"MESMO CALADO O PEITO, RESTA A CUCA"

De poeta em poeta, retornamos sempre ao Chico Buarque, considerado com muita justiça o “arquiteto das letras”. Ao referir-se aos “bêbados do centro da cidade”, o mestre Chico fazia um elogio à capacidade crítica dos frequentadores de botequim. Não que eles sejam melhores ou mais inteligentes que qualquer cidadão, mas porque se encontram em momento de descontração onde a conversa não tem compromisso com o status quo nem de quem participa dela.

Se a violência urbana hoje é maior que antigamente não sei, mas sei que ela recebe destaque na imprensa que a engrandece. Quando acabamos de afirmar que a imprensa exagera, somos vítimas de varredura de marginais em pleno Happy Hour sentados numa calçada degustando um chope, uísque ou caipirinha, enquanto participamos de discussões mirabolantes que poderiam consertar o mundo. Quando acontece uma coisa dessas, logo pensamos em denunciar para a imprensa que “nada faz”. Na prática, a teoria é imediatamente alterada.

No “Congresso do Boteco” há os radicais, os moderados, os silenciosos. Há ainda os que, como no congresso formal, estão ali com outras intenções, esperando que caia alguma presa na rede para darem o bote ou avançarem no pote. Como diria Celso “Brocoió” Bezerra, poeta não tão conhecido, mas nem por isso menor que mestre Chico: “Neste berço da democracia, os diferentes não são desiguais”. Na criatividade estimulada pela descontração, a discussão não deixa de fora as paixões e todos os assuntos são válidos com prioridade para a corrupção e a violência.

Há os que defendem o rearmamento geral da população com armas de fogo para defesa da família e da propriedade. Há outros que sugerem que as armas sejam outras. Que se use a tecnologia do celular para gravar tudo. Gravar as propinas, as extorsões, as conversas e telefonemas cheios de segundas e terceiras intenções. Depois de gravado, denunciar a quem? À polícia, quando não se tem total certeza da isenção de quem recebe a denúncia? À imprensa, que pode não ter intenção de divulgar porque fere aos interesses do seu patrocinador? Recorrer a quem? “Jogue na Internet”, diz alguém. Os debatedores parecem ter chegado a um consenso. Quando se acredita que vá haver uma votação para aprovação final do texto, a televisão mostra o Neymar perdendo um gol “quase feito”.

Como num noticiário de Tv, o tema toma outra direção: A fortuna deste quase menino obtida apenas com os pés. O assunto anterior fica adiado sine die. Nem se sabe se um dia voltará à pauta com os mesmos “congressistas”. O desvio de atenção não foi proposital, nem orquestrado por marqueteiros, como acontece no congresso formal, mas foi muito providencial. Não se chega à conclusão alguma: A corrupção não vai ser estancada, a violência não será contida e tudo continua como dantes no quartel de Abrantes. Na saída, uma constatação: o preço do táxi não é muito mais do que cobraria o “guardador de carro”, aquele mendigo com poder de coerção, que em última análise, representa a capilarização da corrupção que é distorção maior do que seja trabalho.

Como no Congresso Nacional, nada ficou decidido. Lá, a discussão acontece para ser assistida pelo povo e vista pelo executivo. Aqui, continua a ilusão que o governo, que diz ouvir a voz das ruas, ouça também a voz dos botecos.