O Sonho dos Outros

O Sonho dos Outros






Fulano, realmente não vale a pena dar nome aos bois nesse episódio, chefiou uma reunião secreta em janeiro de 1942 em seu país de origem, Alemanha. Vários representantes da entre aspas sociedade estavam presentes e Fulano, nesta reunião, participou que já estava em andamento o plano para exterminar certa parcela da população civil dentro de suas fronteiras. Houve um ou dois protestos, mas era inútil. Finda a guerra, em 1945, boa parte dos presentes partiu para o outro mundo. Outra parte considerável viveu até a década de 80. Quanto a Fulano, conseguiu escapar, mudar de identidade e habitar noutro país. Foi capturado no início dos anos 60, levado a julgamento e enforcado. Imagine o sonho dele. Cerca de 20 anos antes as pessoas que ele perseguia sequer tinham uma pátria. Imagine-o velho, atônito, com trilhões de fantasmas ao seu redor, vendo uma nação nascer e montar um serviço secreto extremamente eficiente, que em última análise deve ter bradado: não deixaremos esse canalha impune.

Certos sonhos carecem de pouca interpretação. Ou não.

Isaías, o profeta, sonhou um montão, digamos assim.

Tudo é sonho na Rede Galáctica de Comunicação.

O primeiro mártir do cristianismo – que ousou sonhar em voz alta - teve entre seus apedrejadores master Saulo, que estava noutra vibe e depois foi desperto.

A imensurável Rede Galáctica de Comunicação funciona através de cada membro que transcende do Eu Sou para o Nós Somos.

Até que ponto o sonho dos outros afeta o nosso?

Outro dia, a Organização das Nações Unidas divulgou o IDH 2013 – uma medida comparativa do bem estar da população dos diversos países do mundo, especialmente o bem estar infantil. O Brasil, a sexta maior economia do mundo, ficou na curiosa 85a posição, atrás de Chile, Argentina, Uruguai, Venezuela, Peru e de tantos outros países.
Ainda há muito que sonhar por aí...

Vale a pena visitar a história recente de um político que, num discurso de campanha para uma platéia minguada, foi confrontado por não ter deixado passar uma emenda cujo resultado baixou em 10 centavos o litro do leite. Os produtores reclamaram. Ele disse que uma em cada 5 crianças em seu país estava depauperada. E que não se importava se perdesse votos por isso. Cada um deve fazer a sua parte. Política não se trata de vencer por vencer. É necessário colocar idéias para funcionar em prol do público. O termo servidor público não está sujeito a interpretações sutis. Pelo contrário, é auto explicativo.

A história desse político está no sonho de um autor.

Existem muitas outras, de pessoas que conseguem abraçar o estágio do Eu Sou para em seguida atuar no Nós Somos. Bom exemplo é a trajetória do advogado corporativo R. L., que numa rotineira reunião para garantir a aquisição segura a um grande cliente, alerta que os petroleiros em negociação são decadentes, de casco único, com mais de 20 anos de uso e que certamente vão bater nalguma coisa e furar. R.L. clama por navios seguros, com calado G3, monitoramento EM-5000 e lastro eletropneumático recomendado. Ele foi excluído sem drama da transação, pois em seu caminho já havia outra porta aberta e em sua mente a indagação – o que estou fazendo com a minha vida?

Isso integra outro sonho de um autor.
Escrever é uma tarefa que difere um tanto de martelar um prego. Tampouco se trata de ser maior ou melhor. Tudo reúne importância e serventia na Rede. Ocorre agora estarmos tratando de palavras.

Beltrano de Tal equacionou a seguinte geometria, comparando dois pontos geográficos distintos para dar início a sua proposta: enquanto remédios para tratar o HIV são vendidos por 10U$ na Noruega, na África são comercializados por 100U$. O primeiro pouco precisa, o segundo carece demais e está a míngua. Este indivíduo focado no coletivo sonhou uma distribuição gratuita de medicamentos aos necessitados e depois se deparou com a impossibilidade do gesto, já que para se tratar um infectado com o vírus são necessárias diferentes pílulas ministradas a intervalos ordenados e o alvo da ajuda não sabia ver as horas, pois nunca tivera relógios.

O mundo que nos cerca transborda nuances e saber lê-las e interagir com elas, quando necessário, faz parte do manual do bom viver.

Em 1872 o mago Eça de Queiroz colocou no papel a sua maneira de ver a Lisboa da época:

“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. O estado é considerado na sua ação fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. A ruína econômica cresce. O comércio definha. O salário diminui. A renda diminui. O desprezo pelas idéias aumenta a cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença, de cima abaixo. Todo o viver espiritual, intelectual, parado. Perdeu-se, através de tudo isso, o sentimento de cidade e de pátria.”

Tem-se a impressão de que ali ninguém sonhava, exceto o próprio Eça.


(Imagem: Vittorio Zecchin, 1878-1947)



 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 23/04/2013
Reeditado em 26/05/2021
Código do texto: T4255651
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