A menina e o juiz

Dias atrás, assisti ao vídeo de um julgamento americano no qual uma moça acusada de um delito leve (porte de droga), se apresentou ao juiz em atitude desrespeitosa, portando-se como uma criança tola. Em represália, o homem atribuiu-lhe fiança impagável (10.000 dólares, ela recebia 200 por semana) e um mês de reclusão. Aparentemente, a pena foi devida a sua atitude perante a autoridade. Não me surpreenderia receber a informação da permanência da jovem na penitenciária por longos anos, dado seu comportamento infantil frente a uma autoridade com tamanho poder.

O vídeo era esse:

http://www.braian.com.br/adoro-ver-gente-que-se-acha-esperta-se-fdendo/

Suspeito que ocorrerá o seguinte: a moça não terá dinheiro para pagar fiança, nem advogado, de modo que seu processo se arrastará por vários meses até que a justiça acorde e a liberte. Nesse meio tempo, terá sorte se, imatura que é, conseguir não se envolver em problemas na penitenciária, ampliando o período de reclusão.

Mas, o que justificou tão grave pena? Qual foi seu crime?

O crime propriamente dito, pelo qual estava sendo julgada, foi porte de droga. A pena por ele teria sido branda, uma multa equivalente a uma semana, ou um mês de trabalho da jovem, provavelmente, mas ela incorreu em um outro, passível de pena muito maior.

A jovem tinha que ter abaixado a cabeça, e fingido concordar com todas as admoestações do juiz, enquanto, talvez, jurasse matar quem quer que a houvesse denunciado. Deveria ter demonstrado total submissão ao homem à sua frente, enquanto tentasse imaginar algum meio de explodir tudo aquilo. Em suma, a moça deveria ter fingido aceitar toda a estrutura de poder vigente de uma maneira convencionada, é o modo adulto. Não fez isso.

A menina se comportou como uma criança, riu dos tropeços do juíz, de suas ponderações. Demonstrou seus sentimentos sobre tudo aquilo, enquanto tentava manter alguma sanidade, enquanto buscava manter algum controle sobre si mesma em situação de tamanha tensão. Crime grave. Amargará longo período em reclusão, perderá parte considerável de sua juventude.

O mundo é estranho.

O caso ocorreu nos Estados Unidos, aqui teria sido muito pior, provavelmente. O sistema jurídico padece de alguns erros gravíssimos, esse caso evidencia claramente 2 deles.

A ideia de igualitarismo é relativamente recente. A revolução francesa, primeiro fruto dessa ideia, data de 1789. Por essa época já existiam os tribunais e o sistema jurídico já estava estruturado em quase todo o mundo. Mantiveram a estrutura de poder pré-existente.

O juiz quer ver o réu, quer informações sobre ele, quer hierarquizá-lo em uma estrutura de classes. Não me refiro às informações relevantes ao delito supostamente praticado pelo réu, quer informações sobre ele: sua profissão, sua renda, onde mora, como se veste, qual a sua cor, sua aparência, qual a sua postura perante a autoridade do juiz. Em suma, quer informações para classificá-lo em seu sistema hierárquico, e sob sua submissão a ele, e ao poder que representa.

Em uma sociedade igualitária onde todos tivessem os mesmo direitos, todas essas informações seriam irrelevantes. A pena atribuída ao réu seria definida por seu crime, independente de qualquer consideração sobre sua pessoa. Dificuldades orçamentárias drásticas poderiam, eventualmente, justificar delitos cometidos com o intuito de saná-las, como em casos de fome. Mas tais considerações nunca seriam usadas para condenar um indivíduo, ou para ampliar-lhe a pena.

Além das informações sobre o status social do réu, mais importante quanto maior seja a estratificação social local, o juiz ainda exige submissão. Um réu pagará caro por qualquer atitude desafiadora. O juiz está lá, antes de tudo, para manter a ordem, para mostrar quem é que manda (isso vige em sociedades fascistas como a nossa). O réu deve se submeter ao juíz, ao seu poder; será penalizado caso não o faça; há um forte componente subjetivo, arbitrário, nas condenações e consequentes atribuições de pena. Essa sujeição atávica, animalesca, é similar à exigida muito nitidamente pelos babuínos, e, via de regra, por quase todos os animais que se dispõem em grupos

sociais estratificados, e consiste em um reforço na relação de dominação.

A menina do vídeo incorreu no grave crime de não executar o ritual de demonstração de submissão, talvez perca a juventude por isso.

Nosso mundo é bem estranho, mas os sistemas penais deveriam se atualizar e se tornar igualitários. Mas os poderosos raramente sentam no banco dos réus, de modo que essa estrutura arcaica muito lhes convém.

Pós escrito: o caso ocorreu em fevereiro e ganhou repercussão nas redes sociais. Em decorrência disso, na semana seguinte, o juiz tornou a chamar menina ao tribunal, onde ela compareceu triste, tentando evitar o sorriso que eventualmente esboçava entre lágrimas. Dessa vez teve a pena reduzida, justificada pela conclusão do juiz de que ela teria agido anteriormente sob o efeito de drogas. A moça teve sorte.

http://www.huffingtonpost.com/2013/02/08/penelope-soto-apologizes-judge-middle-finger_n_2647527.html

Fico pensando na pena que teria recebido caso, em vez da menina frágil, fosse um negão imenso e carrancudo. Suspeito que tal aparência constitua um crime bem grave.