O AMANHÃ NUNCA MORRE
O presente artigo se desenrola a partir de duas questões:
- Será que existe um mundo exterior à sua mente?
- Será que, mesmo que exista um mundo exterior à sua mente, você pode conhecer esse mundo tal como ele realmente é?
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É evidente que o que nos cerca é real. É concreto. Podemos tocar, sentir, ouvir e principalmente: podemos ver o que está à nossa volta. Supor que o que nos cerca possa não existir é, de uma complexidade tamanha, que colocaria a mente em parafuso ao tentar se aprofundar em tal disparate; poderíamos até supor que os objetos que nos rodeiam, que a natureza e os outros animais, ou até mesmo o céu, poderiam não passar de uma suntuosa projeção mental. Isto não seria de todo difícil se não fosse por um pequeno detalhe conhecido como ser humano e sua relação com outros seres humanos. Como colocar em duvida as relações humanas, onde se percebe que as ideias de cada um são totalmente dispares das de outros? Torna-se inviável tal suposição, pois não poderíamos criar projeções tão dessemelhantes de nossas próprias convicções, pois imaginar que o mundo que se encontra ai possa não existir - como queria Descartes -, inevitavelmente, encontrará seu ponto de impacto no outro.
Partindo deste pressuposto, está estabelecido e comprovado – e essa comprovação só tem o apoio da crença – que o mundo exterior à mente existe de fato e é real. Visto que esta afirmação só tem o apoio da crença, há de se analisar o que nos remete a acreditar e afirmar que o mundo é real. Para efeito de estudo e fundamentação, se faz necessário uma apropriação de uma base teórica que sirva de alicerce para tal afirmação. Dizer que o mundo exterior a nossa mente é real, implica em questionar: o que se entende por real?
A questão requer uma analise, mesmo que sucinta, do que venha a ser o entendimento humano.
Já temos o pressuposto que o mundo exterior à mente é real, cabe agora tentar alguma aproximação de algum entendimento de como o mundo exterior nos chega a mente. Essa analise se faz pertinente, se quisermos conhecer se este mundo nos chega a mente como ele realmente é. Se admitirmos sua existência exterior, devemos partir de uma fonte de dados que seja empírica. Para isso, podemos fazer a apropriação de um certo filósofo e consequentemente de sua teoria. Neste caso em especifico, podemos trazer *David Hume para a discussão.
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No inicio do texto, foi afirmado que o mundo é real porque podemos senti-lo, sentir é perceber, perceber é ser impressionado por tais sensações, quando estamos em contato com um objeto estamos tendo a sensação deste objeto e estamos sendo impressionados por determinado objeto, estamos adquirindo ideias. Qualquer relação com o mundo externo produz ideias; ideias são dados com que a mente opera para tentar ordenar o mundo, esta operação por sua vez, é feita através da rememoração, ou seja, temos duas fontes de idéias, uma interna e outra externa. As duas fontes são percepções que impressionam a mente de forma mais ou menos intensa. Essas percepções serão divididas em duas classes: impressões e ideias.
Impressões geram percepções fortes, captadas pelos nossos sentidos, tais como: ouvir, ver, sentir, amar, odiar, desejar, etc. Essas impressões formarão uma segunda classe de percepções que são as ideias; Hume usa o termo ideia para caracterizar as percepções menos intensas. Através dos sentidos, a mente faz a abstração do que lhe é externo, essa abstração é que será denominada ideia. As impressões são originais, as ideias são copias, e quanto mais próxima da impressão original for a ideia, mais forte ela será. A impressão original será sempre mais forte, uma vez que a ideia que se tem de algo está ligado à memória, que por sua vez funciona como um espelho, esse espelho nunca vai refletir a sensação primaria. Isso vale para todas as percepções com que a mente tem contato.
"Quando refletimos sobre nossos sentimentos e afeições passados, o nosso pensamento é um espelho fiel e copia com exatidão os objetos; mas as cores que emprega são opacas e esmaecidas em comparação com as de que se revestiam as nossas percepções originais." (Hume, p.140)
Tudo o que temos na mente derivam destas ações, dessa forma, o pensamento fica limitado à experiência. Porém, Hume atribui uma característica dúbia ao pensamento, pois ele é ilimitado dentro de seus limites, ou seja, mesmo que o pensamento se limite unicamente a objetos e eventos que a mente teve contato, ele é livre para criar quimeras e monstros, pode viajar até os confins do Universo. Nesse sentido ele é livre porque pode conceber o que não existe de fato, no entanto, o pensamento constrói coisas inexistentes a partir de coisas existentes. Logo, ele volta a ser limitado, porque rigorosamente, não se pode conceber coisas não inexistentes, o que a imaginação faz é associar dados de abstrações que ocorreram a partir do que está no mundo. Eu posso imaginar uma quimera, como um grifo; é algo que não existe no mundo, mas é algo possível de ser concebido quando eu junto a ideia que tenho referente ao corpo de um leão com a ideia de cabeça e asas de uma águia. Sempre haverá referencias de algo que eu vi, vivi ou ouvi.
Formar essas coisas inexistentes é tão natural para imaginação como conceber os objetos e tudo mais à nossa volta. No fim, o poder da mente é reduzido ao simples ato de combinar, transpor, aumentar ou diminuir o que absorvemos da experiência. (Hume p.140)
Com o exame atento de nossos pensamentos, notamos que tudo o que concebemos e conhecemos são aglomerados de idéias simples formando ideias mais complexas. A partir deste exame, Hume identifica três princípios que regem a conexão de ideias, ligando-as como elos de uma corrente. Essas conexões ocorrem por buscarmos ordem e regularidade nas coisas, são necessários para que possamos formular opiniões. No entanto não há lógica, pois estes princípios estão ligados à subjetividade.
Tais princípios podem ser nomeados como:
Principio de Semelhança: nossa mente vê um objeto e logo o remete a outro, abstraindo o conceito do objeto em questão. Por exemplo, quando vemos uma faca, nossa mente fará a abstração deste objeto. No entanto, esta abstração não será nova, ela ira se ligar a um conceito original que temos deste objeto, com o qual a primeira abstração pode ter ocorrido há tempos. No fim, a abstração estará sempre ligada a um conceito em particular, por isso a abstração das coisas irá passar pelo principio de semelhança. Qualquer abstração vai tentar se identificar com uma abstração anterior, que seja semelhante àquela abstração que está sendo feita no momento.
Podemos ver isto expresso em obras literárias, elas trabalham com este principio ao tentar aproximar a ficção da realidade, no intuito de lhe conferir verossimilhança.
Principio de Contiguidade: este principio se parece com o anterior, porém, o apoio da contiguidade está na crença, e seu acesso ocorre através da memória. Por exemplo: imagine uma escola, há várias salas iguais, todas dispõem de um numero x de carteiras, uma mesa para o professor e um quadro negro. Mesmo que não tenhamos visitado todas as salas de aula desta escola, antes de entrarmos em qualquer uma delas, temos a crença de que o interior de todas as salas serão iguais, não há nada que indique que possa haver uma diferença discrepante entre uma outra. Crença e memória atuam, baseadas na experiência de já se ter estado em várias salas de aula.
Principio de Causalidade: segundo Hume, este é o principio que atua de forma mais intensa no processo de conexão de ideias. Uma causa gera um efeito, na mente isso é percebido como uma unidade, causa e efeito estão, naturalmente, intimamente ligados, porém uma causa gera um efeito muito diferente dela, nunca temos acesso efetivo à causa. O efeito impressiona os sentidos, a razão procura por si só entender esse efeito. Sabemos que se entrarmos na água iremos nos molhar, entendemos isso, mas não sabemos por que ficamos ensopados ao entrar na água.
Tudo que captamos através da experiência e sensações torna-se objeto da razão, é com esses dados que recebemos que ela irá trabalhar. Estes objetos dividem-se em dois grupos: relações de ideias e questões de fato.
Relações de ideias se configura em tudo o que se mostra evidentemente verdadeiro. As proposições deste grupo são descobertas pela simples operação do pensamento. "Dois mais dois é igual a quatro" é uma verdade evidente e sempre será em qualquer lugar, em qualquer tempo. Os conhecimentos deste grupo não dependem dos fatos, e está calcado no principio de não-contradição.
Diferentemente, as questões de fato não são fundamentadas em tal principio; isso ocorre devido ao fato de que se pode afirmar o oposto de um fato. Para ilustrar isso, Hume apresenta a crença no nascer do Sol. Por experiência, por hábito, eu sei que o Sol vai nascer amanhã. No entanto, não há nada que me impeça afirmar que o Sol não nascerá amanhã. (Hume, p.145)
É uma afirmação que cai no campo das possibilidades, e não implica em contradição em ultima analise. Vemos o Sol nascer todos os dias, mas nada garante que ele ira despontar amanhã, exceto a crença. Mesmo afirmando o contrario, podemos seguir vivendo com esta crença, pois esta afirmação contraria está amparada pela imaginação; a crença é mais forte do que a imaginação e, até que se prove o contrário, o amanhã nunca morre.
CONCLUSÃO
Se o argumento esta fundamentado nesta concepção, a resposta à segunda questão – será que, mesmo que exista um mundo exterior à sua mente, você pode conhecer esse mundo tal como ele realmente é? – é não! Não se pode conhecer o mundo como ele realmente é porque o que ele é, só pode ser enquanto subjetividade, o que uma pessoa vê pode ser a mesma coisa que outra pessoa vê, mas a interpretação e sensação que se tem da coisa vai variar de um sujeito para outro; a causa que um individuo atribui a um fato pode não ter o mesmo significado que outro sujeito lhe confere, logo, só conhecemos o mundo como realmente é enquanto subjetividade. Embora os princípios expostos por Hume sejam universais, estão no campo da subjetividade; subentende-se que cada um faz um uso particular de tais princípios.
REFERÊNCIA:
Hume, Investigação sobre o entendimento humano, São Paulo: Abril Cultural, 1980.
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*David Hume (Edimburgo, 7 de Maio de 1711 – Edimburgo, 25 de Agosto de 1776) foi um filósofo, historiador e ensaísta escocês que se tornou célebre por seu empirismo radical e seu ceticismo filosófico. Ao lado de John Locke e George Berkeley, Hume compõe a famosa tríade do empirismo britânico, sendo considerado um dos mais importantes pensadores do chamado iluminismo escocês e da própria filosofia ocidental.