Teoria do Bonequinho 2

É interessante observar o quanto o homem vem buscando novos espaços para se dissolver em função de suas angústias; suportá-las não é tarefa fácil, demanda muita energia e criatividade, pois são inesgotáveis as pulsões do querer, que, para evitar, chega ser quase que sobre-humano tal esforço.

Mesmo insatisfeito, embora esteja cheio de ocupação tecnológica acessível a qualquer pessoa, ainda assim o homem se sente vazio a procurar algo que o complete. É tão nebulosa e inatingível esta busca, que leva a vida inteira só para se entender que não se encontra nada de absoluto nesta procura, mas o fato de buscar esse entendimento absoluto, também nos leva a ter essa sensação de que estamos ocupados com o acaso. Essa busca preenche e traz harmonia interior, ou o que se pode chamar de bem-estar espiritual ou até mesmo felicidade. Logo, o querer continua sendo o único objetivo que supre a lacuna do vazio existencial, um fim ao que se poderia chamar de nada, embora a criatividade de criar dispositivos em que a imaginação é o ponto fecundo principal, mostra-nos o quanto somos criativos em simular a realidade e sentimentos que nos transformam e transportam para mundos e situações confortáveis que amenizam o sofrimento e até nos traz a paz interior. Esse é o maior legado que um animal pensante poderia atingir; sofrer por ter consciência do próprio sofrimento e ao mesmo tempo curá-lo pelo mesmo dispositivo que o faz sofrer. É o ponto máximo do desenvolvimento criativo em que a arte e a religião surgem como bálsamos para as feridas existenciais.

Buscando sentido em tudo isso, remontando os primórdios de nossa existência primitiva, em que o homem saía para caçar seu sustento e dos seus protegidos; tarefa que não era fácil, pois tinha que caçar em grupo; sozinho seria suicídio. As mulheres ficavam na coleta de frutas, plantas medicinais e cuidando da prole que necessitava de cuidados diversos, principalmente em relação aos animais predadores. Havia necessidade de atenção permanente; um descuido seria fatal. Por isso que a mulher sempre teve um papel na sociedade primitiva de mantenedora, sendo que sair para caçar seria desastroso em função de sua fragilidade física e emocional.

Mesmo assim, perseverante, a mulher sempre esteve ao lado do seu homem com quem mantinha um laço de fidelidade e união que seria desfeito apenas com a morte. Com o passar do tempo, a situação foi se modificando e a mulher começou a ganhar um espaço maior em diversas sociedades antigas. Afinal, ser mulher nas sociedades antigas tinha muita representação: era a própria representação da mãe natureza; podia dar vidas ao mundo; era a própria representação da ideia de um Deus vivo. A natureza materializa-se através do feminino, onde surge como um milagre da união de dois corpos e traz o milagre da vida. Por isso que nessas sociedades, antes do domínio do Deus Pai, havia o culto à Deusa Mãe, e a mulher era a sacerdotisa, a condutora dos trabalhos e rituais. Ninguém poderia representar melhor que ela o papel de sacerdotisa, representação magnânima e providencial.

Contudo, com o surgimento do Deus único de Moisés e depois o do Cristianismo, instituição religiosa poderosa, e seguindo os passos históricos do Judaísmo monoteísta, passou a perseguir todas as demais religiões, inclusive o próprio Judaísmo, consideradas fora do padrão das escrituras sagradas em que o Deus homem era a única representação possível e todas as outras eram inaceitáveis sob a ótica interpretativa destes livros (Bíblia), assim chamado sagrado por eles. Como todas as religiões têm seus escritos sagrados, contudo, infelizmente, o que tiver maior poder de força subjugará as demais, como foi o caso no século IV da era Cristã, a criação da Igreja Católica Apostólica romana pelo Imperador Romano Constantino, pois os Cristãos que até então eram perseguidos e praticados os mais brutais e violentos métodos, como por exemplo, jogados às feras famintas em arena como atração para o povo se divertir; a partir de então, esses mesmos cristãos, juntamente aos cristãos novos, começaram a perseguir essas religiões pagãs que com o tempo foram dizimadas quase que por completo.

Citarei um caso muito interessante, embora haja muitos outros; sem dúvida nenhuma este foi muito marcante na história em função dos registros históricos que ainda perduram. Trata-se de uma mulher que viveu no século V em Alexandria. Seu nome era Hipácia, filha de um grande matemático da época. Por sua vez, ela também tinha conhecimentos em matemática, astronomia e adorava filosofia. Lecionava no Museu da cidade, inclusive para alguns membros do clero cristão. Além de todas essas qualidades, também era bonita e admirada por muitos de sua época.

Como acontece com todas as mulheres que enfeitam de beleza a humanidade, atraiu, obviamente, a inveja de muitos de sua época, principalmente em um de seus ex-alunos, influente Bispo da época, cujo nome era Cirilo.

Infelizmente, como todo ser rastejante moralmente, que usa de seu veneno para conseguir seus intentos mais infames, mandou seus fanáticos seguidores excutar Hipácia. Ela foi retirada de sua privacidade, arrastada pelas ruas da cidade, torturada, esquartejada e queimada pelos fiéis do tal Bispo; ela tinha apenas 45 anos. Muitos de seus manuscritos foram confiscados e queimados. Contudo, muitos fragmentos e tratados sobreviveram às intempéries, chegando à posteridade para iluminar seus feitos.

Quanto ao mandante deste ato cruel e desumano, morreu aos 74 anos e foi canonizado com o nome de São Cirilo.

Por conseguinte, é isso que a história nos mostra quando o homem tem sede de poder, o quanto pode ser mesquinho, tirano e destrutivo, mas em contrapartida, sempre haverá muitas Hipácias e homens de valor para que a humanidade construa sua história e extirpe a ignorância, a intolerância, a crueldade para com seu próximo, e, também, aproveitando o contexto, aos irmãozinhos inferiores que, embora não tenham tanta habilidade racional como o homem, precisam viver junto à natureza plenamente e em harmonia para preservar a própria espécie e seguir, igualmente, seu curso natural.

P Schopenhauer
Enviado por P Schopenhauer em 04/11/2013
Reeditado em 15/03/2014
Código do texto: T4555869
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