Heródoto e Tucídides

(...) testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória. (Tucídides apud Gagnebin 1997, p. 27)

Quando paramos em alguns momentos de nossas vidas para tentar relembrar de nossos passados, nossas infâncias, notamos que quanto mais distantes no tempo ficam tornam-se mais fragmentadas e difíceis de se obter alguma clareza. Deste modo acabamos, na medida em que (re)contamos essas histórias pessoais, (re)significando-as. Com isso não quero dizer que estas histórias não sejam “verdadeiras”, mas que elas são contadas diferentemente na medida em que o tempo passa. Assim, não ficaria difícil entender que uma história vivenciada por duas pessoas, dois amigos ou irmãos, por exemplo, são contadas com versões diferentes, num prazo de dez ou quinze anos, sendo que os dois há vivenciaram no mesmo tempo e espaço. Desta forma quero mostrar o quanto é difícil (senão impossível) esta tarefa de (re)construir “verdadeiramente” o passado, mesmo quando este está bem próximo de nós.

Neste texto pretendo trazer uma pequena reflexão sobre o que é a história. Segundo Veyne (1998) ela não é aquilo que os historiadores fazem, tampouco é um debate vão o de se saber se a história é uma ciência.

O fato é que todos temos uma idéia do que é a história hoje. Mas, o que fazem, realmente, os historiadores, de Tucídides a Max Weber ou Marc Bloch, quando saem de seus documentos e procedem à “síntese”? Ou melhor, como era feita a história por Heródoto e Tucídides no século V a.C.?

Neste trabalho proposto para o PA de História Antiga Clássica tentarei traçar alguns entendimentos que tive sobre o artigo O Início da História e as Lágrimas de Tucídides articulando uma comparação entre a história feita primeiramente por Heródoto e a feita, posteriormente, por Tucídides.

Antes de começar a falar sobre os textos de nossos primeiros “Historiadores”, é necessário que fique bem claro que a palavra “história” não existe (pelo menos não como a entendemos hoje). A palavra historiè, que Heródoto declara nas primeiras linhas de sua obra, não pode ser simplesmente traduzida por história. Ela remete à outra palavra grega: histôr, “aquele que viu, testemunhou”.

Heródoto privilegiava a palavra da testemunha, a sua própria ou a de terceiros, ou seja, aquilo que ele mesmo viu ou ouviu falar por outros. Esta investigação que tem como objetivo a verdade é baseada em “testemunhas oculares” bem interrogadas pelo historiador. Segundo Reis (2000, p. 12):

O poeta ouvia as musas; o historiador quer a “verdade” e interroga e ouve os que viram os fatos ou escreve sobre o que ele próprio viu. “Ver” é prioritário sobre o “ouvir dizer”. Diferente do mito e da poesia, o conhecimento histórico é escrito, o que permite a comparação, a correção de contradições, a incredulidade em relação ao fabuloso e maravilhoso. Conhecimento escrito do que foi visto, a história pretende dizer a verdade sobre o mundo dos homens. Ao contrário do mito, que é oral e impessoal, a história é escrita e pessoal. É o próprio historiador a garantia da verdade: a sua assinatura o torna responsável pelo que ele escreveu. Ele escreve na primeira pessoa e a “verdade histórica” confunde-se com sua assinatura.

Heródoto pesquisava e descrevia os “outros” (lídios, persas, babilônicos, massagetas, egípcios, citas, líbios...), ou seja, os “não gregos”. Seus primeiros quatro livros são dedicados à descrição destes povos, os cinco últimos são reservados à narrativa das próprias Guerras Médicas. Ele escrevia para impedir que aquilo que foi feito pelos homens, com o tempo, se apague da memória e para que as grandes e maravilhosas obras, feitas tanto pelos bárbaros (os outros), quanto pelos gregos, não cessem de ser renomadas.

Heródoto quer, sem dúvida, descrever verdadeiramente os outros povos, narrar com magnificência e entusiasmo os seus costumes, que são estranhos aos “olhos gregos” do autor, mas ele só consegue falar deles “em grego”, ou seja, com os sistemas e a lógica de compreensão de um grego. Assim, ao tentar entender o diferente, ele o transforma no “outro do mesmo” (Gagnebin, 1997). Desta forma o que estrutura os textos herodotianos é a lei da comparação entre gregos e bárbaros. Gagnebin (1997, p. 22) diz que:

(...) Conta-se que Heródoto leu, em 445 ou 444 a.C., o seu texto em voz alta ao povo ateniense reunido; transportados pelo entusiasmo, os cidadãos de Atenas lhe ofereceram um prêmio, como se fazia nos concursos de poesia trágica. Talvez uma das razões deste sucesso decorresse de Heródoto ter conseguido construir através da longa descrição dos povos bárbaros uma imagem convincente de “nós”, dos gregos, em particular dos atenienses. Observa-se: não uma imagem bela demais ou demagogicamente lisonjeira, mas a confrontação com o “outro” permite, por um jogo de espelhos, pintar um retrato do “mesmo” muito mais coerente e pleno do que teria feito uma simples reprodução dos seus traços; somente a mediação pelo outro permite esta auto-apreensão segura de si mesmo.

Diferentemente dos historiadores atuais, as análises de Hartog (apud Gagnebin, 1997), mostram uma vontade explícita de Heródoto marcar sua posição de narrador, a qual lembra incessantemente que a nossa informação só provém do seu saber. Além disso, ao narrar, Heródoto fala, às vezes, nos bárbaros e em “nós”, incluindo-se desta forma nos “nós”. Não obstante, ele também se vale de uma terceira pessoa ao narrar os gregos e os outros, uma pessoa que está em um lugar à parte, a igual distância dos bárbaros e dos gregos.

Muitas são as histórias que existem sobre Heródoto. Dentre elas há uma em especial que conta que ao ler trechos de sua obra num concurso literário deixou um jovem tão emocionado levando-o até as lágrimas. Este jovem era Tucídides. Se esta história é verdadeira ou não, de fato, isto não nos interessa. O que nos compete é saber quem foi Tucídides e como ele deu continuidade a sua obra a partir de Heródoto.

Antes de começar a falar de Tucídides, para uma melhor compreensão, se faz necessário pontuar alguns indícios. Estes dois “historiadores” (Heródoto e Tucídides) viveram no século V a.C., ou seja, nos anos 400. O primeiro (Heródoto) viveu e produziu sua obra, aproximadamente, na primeira metade do século (499 a 450 a.C.), sendo que sua obra era voltada para a descrição de outros povos (os bárbaros) em relação aos gregos. O segundo (Tucídides), produziu sua obra na segunda metade do século (450 a 400 a.C.), a qual, ao contrário de seu antecessor, narrava os conflitos de gregos contra gregos, o que podemos ler na obra A Guerra do Peloponeso.

Um dos pontos mais marcantes na obra de Tucídides, ao contrário de Heródoto, é que ele destaca a fragilidade da memória, da sua e a de terceiros, como podemos ver na epígrafe que escolhi para a abertura deste texto. Gagnebin (1997) deixa claro em seu texto, ao falar de Tucídides, que as lembranças e os testemunhos, seus (de Tucídides) ou de outros, são despachados por ele, condenados à relatividade da memória e à subjetividade das preferências pessoais. De fato, é memorável esse entendimento sobre a fragilidade da memória em Tucídides.

Apesar de apontar para a subjetividade e a fragilidade da memória Tucídides não deixava de fazer escolhas pessoais ao narrar os “fatos históricos”. Nestas escolhas feitas por ele pretendia fazer uma reconstituição crítica dos discursos. Para tal, utilizava critérios racionais como a verossimilhança da situação e a pertinência das palavras pronunciadas como fica claro neste relato de Tucídides (apud Gagnebin, 1997 p.27):

(...) Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os respectivos assuntos e os sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito (...).

Tucídides não conta às várias versões possíveis de um mesmo fato. Seu texto é resultado de uma escolha prévia, feita por ele mesmo, a partir de um material ou fontes que em momento algum são mencionadas. O discernimento dele nos permite compreender a história de forma racional, mas, ao mesmo tempo, nos impede de conhecer outra senão aquela que foi escrita por ele (Gagnebin, 1997).

Sua obra tem a intenção de “congelar”, fixar os acontecimentos e os fatos, tentando desta forma, no seu escrito, garantir a fidelidade e a imutabilidade destes. Enquanto Heródoto pretendia salvar o inolvidável, resgatar o passado do esquecimento, narrando seus acontecimentos, também pelo próprio gosto de contar, buscando na palavra das testemunhas a lembrança das obras humanas.

Temos aqui uma das diferenças marcantes entre Heródoto e Tucídides. Enquanto o segundo tem um pensamento direcionado para o futuro, na tentativa de acabar com a subjetividade dos acontecimentos preocupado, também, em suprimir da história todos os elementos de natureza metafísica ou maravilhosa, o primeiro volta seu pensamento para o passado a fim de resgatá-lo em seu esplendor e maravilha. Segundo Gagnebin (1997, p. 31):

(...) Heródoto escrevia para resgatar um passado ilustre; Tucídides escreve no presente para instituir o futuro, confiante que da história do passado possa-se aprender para o presente, pois a natureza humana continua inalterada, isto é, sempre prestes a obedecer ao desejo de poder, sacrificando o interesse geral aos interesses particulares egoístas (...).

A história é a consolidação do ser no tempo. Ela não é o que “não é mais”, mas o que “foi e ainda é”. A história é conhecível e o passado é a única dimensão conhecível do mundo humano, em suas relações com o presente. A história não deve ser vista como linear, muito menos, devemos olhar para o passado na esperança de explicar o futuro. O que o historiador faz é conhecer as durações humanas. Heródoto e Tucídides valorizaram o tempo dos homens e por isso fundaram uma nova ciência.

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Referências bibliográficas:

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

HARTOG, François. O espelho de Heródoto: ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

HERÓDOTO. Histórias: livro 3º. Lisboa: Edições 70, 1997.

REIS, José Carlos. Escola dos annales: a inovação em história. São Paulo : Paz e Terra, 2000.

TUCÍDIDES. História da guerra do peloponeso. Brasília: Universidade de Brasília, 1987.

VEYNE, Paul. Como se escreve a história e Foucault revoluciona a história. Brasília : Universidade de Brasília, 1998.

Daniel Cunha
Enviado por Daniel Cunha em 30/10/2013
Código do texto: T4548606
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