MAQUIAVEL VIVE

É possível uma análise do pensamento político de Maquiavel desvinculada dos anátemas da perfídia, tirania, conspiração e crueldade tradicionalmente imputados ao notável e controvertido florentino?

Procurando responder essa questão, apresentei à Universidade de Brasília um ensaio que marcou a minha participação no curso de introdução à ciência política, primeira experiência do programa de universidade aberta da UnB, pioneiro no Brasil.

A preferência pelo tema se deve a uma velha aspiração de estudar mais acuradamente a obra desse pensador renascentista de quem o mundo contemporâneo guarda a imagem estereotipada de um diabólico articulador político, fruto, talvez, de uma apressada e destorcida interpretação do seu livro mais conhecido, O Príncipe.

Para entender Maquiavel e o alcance dos seus conceitos e imprescindível localizar o contexto de realidade em que ele viveu, entre os anos de 1469 e 1527, um momento histórico muito conturbado, marcado por conflitos e ocupações territoriais que redundaram na divisão da península itálica. Florença, apesar de conseguir manter a sua independência vivia sob constante ameaça dos exércitos invasores. Foi nessa quadra de inquietações que Maquiavel, um obscuro funcionário da Chancelaria, preocupado com os destinos de sua pátria e vislumbrando a unificação dos estados italianos, modelou em “O Príncipe” o padrão de soberano forte, audacioso e capaz de organizar um exército disciplinado e destemido para defender a soberania de Florença e conquistar a glória do poder além de suas fronteiras.

Trata-se de um manual destinado a auxiliar um novo governante monarca nas tarefas de conquista, manutenção e controle do principado. Não faltam orientações de como dotar o Estado de uma estrutura militar eficiente e conselhos sobre a conduta do monarca em diferentes situações de paz e de guerra.
Em suas lições, chocantes sobretudo para a ética cristã transcendental, não há polarização entre o bem e o mal que, segundo ele, não podem estar dissociados quando se trata de fenômeno político-social. A razão de Estado aparece pela primeira vez como norma política consagrada na máxima "a necessidade ignora qualquer lei" ou "os fins políticos justificam os meios".

Se O Príncipe é uma obra laudatória da monarquia absoluta, numa fase de grave comoção que parecia exigir maior soma de poderes excepcionais para o enfrentamento de dificuldades internas e defesa das fronteiras, Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio, escrito pouco depois, é o discurso de exaltação à república, em situações de normalidade político-militar. Com efeito, Maquiavel progride muito em termos doutrinários dando uma nova dimensão ao conceito de Estado que aparece como uma corporação destinada a proteger o indivíduo contra a violência e a defender a coletividade contra as ameaças de inimigos externos. A república com suas bases institucionais consolidadas é tida como peça fundamental para a garantia de sobrevivência e continuidade do Estado. Daí a insistência com que Maquiavel realça a necessidade de participação popular em muitas das decisões do governante.

Para quem está acostumado à miopia condenatória de Maquiavel, em nome de princípios éticos, certamente se surpreenderá com os trechos seguintes extraídos de duas das principais obras do autor: O Príncipe e Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio.

“Aqueles que agiram com maior tino ao fundar um Estado, incluíram entre as suas instituições essenciais a salva guarda da 1iberdade, e os cidadãos puderam viver um tempo mais ou menos longo, segundo tal salvaguarda tenha sido mais ou menos bem formulada (Comentários, Livro 1, Cap.5).

"Muitas vezes um ato de justiça e de humanidade tem influência maior sobre os homens do que a violência e a barbárie" (Comentários, Livro 3, Cap. 20).

“O povo tem objetivos mais honestos do que a nobreza; esta quer oprimir enquanto o povo deseja apenas evitar a opressão ( ... ) a melhor fortaleza é a construída com o afeto dos súditos, pois as fortificações não salvarão um Príncipe odiado pelo povo" (O Príncipe, Cap. 9 e 20).

“A multidão é mais sábia e constante que o príncipe. ( ... ) Não é sem razão que se diz que a voz do povo é a voz de Deus. ( ... ) os Estados de governo popular fazem em bem pouco tempo conquistas mais extensas do que aque les governados por um príncipe” (Comentários, Livro I - Cap. 58).

“ ... não é o interesse particular que faz a grandeza dos Estados, mas o interesse coletivo. É evidente que o interesse comum só é respeitado nas repúblicas ... '” (Comentários, Livro 2, Cap. 2).
”Embora seja condenável empregar a fraude na vida ordinária, durante a guerra ela é louvável e gloriosa” (Comentários, Livro I, Cap. 5).

“Não se pode, contudo, chamar de valor o assassínio dos seus compatriotas, a traição dos amigos, a conduta sem fé, piedade e religião; são métodos que podem conduzir ao poder, mas não à glória" (O Príncipe, Cap. 8).

"Não observar a lei é dar o mau exemplo sobretudo quando quem a desrespeita é o seu autor" (Comentários, Livro I, Cap. 45).
" ... o que causa dano à vida política é o poder usurpado, não o que é livremente delegado" (Comentários, Livro I, Cap. 34).

"E necessário ser um homem de bem para reformar a vida política e as instituições de um Estado; mas a usurpação violenta do poder pressupõe um homem ambicioso e corrupto. Assim, raramente acontecerá que um cidadão virtuoso queira apossar-se do poder por meios ilegítimos, mesmo com as melhores intenções; ou que um homem mau, tendo alcançado o poder queira fazer o bem, dando boa utilização ao poder que conquistou com o mal'l. (Comentários, Livro 1, Cap. 16).

Infelizmente não posso alongar a discussão na exiguidade deste espaço. Mas fica a certeza de que é impossível entender Maquiavel sem estudar a plenitude de sua obra, ou fazê-lo sem algum esforço de apreensão da realidade renascentista que emoldurou as suas assertivas, há mais de quatro séculos e meio.

Apesar das ambigüidades e aparentes contradições em alguns dos seus textos, a leitura da obra como um todo sugere uma personalidade de forte convicção republicana e patriótica, além de um indisfarçável zelo pela hegemonia da vontade coletiva. Como disse Leo Strauss, “O Príncipe” representa a essência de uma teoria revolucionária aplicada a momentos de convulsão política; “Comentários”, a expressão de uma teoria de governo, ou mais explicitamente, de normalidade institucional política.

A margem das polêmicas de cunho ético que tem suscitado o pensamento político de Maquiavel, uma verdade aceita por todos é a de que ele foi o pai da moderna ciência política pela excelência do seu legado teórico e metodológico. Ele rompeu com a escolástica medieval, separando a política do contexto religioso. Vale dizer, desacralizou o poder pela rejeição dos postulados metafísicos e teológicos segundo os quais o poder temporal é uma concessão do poder espiritual e em seu nome deve ser exercido. Ele refutou os métodos medievais baseados em verdades apriorísticas e raciocínios dedutivos. Deu força a outro procedimento de maior consistência científica que privilegia a observação da realidade objetiva e a análise histórica, respaldado na tese de que é preciso enxergar a realidade como ela se apresenta e não como gostaríamos que fosse.

Para concluir, um ponto de vista do Prof. Garret Mattingly que assumo sem nenhuma reserva: muito pouca gente, mesmo entre aqueles que já leram alguma coisa sobre Maquiavel, tem uma noção clara do caráter e da integridade desse homem. Para a quase totalidade, o seu nome encarna o que há de mais execrável em termos de moralidade política e espírito público. Contudo, a aceitar essa conotação, é forçoso admitir-se que Maquiavel teria sido o menos "maquiavélico" entre os seus contemporâneos.