado um mal a si mesmo.
O legislador que proscreve o uso de drogas acredita ter o direito de interferir na vida das pessoas a ponto de definir o que elas podem, ou não, fazer consigo mesmas.
No início do século passado, o uso de drogas sem prescrição médica foi proibido nos EUA, país mais poderoso do mundo. A proibição do álcool, a droga mais utilizada, durou poucos anos, foi abolida; o restante das drogas permaneceu proibido.
Durante a proibição, comerciantes honestos foram obrigados a parar de vender bebidas alcoólicas, deixando o mercado apenas para os criminosos. Dessa maneira, a lei favoreceu francamente o crime, proporcionando lucros imensos aos bandidos. Posteriormente, a proibição do álcool acabou abolida por lá, o restante da proibição perdura até hoje.
O país mais poderoso do mundo impôs essa proibição por quase todo o planeta, criando um crime gravíssimo: o tráfico de drogas, passível de pena pesada. Criou também, simultaneamente, um mercado imensamente lucrativo: o das substâncias proibidas. Trata-se, quase certamente, do crime mais lucrativo em todo o mundo. Obviamente, os dados sobre isso são escassos.
Essa proibição financia o crime, torna o crime uma profissão rendosa para muitos. Dadas as cifras financeiras envolvidas em atividades criminosas, podemos inferir um grande número de profissionais atuando no setor. Tais profissionais, os bandidos, existem em tão grande número devido à enormidade do mercado em que atuam. Atuando fora da lei, já estando fora dela, pouco se preocupam com outras proibições legais, sentindo-se livres, assim, para roubar, matar, ou executar qualquer outro crime.
A legalização das drogas acabaria, de imediato, com esse imenso mercado; retiraria dele a verba incalculável que lhe é injetada diariamente, obrigando os profissionais do crime a buscar ocupação
com melhor remuneração. O número de criminosos seria drasticamente reduzido em todo o mundo, seu poder também, e em consequência, toda a criminalidade.
O interesse em que isso NÃO ocorra é todo deles; são os criminosos que se beneficiam da proibição, é a eles que a lei favorece.
No futuro existirão drogas muito piores que as atuais, sob todos os aspectos. A manutenção da ilegalidade favorece o desconhecimento sobre o assunto, a ignorância. Dificulta muitíssimo a compreensão racional do problema, a busca de soluções. Existem ainda questões de saúde relativas ao caso, a proibição agrava tremendamente esse mal.
Talvez o tabaco venha a ser criminalizado. Caso isso ocorra, a proibição virá junto com toda a criminalidade que abarcará e monopolizará o setor lucrativo. O café parece ter conseguido escapar dessa sorte, após milionária campanha publicitária e o financiamento de pesquisas médicas favoráveis à droga.
Outra questão surpreendente em nosso mundo é a do aborto. Crimes pressupõem uma vítima. Alguém tem que ter sofrido um mal para que tenha havido um crime. No caso do aborto, a suposta vítima ainda não existe, trata-se de uma vítima futura. Em algum momento alguém decidiu que uma pessoa passava a existir quando um óvulo era fecundado. Poderia ter sido considerada a existência prévia de um óvulo, ou mesmo a do espermatozóide; também se poderia postergar a existência humana para um feto mais desenvolvido, ou qualquer outro momento até o nascimento. Tendo sido eleito o instante da fecundação, qualquer interrupção da gravidez pode ser considerada criminosa, ainda que a vítima exista apenas em projeto. Que genocídio extremo seria uma masturbação masculina caso se considerasse a vida dos espermatozóides. Mas isso nos pareceria absurdo, não estamos acostumados com isso. Já nos acostumamos a considerar pessoa o óvulo fecundado, e seu desenvolvimento futuro, a razão tem pouca interferência no assunto, trata-se de mera questão de costume.
Se considerarmos com atenção o nosso mundo, descobriremos nele uma quantidade imensa de absurdos cotidianos com os quais estamos acostumados. Podemos nos acostumar com qualquer coisa, passando então a desejar, e a reivindicar a manutenção daquele absurdo em busca de uma estabilidade. Buscamos sempre a estabilidade, a continuidade da situação atual, mesmo que absurdamente injusta, cruel, ou insana. Nada disso impede que o cidadão comum prefira manter, comodamente, a mesma situação em que nasceu e cresceu, ainda que brutalmente oprimido por ela. Nenhum sofrimento, desde que cotidiano e constante, faz o cidadão comum pensar que alguma coisa deveria ser mudada. Somos seres conservadores, buscamos a estabilidade e evitamos as mudanças, especialmente, aquelas que não podemos compreender. O desconhecimento, aliás, é poderoso aliado do conservadorismo, amedrontando os ignorantes com um futuro incompreensível decorrente de qualquer mudança. Somos absurdamente irracionais.