O RETIRANTE NORDESTINO EM “VIDAS SECAS”
A seca do Nordeste foi, ao longo dos anos, um dos problemas sociais mais discutidos e debatidos pelos mais diversos meios responsáveis para resolver esse tipo de problema. Escritores da chamada “Geração de 30”, como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, entre outros, usaram da literatura para denunciar e mostrar ao mundo essa problemática que já existia bem antes mesmo do Império.
De acordo com o site Pernambuco de A a Z, a primeira seca de que se tem notícia no Nordeste aconteceu entre1580 e 1583, e, naquela ocasião, os engenhos da Província não moeram, as fazendas ficaram sem água e cerca de cinco mil índios desceram o sertão em busca de comida. O que sustenta que essa questão é antiga, quase seis séculos se passaram e o problema continua o mesmo.
Graciliano Ramos, em Vidas Secas, provavelmente foi quem melhor retratou essa realidade dentro da Literatura Brasileira, mostrando que muitos outros problemas estão ocultos por detrás da falta de chuva do sertão nordestino, e que a seca é apenas uma fachada na qual se esconde uma situação miserável de uma região castigada pela ignorância e pelo descaso político, fazendo com que milhares de sertanejos sejam subjugados pelas condições desfavoráveis ao seu meio de sobrevivência (plantação e criação de gado), pelo clima seco do sertão impedindo-lhes de terem um trabalho, e conseqüentemente uma vida própria.
Devido a isso, os fazendeiros e donos de terras se aproveitam para explorar e tirar proveito das necessidades desses homens que vivem à beira da miséria – sem terra, sem chuva, sem condições de trabalho e sem esperança – e com eles fazem suas fortunas, alegando que dessa forma os ajuda, dando-lhes trabalho; o que, no fundo, não chega a ser uma grande mentira, mas que passa a ser muito mais uma maneira de se aproveitar da lastimável situação do sertanejo do que propriamente uma forma de ajudá-lo.
Tendo a seca como fator principal que desencadeia uma série de outros problemas, entre eles a imigração de maneira desordenada, o sertanejo se vê obrigado a partir para terras desconhecidas sem nenhuma perspectiva de vida.
Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho, o menino mais novo e a cachorra Baleia descobrem uma constelação de pequeninas coisas diversificadas, num caminho sem norte seguro, em plena seca, em incessante ameaça de morte por fome e sede; Logo, a busca se bifurca numa dupla procura de sustento e paradeiro, ambos improváveis. A arte de sobreviver é como um fio que se desenrosca sem impaciências, mas com faro e tato. (RODRIGUES, 1979, p.215).
Nessa família, o buscar é uma arte sutil e minuciosa que se adquire ao longo dos anos, na prática forçada do dia-a-dia, na busca pela sobrevivência, que beira a perfeição instintiva dos animais. A sua salvação pode estar escondida atrás de uma serra qualquer na forma de um preá que Baleia caça, ou num poço de água barrenta que sacia sua sede dando-lhes mais um fio de esperança até a próxima paragem, onde terão de usar outra vez de seus intintos para farejar novamente o seu sustento.
Eles buscam uma terra desconhecida, não a terra ideal, mas um lugar onde possam pelo menos sobreviver, “forrar” seus estômagos, para poderem voltar a seu antigo lar quando a chuva cair novamente sobre a caatinga. Enquanto isso não acontece, eles andam sem rumo, sem destino, e até mesmo sem nome como os dois meninos de Fabiano. É essa a realidade de milhares de sertanejos incógnitos, sem nome, apenas mais um “Severino”, como afirmou João Cabral de Melo Neto, em Morte e vida Severina.
No entanto, será realmente apenas a ausência da chuva a única responsável por essa mudança? E quando chove, às vezes anos seguido, por que então não se acaba essa miséria? Por que tudo continua na mesma?
É porque essa miséria não tem origem nas áreas secas. Isso é uma grande e ilusória fantasia, uma quimera. A seca, quando muito, põe a nu a pobreza que está latente durante um período em que apenas a classe trabalhadora consegue comer as sobras daquilo que ela produziu e não foi expropriado pelos que detêm o controle dos meios de produção, particularmente a terra e o capital. Tanto isso é verdade que muitos que conseguem sobreviver na cidade grande, arranjar um simples emprego que lhe dê um sustento, por lá mesmo ficam; nem todos mais se arriscam a voltar, pois sabem que se a seca vier outra vez todo o problema virá de novo; na verdade ele está sempre lá, esperando.
É muito comum se ouvir falar da indústria das secas. Provavelmente na época de Fabiano ela não operasse como opera nos dias de hoje, mas de outra forma: nas somas mal feitas (que sempre se multiplicam) dos donos de armazéns no momento de prestar contas aos seus consumidores, que geralmente eram seus funcionários, nos números absurdos feito pelo fazendeiro na hora da partilha dos bichos com seu vaqueiro, na divisão da colheita do milho e do feijão entre o patrão e seus trabalhadores. Com o passar do tempo veio a indústria da seca propriamente dita, organizada nos gabinetes dos próprios representantes do povo, ou seja, de políticos mal-intencionados e exploradores. A própria fundação do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca), que foi criada com a intenção de combater a seca foi transformada, ao longo dos anos, em uma grande máquina de desvio de dinheiro público, superfaturando obras.
É claro que tais assuntos logo são arquivados por falta de provas, pois mexem com gente de alto escalão social. Algumas pessoas obtêm benefícios particulares gerado por dinheiro público, criando açudes particulares em suas fazendas. E assim fica o dito pelo não dito. Sem provas não há crimes, e sem crimes não há punições, e sem punições a roubalheira continua. Como denunciou Graciliano Ramos em Vidas secas na pessoa do patrão de Fabiano, porém usando de eufemismo por ser uma denúncia social feita através de uma obra literária, mas que não deixa de ser uma reclamação de um problema que já existia naquela época.
A falácia daqueles que dizem que a água é o mais importante para o sertanejo, para o sertão, é prioridade número um, como se houvesse prioridade número dois, não encontra argumento diante dessa realidade. Em qualquer lugar, seja no campo ou na cidade, a água é prioridade. Assim como é a comida, a moradia, o emprego... Essas necessidades básicas, sem falar da educação, da saúde e da segurança que também são necessárias ao bem-estar de todo cidadão, seja ele camponês ou não. Isso é simplesmente mais uma maneira de tentar camuflar esse problema, que não é mais um problema físico, e sim social, e que sua solução está escondida nas gavetas dos gabinetes que deveriam resolver essa questão.
Antes de termos essa visão de que tudo depende da chuva, devemos observar a questão do latifúndio que, em Vidas Secas, não é nenhuma chave, mas está presente em tudo. Sem terra para trabalhar, o sertanejo se encontra diante das mais diversas maneiras de exploração, obrigado a ficar sempre à mercê do patrão. Uma vez agregado, como os coronéis preferem chamar, ou empregado, como o é realmente, esse homem fica sem voz, sujeito às ordens e à boa vontade do patrão, que não se preocupa nem um pouco com a situação de seu “agregado”, mas visa apenas o lucro, o que geralmente vem através de roubo por meio de contas mal feitas intencionalmente, tirando do sertanejo o que lhe é de direito, que por sua vez, já nem mais estranha, por ser isso um hábito por onde quer que passe.
Fabiano recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear na vazante um punhado de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar um bezerro ou a assinar a orelha de um cabrito (RAMOS, 1996, p. 92).
Numa rápida visão das relações de trabalho que ligam o trabalhador ao patrão, ao dono da terra, chega-se à evidência de que ele planta na terra do “empregador” – que geralmente mora na cidade – cultiva a terra de meia, de terça ou arrendada. O pouco que lhe sobra, consegue comer ou vender a preços irrisórios, vis, até, ao próprio patrão ou aos intermediários. Muitas deles ficam presos ali durante toda a vida, e vai passando de geração a geração aquele destino infeliz, escravizado, preso a uma conta de armazém que nunca se acaba, a um casebre que não tem mais do que algumas velhas panelas e umas redes rasgadas, denunciando a miséria de uma família que carrega consigo o pesado fado de enriquecer o patrão, e a única coisa que ainda lhe resta é a dignidade. E é essa dignidade que lhe impede de partir, fugido, deixando para trás a conta do armazém, a palavra empenhada com o patrão de cumprir com suas obrigações. A alguns, nem mesmo a dignidade mais lhe resta, e ignorando o código de honra do homem do campo – a palavra dada – parte na tentativa de salvar o mínimo que ainda lhe sobra: a própria vida.
A exploração latifundiária muito contribui para a expansão da miséria na vida do homem do campo que, desiludido com a falta de perspectiva – se não chove, a seca o expulsa; se há inverno, o patrão o explora – se arrisca a fazer planos de tentar a sorte em outras regiões. E que, despreparado, muitas vezes analfabeto e sem nenhuma experiência profissional, parte rumo ao desconhecido levando consigo apenas a esperança e o desespero, seguido da família.
Afrânio Coutinho registrou que:
O tema da injustiça social, da submissão pela força é explorado ora no entrechoque Fabiano – soldado amarelo, ora Fabiano – latifundiário. A exploração do homem do campo é apontada nas cenas da ignorância simples do sertanejo constantemente confundido por “juros e prazos” ( COUTINHO, 1997, pp. 405-406).
Fabiano fora humilhado pelo soldado amarelo, que se prevalecera da farda e da autoridade policial, pois sabe que Fabiano é ignorante e não sabe se defender de acordo com a lei, o que o incapacita de qualquer reação ou de denunciá-lo às autoridades competentes. Pois sabe também que se tentasse fazer isso não conseguiria, seria ignorado e mais uma vez humilhado, assim como fora anteriormente.
Milhares de Fabianos deixam o Nordeste em busca da terra prometida, do dinheiro farto nas terras do Sul. Mas, ao se deparar com a dura realidade da cidade grande, onde os sonhos não passam de sonhos inalcançáveis, eles se deparam com o mais grave de todos os problemas conseqüentes de uma partida sem rumo e despreparada: a realidade de um imigrante. O desespero bate na cabeça de um homem que chegou sonhando e agora não vê mais saída. Na cidade seca, falta tudo. Sem moradia, sem trabalho, sem esperança, observa a família se lastimar e sofrer tudo que já sofria antes.
O sonho de que teria uma vida fácil, ou pelo menos melhor do que a de um sertão seco e sem esperança começa a se desfiar, como uma nuvem carregada de chuva começa a se espalhar pela força do vento, se desfazendo, e sua água sendo evaporada. O outrora bravo sertanejo se vê diante de um novo desafio nunca antes encarado, sobreviver numa selva de pedra, sem saber que rumo seguir. E é aí que muitos deles perdem a dignidade que lhe restava e passam a viver na marginalidade, no mundo do crime, criando um novo problema social.
Entretanto, milhares de Fabianos involuntariamente abandonam suas terras levando consigo a saudade e a certeza de que uma terra desconhecida será bem melhor; não por ter certeza de que realmente a nova terra será melhor, mas por ser desconhecida. Ele acredita que qualquer lugar é melhor que seu miserável sertão, entregue à própria sorte, sem chuva, sem homens, sem bichos. Apenas sol e poeira compõem o solo duro e rachado.
Não importa o que lhe espera em outras paragens; não há como acreditar que haja lugares piores. Como Fabiano e sua família, eles acreditavam que “chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes baixos (...) rios secos, (...) bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nuca mais, resistiriam a saudade que ataca os homens na mata”. (RAMOS, 1996, p. 122).
Por que será que esses pobres homens acreditam que qualquer lugar é melhor que o seu próprio? Será simplesmente por ignorância, infantilidade, ou será que é porque eles reconhecem que estão entregues à própria sorte, que não há a quem reclamar, a quem recorrer?
Certamente sentem-se incapazes de merecer uma vida mais digna e, a partir do momento que deixam o sertão, passam a acreditar que a vida distante dali é melhor; não porque eles mereçam, mas porque acham que as pessoas de lá são diferentes, mais instruídas, capazes de exigirem seus direitos, pois sabem falar, não são pessoas ignorantes como eles. Essas pessoas certamente estudaram, sabem fazer contas e não se deixam enrolar pelos patrões, assim como Fabiano era enganado todo o tempo pelo seu. “Devia haver engano. Ele era bruto sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo” (RAMOS, 1996. p. 93).
Vê-se que o sertanejo não é completamente ignorante. Apenas não tem conhecimento o bastante para exigir o que lhe é de direito, por isso passa a ser explorado e engole a seco tudo que lhe enfiam goela abaixo. Então trabalha como um escravo, no máximo assalariado, quando se dá para comer já é o suficiente; e assim se acostuma. Nunca teve uma vida melhor, portanto, acaba achando que a que tem agora é o bastante. É o máximo que pode conseguir, enquanto que por direito mereceria uma situação bem melhor, mas o Estado “precisa” de muitos Fabianos, o máximo que tiver.
Esse fato desencadeia um outro problema: o êxodo rural. O campo fica vazio e a cidade passa a inchar; a área suburbana cresce desordenadamente com a chegada de novos moradores sem profissão, e o problema do sertão passa a ser, também, um problema da cidade. Ao chegar à metrópole também não é diferente de sua realidade anterior. Sem oportunidade de trabalho e escravo da ignorância, passa a mendigar um subemprego para poder sobreviver. Continua o mesmo explorado de antes, não pelo latifundiário, mas por uma outra espécie de exploração. Passa a viver muitas vezes de favores. A idéia de um ser inferior em relação ao homem da cidade lhe cresce por dentro, e sua utópica vida urbana se desenrola de maneira trágica e angustiante. E o Fabiano rude e subserviente se apossa do imigrante.
O abuso de poder também é escancarado no meio rural. Quanto mais pobre e sem escolaridade for o indivíduo, mais aumentam suas chances de sofrer represálias sem razão. Não terá vez nem voz, não terá defesa. É presa fácil e fraca.
Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal fazia a brutalidade dele? (...) Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares (RAMOS, 1996, p.36).
A adversidade que Fabiano tem pela frente não o faz desistir de lutar, no entanto, também não o faz evoluir, uma vez que sua ignorância não permite essa evolução, pelo contrário, ele se compara sempre com um bicho qualquer. O vaqueiro é uma mistura de muitas coisas; é o próprio sertão. O sertanejo é a imagem da terra que pisa. Abandonado, entregue ao próprio destino, com sua mão-de-obra barata é explorado, enganado, curvando-se sempre ao dever que lhe é imposto, à força da autoridade, ao patrão.
Também pode ser apontado nesta passagem um problema que atinge a todas as camadas sociais: o preconceito. Nesse caso podemos apontar o preconceito lingüístico, tido por muitos como sinal de ignorância ou inferioridade. Falso julgamento. Pois nenhum homem é ignorante por completo dentro de seu meio, pode até ser em algumas situações, mas não o é em geral. Na verdade a maior ignorância parte exatamente de quem se acha superior a outro por pertencer a uma camada social considerada por ele mais elevada; o que não passa de vaidades e preconceitos, e acaba por tornar-se inferior a quem se acha superior. Pois esse falso julgamento anula a possibilidade de um bem-estar social entre as diversas camadas que compõem a sociedade, agravando ainda mais a já enfraquecida unidade social, na qual todos são considerados iguais perante a Lei, com os mesmos direitos e deveres. Como disse Descartes, “é bom saber algo dos costumes de diversos povos, a fim de julgar os nossos mais corretamente, e não pensar que tudo que se opõem aos nossos modos é ridículo e contrário à razão, como costumam fazer os que nada viram” (DESCARTES, 2004, pp. 41-42).
De acordo com RODRIGUES, (1979, p.406) essa captação da marginalidade lingüística de Fabiano é uma das principais chaves desse romance: são mesmo constantes as referências diretas feitas pelo narrador: “Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. (...) Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas”.
Para Fabiano, o ideal de linguagem era Seu Tomás da Bolandeira, o qual nas horas duras e sofridas tentava imitá-lo. Tentava dizer palavras difíceis, mas truncava tudo, mesmo assim se convencia de que melhorava. Era como se ainda estivesse iniciando no mundo da linguagem; do mesmo modo fazia o menino mais velho que imitava o berro dos bezerros, o barulho dos ventos, o som dos galhos de árvores que rangiam, roçando-se.
Graciliano explora o lado psicológico dos personagens de Vidas secas, que tenta entrar no mundo e fazer parte dele, compreendê-lo e por ele ser compreendido; e os personagens sabem que a comunicação é um fator primordial para que eles possam ingressar num mundo de linguagens para que possam ser aceitos. Fabiano imitava Seu Tomás da Bolandeira, o menino mais velho imitava a própria natureza. O que nivela o sertanejo ao animal, ao bruto; o sertanejo é o próprio sertão.
Às vezes se tem a impressão que o autor reage com sentimento de indiferença e desprezo em face de toda a humanidade, mostrando a brutalidade do homem, jogando à tona todas as suas fraquezas, que ele não é diferente de outros animais; e se for, que seja para pior, talvez. Mostra a impotência do ser humano perante a vida, fazendo-no refletir a respeito dela. Tem a vida algum sentido? Por que não temos controle sobre ela? Vale a pena viver essa vida de cão (pior do que a de Baleia), humilhando-se em troca de uma migalha de pão, de um teto para estirar o corpo por uma noite? E como fazia Tennesse Williams com seus personagens, Graciliano Ramos coloca o indivíduo em seu limite psicológico completo. A vida, em toda a sua dureza, leva o indivíduo a esse estado.
Fabiano era rude, bruto, ignorava as palavras, o poder delas, ou seja, não sabia usá-las, e por isso admirava Seu Tomás da Bolandeira por saber falar bonito, explicar e se defender por meio delas. O que quer dizer que, mesmo sendo ele um homem rude por natureza e por falta de oportunidade, reconhecia a importância de conhecer as letras e empregá-las de maneira correta e oportuna, portanto não era um bruto por completo, tinha raciocínio e discernimento (o que lhe fazia ser diferente dos animais), se tivesse tido a oportunidade que tivera o amigo também teria aprendido a falar e a se defender. (Fabiano é confuso).
E dessa ignorância se aproveita o patrão para cobrar-lhe juros e mais juros inexistentes forçando-lhe a ficar na fazenda trabalhando feito um escravo, para tomar-lhe seus bezerros e seus cabritos que lhe são de direito, como também se aproveita o soldado amarelo para metê-lo na cadeia sem nenhuma razão, abusando do poder – o poder que lhe é dado pelo cidadão, e que por ele é pago, para que possa em sua defesa ser usado – para cumprir seus caprichos e satisfazer seu ego. Fabiano absorve a agressão alheia a fim de evitar maiores problemas, pois sabe que está diante de uma autoridade e a ela se submete. Mesmo assim se revolta, uma revolta corajosa, e se nutre da humilhação forçada. No entanto, humilha-se com dignidade de quem reconhece a superioridade que lhe é imposta. Não se humilha ao homem, mas ao Estado.
O soldado amarelo é símbolo da incomunicabilidade entre o camponês e o Estado. É um dos elementos que acentuam o trágico da seca. Essa incomunicabilidade se faz necessária para que o poder continue mascarando a realidade, como uma espécie de ditadura, sem dar chances para que o cidadão cobre melhorias, para que reaja e grite por seus direitos. Pois quanto mais distância houver entre o sertanejo e o Estado, melhor será para os homens que governam, que controlam as terras e ditam as regras. Percebe-se que a tragédia não é apenas a abstenção das chuvas e a inclemência do sol. Ela é a síntese de todas as adversidades, de que participam o latifúndio, o soldado amarelo, o primarismo agrário, a ignorância.
Perguntamo-nos: é o homem do campo o culpado por sua situação, há realmente um culpado? Será diferente a realidade de Fabiano dos dias de hoje? Terá, depois de quase um século que foi escrito Vidas secas, mudado a vida do sertanejo em relação à vida de Fabiano? E como vive o retirante na metrópole, ainda enfrenta o preconceito lingüístico?
Em meio aos problemas sócio-econômicos em que se encontra o sertanejo, talvez não seria a melhor saída apontar um culpado, mas resolver o problema. Verdadeiramente não é o sertanejo o responsável. Ele é, sim, a maior vítima. No que se refere às questões metereológicas não há alguém a ser responsabilizado, mas em relação às suas conseqüências, isso sim, pode-se apontar alguém. Pois a pobreza ou miséria no sertão não depende das secas, mas de uma estrutura sócio-econômica injusta e que expropria do homem os frutos de seu trabalho, através das relações de produção onde o sertanejo é apenas um instrumento de trabalho, como de resto, em todas as regiões do Brasil, nas quais a pobreza absoluta, as doenças, a miséria do trabalhador é tão cruel e vergonhosa e até maiores que a do sertanejo do Nordeste.
Certamente a miséria está plantada em todos os cantos do país; em cada região há um fator causador desse problema, e cada governante aponta o seu. Na Amazônia, ao se falar de pobreza logo apontam a selva, a falta de estradas e outros como sua principal razão; nas grandes metrópoles é a questão do desemprego a razão da violência, causada pelo crescimento desordenado da população em busca de trabalho, muitas vezes vindo de outras regiões. E assim sempre há desculpas para todas as mazelas, isentando-se os governantes e culpando-se a população.
A vida nos campos brasileiros atualmente não é muito diferente da época de Fabiano. A seca continua, o descaso político-social idem. Milhões de Fabianos ainda são explorados nas terras áridas do sertão, presos a contas que nunca terminam de ser pagas, vivendo à beira da miséria, humilhados, sofridos, assim como era Fabiano. Milhares de sertanejos fogem, a cada seca, para as mais diversas paragens, sem destino, seguido apenas de um fio de esperança, ou de desespero. E esse problema deságua na cidade, contribuindo para engrossar a grande fileira de trabalhadores desempregados e inexperientes que também acabam sendo explorado da mesma maneira que antes; ou talvez ainda pior, uma vez que ele está em território desconhecido.
Sinha Vitória sonha em ter uma cama de couro. “Pensou de novo na cama de varas e mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como outras pessoas” (RAMOS, 1996, p.40). O sonho de sinha Vitória se reflete em tantos outros em seus mais variados desejos. Todos sonham. Nenhuma realização. Logo xingam mentalmente alguém. A vida, talvez; ou quem sabe a sorte, a miserável sorte de ter nascido num lugar para o qual ninguém olha com bons olhos.
Mas antes que o retirante passe por esse processo – esperança, sonho, decepção – ele terá que passar pela a primeira e pior de todas as etapas: a fuga. Sim, a fuga. A fuga de sua terra castigada pela miséria, pela seca e por todas as suas intermináveis mazelas. E nesse momento é como se a raiz fosse se desprendendo do chão, ou como uma semente jogada ao vento, sem direção, podendo cair tanto em uma terra fértil quanto na areia ou sobre as pedras. Não há escolha.
Logo em seguida vem a fuga de si mesmo. Ele terá que se desprender de si próprio e pensar na vida porvir. Deixará suas raízes, sua gente, sua infância. Aí começa a ser testado o seu estado psicológico. Por que fazer isso? É realmente necessário largar toda a vida, seus costumes, hábitos e criar uma outra consciência? A quem isso se deve?
É verdade que a grande maioria de imigrantes não se pergunta isso de inicio porque ainda vive a utopia da grande cidade onde todos os sonhos são possíveis, aonde a seca e a miséria nunca chegam; e o sonho não os deixa ver a realidade, é claro. A desutopia começa a criar pernas quando ele é colocado de frente com as dificuldades por que todos passam: a falta de emprego, a fome, a saudade, o sentimento de impotência. Então verá que o sertão e a cidade andam juntos nesse sentido, que são separados apenas pela distância e pelos sonhos, mas que as dificuldades também existem, só muda de terreno.
É aí que Graciliano põe a realidade diante dos olhos de todos. Será realmente Vidas secas um romance de ficção? Provavelmente não. Nem mesmo Fabiano, sinha Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo, ou até mesmo Baleia. Eles são personagens vivas do sertão. Que tentam cruzar a fronteira de seus limites em busca de realizações, de sonhos, de fantasias. E que depois sofrem. Sofrem a dor de ver um sonho desmoronando, ou talvez nem mesmo se iniciando, uma vez que a realidade não os deixa dormir. Sofrem a frustração de chegar ao fim da linha e não ter mais para onde ir. A saudade de quem deixou uma vida para trás, uma história, e trocou ambas por uma triste ilusão.
O Brasil precisa se dar conta de que está sendo construído um fosso alarmante entre o Nordeste e o resto da nação; entre a classe baixa e a alta e que, se nenhuma providência for tomada isso só tende a piorar. E será pior para todo mundo, pois cidade e sertão estão cada vez mais próximos, e mais íntimos. Seus problemas são os mesmos: fome, desemprego, miséria. Vidas secas já denunciava isso há quase um século. Fabiano nunca foi ficção, nem sua história. Ela continua viva e jamais morrerá se não tirarem a máscara dos homens que governam esse país. O sertão precisa ser visto como uma oportunidade de mudança. A mudança do primeiro capítulo de Vidas secas.
Iriam para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia como ela era nem onde era. (...) e andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheias de pessoas fortes. (...) E o sertão continuariam a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos. (RAMOS, 1996, p.126).