MANUAL DO ESCRITOR / A Cura Pela Palavra


escrevo porque
escrava da palavra
-larva cravada
no cerne
da minha carne-
sou.


e por isso escrevo, e por isso escreves, e não há nada que se possa fazer contra isso...mas a favor sim, eu por ela e ela, a escrita, por mim.

olha só: um dia desses (até que não faz tão pouco tempo assim...) eu tive um sonho. literalmente sonhei em letra de forma, pois que de tão claro o sonho, ele explicitava, escancarava mesmo o seu significado. 
sonhei com o meu lado do avesso onde milhares de fios de lã se desenovelavam, revelando-se em veias e artérias que corriam por todo o meu corpo.
de tantas e de tão pequenas que eram, eu não conseguia distinguir o que ia dentro delas, mas sabia que dentro delas algo ia. 
coloquei então uma lupa sobre um dos braços e vi que naquelas veias corriam e se atropelavam muitas letras, milhares delas, maiúsculas, minúsculas, kidprint, times new roman, letras de fontes tão diferentes mas com algo comum a todas elas: 
alem de muito apressadas, todas tinham um pequeno defeito, ou uma perninha quebrada, ou uma curvinha incompleta, ou um acento mal parado, defeitos que lhes permitiam correr, mas de um jeito bastante destrambelhado... 

acordei desse sonho cheia de impressões e dele só me des-envolvi quando resolvi marcar um check-up clínico e, apesar de estar me sentindo perfeitamente saudável, os exames apontaram para algo que não andava bem dentro de mim... 
e foi por conta de ter sido diagnosticada precocemente que hoje, felizmente, este caso virou história para eu contar... 
e por mais uma vez me assegurei que tenho nas letras minhas boas aliadas e com a palavra uma grande intimidade, e que seguimos nos prestando bons serviços...

e por isso escrevo, e por isso escreves: 
porque a escrita corre por nossas veias, e, assimilada, a nós se impõe...porque ela para ela nos desperta, gritando se percebe que não estamos lhe dando atenção. 
a palavra nos tenta, atenta contra nosso sossego, nos inquieta e não sossega tampouco enquanto não a levarmos a sério.
 a percepção desse movimento me assegura que não sou eu quem escreve, e o que faço talvez não seja mais que transferir para o papel aquilo que em mim já fora escrito; porque é passiva que em geral me sinto frente à combinação de letras que com freqüência me assola;
 e acredito não haver outra possibilidade de se escrever, que não seja transcrever o que vai lá no fundo de nós. porque é lá no fundo onde a palavra nasce e também é aí aonde o tema vai conosco se encontrar - se estivermos disponíveis para reconhecê-lo. 
portanto, disponibilidade, receptividade, continência, ouvidos afinados e paciência para o momento da transposição (DO INTERNO PARA O EXTERNO, DO INSCRITO PARA O EXCRITO) e aqui atenção: 
um delicado trabalho de escolher sílabas como se escolhêssemos grãos, cuidando para que seja cada palavra uma peça única, vital, saboreada e que porque sabe à exclusividade , jamais outra poderá ocupar o seu lugar. 
A PALAVRA DEFINITIVA NO CONTEXTO DEFINITIVO. perfeição? perfeição! porque perfeito é tudo o que corre no peito da gente, e que faz do feito da escrita um fato sintônico, harmônico, sincrônico, mas, sobretudo, muito mais simples do que tudo isso:
 re-escrever o que vive dentro de mim;
 escrever simplesmente porque estou viva, e que por isso mexo com as letras, divirto-me com elas, provoco suas rimas, insinuo predicados, invoco memórias de hoje de manhã porque o tempo é agora e cada letra que colho, cada sílaba que acolho, algo de espetacular vejo acontecer na minha vida.

escrever é essa emoção de acrescentar silabas à minha biografia e esse sabor...ah, esse sabor agora eu sei:

 é por ele que eu escrevo, e tu,
 é por ele que tu escreves.




lílian gattaz

maio / 2005
Lilian Gattaz
Enviado por Lilian Gattaz em 20/04/2007
Código do texto: T457526