FANTASMAS DE AVENTAL
Quando eu tinha 18 anos de idade estudei muito, mas muito mais do que o normal para alguém nessa etapa da vida...Eu sonhava com um profissão liberal e achava que tinha uma missão sagrada. Na faculdade conheci muita gente melhor do que eu. Gente mais bonita, mais inteligente, com mais dinheiro..Lutei para que o país tivesse eleições diretas..estive nas ruas e depois voltei..Não acreditei no Brasil collorido, mas sempre andei de cara limpa, sem camiseta amarrada no rosto,ou boné com aba para trás. Em muitas festas deixei de ir – eu precisava estar cedo na faculdade e mais tarde no hospital. Já não me lembro de quantos Natais e feriados de Ano Novo eu fiquei longe da minha família escutando “Noite Feliz” ou “Feliz Ano Novo” cantado por pessoas que nunca tinha visto na vida..Eu comprei meu primeiro carro com sacrifício..Ainda não tenho a casa que gostaria e não houve um só dia, nesses quase 20 anos de profissão,que não olhasse para trás, como tantos colegas, e perguntasse – será que valeu a pena? A resposta nunca veio..mas no fundo no fundo,ainda sabia que não tinha nascido para fazer outra coisa, que a profissão era uma espécie de vício, um certo tipo de cachaça – impossível de largar....
Depois o tempo foi passando, fui ficando mais velho, e aos poucos mais fraco para enfrentar certos tipos de luta..Preocupação com família, filhos..coisa que qualquer um passa...coisa que faz parte da vida, mas algo foi chamando atenção - meu prestigio na sociedade foi diminuindo..as pessoas aos poucos passaram a me olhar diferente..parecia que eu estava usando uma camiseta com letras enormes escritas com sangue – "Eu não gosto de pobres!"
Não sei se foi paranoia, ou só a autoestima caindo, mas outras profissões foram surgindo..Outros passaram a ver as “pessoas como um todo”...outros passaram a “ouvir mais”..outros pensaram melhor no “cuidado”..e aí eu fui me dando conta que não era só eu...Eu fui vendo os colegas se calarem ..eu fui vendo se formar um bando de gente de triste, acovardada, sem voz, aceitar seu amor-próprio ser levado ao fundo do poço como “nunka antis nessi paiz”.
Cada vez que um deles começa uma reclamação, cada vez que escreve algo,é acusado de corporativismo, é chamado de “membro da mafia branca” e é visto como alguém preconceituoso quanto aos outros profissionais da saúde..e aí vai se encolhendo, aí vai se esquecendo de tudo que passou, de tudo que viu..de quantas pessoas assistiu morrer sem as mínimas condições de atendimento, de quantos exames que pediu que não teve resultado e de quantas prescrições não viu cumpridas..até que um dia se esquece de si mesmo e não pensa em mais nada quando lhe contam que o país está chamando milhares de “colegas” seus para fazerem o serviço que constituía até então o motivo da sua vida..
Aí então já não é mais ninguém..tornou-se apenas um médico brasileiro, alguém que anda sempre de branco e em quem ninguém acredita mais – um fantasma de avental.
Para o meu pai e para todos os fantasmas...
Porto Alegre, 25 de junho de 2013.