O DISCURSO DO MALANDRO E A MANUTENÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS
Garoto esperto, vinte anos de praia! Certamente, muitas pessoas já ouviram esta expressão, que serviu a uma campanha publicitária na década de noventa, a qual tinha como intenção transmitir a idéia de uma pessoa sagaz, que sabe superar situações difíceis com soluções inovadoras, que não segue a normalidade das condutas.
A expressão garoto esperto representa também a noção de malandragem, que se trata de uma característica vista como positiva, principalmente pelo próprio malandro, porque o faz sentir que obteve sucesso em algo.
Até mesmo nos meios de comunicação, a malandragem é tratada como uma fonte de inspiração humorística, de diversão. Uma “interessante e divertida” característica do povo brasileiro, que vence suas dificuldades com o seu “jogo de cintura”.
Outra mensagem que também é passada na idéia de malandragem é a representação de uma espécie de superioridade do brasileiro frente a um estrangeiro. O golpe criado pela “esperteza” do brasileiro contra o gringo “burro” que perdeu seu dinheiro.
O que sente o malandro quando dá o seu jeito? Ele sente felicidade, sente que foi mais esperto e, portanto, conseguiu levar vantagem sobre alguém ou determinada situação. Ele se sente um vencedor e, mais ainda, sente-se como alguém que se esquivou das regras, como se acima delas ele estivesse. Agora, por que passam essa idéia para aquela pessoa?
São muitos os retratos do malandro na cultura nacional, todos personagens engraçados que conseguem divertir-se na situação difícil que superam. Geralmente são pessoas simples, pobres, endividadas, com vícios e manias, que escapam “matando um leão por dia” em sua sobrevivência. Versa-se sobre o assunto de um modo leve, esquecendo-se o drama do real, que faz sentir no “couro calejado” a dor da miséria. Não se fala no porquê desse discurso, e nem em suas conseqüências.
Na verdade é preciso ter cuidado com a aplicação de xavões desta natureza, uma vez que, não raro, escondem idéias que não contribuem para fazer das pessoas e do mundo um lugar melhor. No caso da malandragem, a idéia pode se tornar conformista e contribuir para a manutenção das desigualdades sociais.
O ícone do malandro é a pessoa pobre que consegue se virar. Não é uma pessoa que muda a sua condição social, ela continua pobre, mas consegue escapar de uma situação ainda pior. Em que isso contribui para a pobreza? Ora, dar a idéia para uma pessoa de que ela é malandra, esperta, dar-lhe a sensação de ser um vencedor porque ela passa alguém para trás numa conta de boteco, na ligação clandestina de água ou de energia, no “trampo” de enrolar algumas pessoas para ganhar migalhas de dinheiro, deixa o malandro contente, feliz. “Sou pobre e sou feliz”. É o “olheiro de carro”, o pedinte ou o limpador de vidros de automóveis que acredita que está conseguindo ganhar “muito” dinheiro na malandragem, na maciota, sem fazer esforço.
Este é um discurso muito interessante para a manutenção da desigualdade social, porque estas pessoas, que mais sofrem pelo abismo da má distribuição de renda, não vão precisar usar de violência, não irão se revoltar. Eles têm um “dom de Deus”, e vão preservar a integridade das pessoas mais abastadas sorrindo e dizendo: “bom dia senhor, pode me arrumar um dinheiro para a passagem de ônibus?”, acreditando que está levando vantagem. É a substituição de uma condição social melhor por um dom natural destinado a fazê-lo escapar.
Todavia, esquece o malandro que ele faz parte de uma sociedade, onde em seu pacto nuclear, as pessoas disseram: “eu aceito perder parte de minha liberdade e obedecer regras em virtude de, em contrapartida, receber a segurança de que também não ficarei desamparado”. Onde o forte cede um pouco para que outro mais forte não venha e o domine, porque todos são fortes até encontrarem alguém mais forte.
Esquece o malandro que, também, por isso criamos o Estado, as leis, para conquistarmos uma igualdade que a natureza não nos proporciona.
Esquece o malandro que, se ele está no sinal de trânsito pedindo, ou no centro do comércio aplicando pequenos golpes, é porque não lhe foram dadas oportunidades na vida, para que tivesse instrução, educação, acesso aos meios de produção, acesso ao dinheiro, acesso à verdadeira esperteza.
A glorificação do malandro e do jeitinho brasileiro é um embuste, um engodo, que tem como único efeito perpetuar a manutenção das injustiças sociais em nosso país, acomodando uma situação insustentável que acaba por nos diferenciar naquilo em que unicamente somos iguais: em nossa condição de humanidade.
E que fique claro, não se faz, no presente texto, apologia à violência em qualquer de suas formas, apenas, desejamos demonstrar que também não se pode deixar enganar, fazendo-se de uma conjuntura apocalíptica – a miséria – uma expressão positiva da cultura.