URUTAU É MÃE-DA-LUA

Quando a mãe-da-lua cantava, era noite. Quelí também uivava co grito invisível daquel´ave. Fantasma dos galhos secos nas noites d´Ourissanga. Queli, gostava d´ouvir. Da língua, o baticum, bebendo leite. Sacudia alegremente a cauda, era só papai Nézinho chamá-lo junto à gamela. Quando a mandalua cantava, Queli dormia, acordava e latia um ganido assustado, mas amigo, porque sabia, não há perigo no canto do Urutau, no assobio do curiango, no grito do bacurau, na escuridão silenciosa da pituna. Meu bacurau doce e formoso, ouve a prece de Tainá, salva meu Cauê do mal. Lindo bacurau da mata, cura o dente da jurema. Só dizendo e bacurau escrevendo.

Quando a mãe da lua cantava, soturno e agourento canto, eu acordava, ouvia, Nanã: Dá já falou, Dá já falou. Quando a mãedalua gritava, noite escura, tinha medo de seu canto. Por que será de teus cantares? suspiros d´enamorados? Deusa, a ensinar homem falar? Quando o urutau cantava era noite bonita, chirriava e ninguém via. Dá já falou, Nanã respondia ao sopro d´urutau, fagote das matas tropicais. Nheambiú chora Cuimbaé. Mistérios da fala, mistérios do amor. Cantofala. Da camarinha, escuridão, canto encantado d´urutau, doce voz de Nanã. O brilhoazul nos olhos da manhã. Sim, ouvira a mãe-da-lua, cantar. Olhos, cabeça e corpo, diziam. Encanto e medo, pássaro fantasma, fincado em galho seco em noite quente do sertão.

Ourissanga da Ponta da Serra. Casarão sobre a colina, via-se o peji de Hélio curador. Bate cancela, tambor repica, arreia-se o padê, na procissão. Cura de males. Cegos, aleijados, tísicos, aluados, mundo, Medo, enlouquecido mundo. Ismael, louco Ismael, barria as ruas d`Aroeira, cantando, fanho e rouca voz. Chulas, ranchos e cantigas do carnaval marcadas com bassoura de cassutinga. Oh jardineira por quê tá tão triste, mas o que foi que te aconteceu? Quem te, pôs no porta-malas, Carine? Quem te atiçou sobre as fezes do mundo, tann sem hauser? Mundinsano. Depressão, antes era estafa. Milhões, muito mais daqui pra frente, sofrendo. Tristeza? Toda alma é triste, humanidade. Vontade de sair correndo. Mundo, pequeno mundo. Não quero ver ninguém, só estar na multidão. Não tenho direito de ser feliz. Alguém tem? Não quero levar ninguém comigo. Cada qual viva sua vida e não se culpe por nada. Notícia ruim corre depressa. João correu pro mato. Procurar. Alguém o viu todo lascado pro lado da Pedra Bonita. Se o mundo é louco? Líria, coitada, por que pagar por te matar? Que faz um homem aceitar dinheiro pora matar quem lhe pagou? Tu respondes, Ricardo? Trinta anos abatidos por uma bala, não de ouro. Um louco Estanislau, de paixão não muito boa, matou Julia Fetal, João da Silva Lisboa. Mundo louco mundo. Cães ladram e mordem, não me aborreçam. Fui sacudido com os gritos assustados de um galo d´angola que, fruto de despachos (Helio fazia despachos com animais vivos, não os matava), havia montado no mato e vivia com galinhas também tornadas selvagens. Podem também o homem, voltar ao estado selvagem? Por medo, não se lhes tocava, reproduzindo-se rapidamente, deixando-se ficar ali espantando romeiros, caçadores e viajantes. Mundo imundo enlouquecido. Do fundo de casa se via, no pé do morro, a fazenda de Zulé. Casa caiada, portas vermelhas, curral de gado, chiqueiro d´ovelhas e cabras. A casa de Mariquinha ao lado. Comi, ali, a melhor galinha. Nada se faz hoje como antigamente. Na Avenida Sete, A Portuguesa, Mariquinha voltou. Que estás a pensar pá? Ponha mais um pouquinho, o menino gostou da galinha. A mãe do portuga. Fez comigo o salto. Bom este pirão. De lamber os dedos. Mole de gorda. De galinheiro, milho inchado, pelo bico, como capão de mulher parida. O prato chefe do Stock Pot, onde Luiz confundiu a conta, the bill, com um prato. Procurando no cardápio. Desculpe senhor, este prato, nós não temos. Moço, ele está te pedindo a conta. Quem conta um conto aumenta um ponto. Sério que foi assim. O riso no ponto da marinete. Roceiro pechinchando. Um mil-reis está caro, pago quinhentos-réis. Arrelia dos da cidade. Cidade maravilhosa cheia de encantos mil, de dia falta água, de noite falta luz. Ourissanga, na frente o varandado, luz de fogueira pra esquentar frio e pandeiro. Anos depois, quem diria, o Varandá, do Pau da Bandeira, boêmia das noites baianas, ombreando o Cruz Vermelha, nascido em l883, vibrando nos setenta do século vinte, me veria. Dramáticas discussões, regada a suco de cevada, por um bode morto em pleno espetáculo de Ariman no Teatro Castro Alves. Lady Macbeth, d´alma gemente, flutuando no Castelo, na liça por limpar-se do sangue de Duncan, Macbeth enlouquecido esbravejando com o fantasma de Banquo no banquete. A moralidade medieva “Todo Mundo” vista do fim ao principio numa inversão proposital de Jesus Chediak. Fausto, ator brilhante e jovem, resolve, na estreia, ao final da peça, (até hoje não se sabe se improviso, ou constante do espetáculo) abraçar delicada e sensualmente a bandeira do Brasil. Longos meses de ensaio, gastos em vão, da Universidade, a Polícia Federal proibindo a peça. Tempo duro, quem o quer de volta? Toda atriz, prostituta, todo ator, viado. Do varandado, de onde se via o cemitério e o curral do Garapa, se penduravam gaiolas e cortiços. Uruçu, o melhor mel. Mandaçaia, o mais bonito. Jitaí, milagroso, tubi, o mais vulgar, sanharó, o mais nojento, arapuás, manduris. Quando se ia furar cortiço ninguém visitava Ourissanga, não assanhar as abelhas. Noite de escuro, chapéu, foice e machado, facão, espingarda e facho, furar arapuá. Enrolando-se nos cabelos, entrando pelos ouvidos, gostoso mel. Duas pedras à guisa de escada para o varandado. Casas acima do chão, como num pedestal, solução da arquitetura rural, dificultar a entrada de animais. Daí se viam também o terreiro, a malhada e o pasto da frente. Varanda, a sala da frente, onde se armavam redes, cintos, chapéus e chocalhos e outros apetrechos penduravam-se dos cabides. À direita, uma porta ligava ao paiol, despensa que se alongava até a cozinha, por onde também se entrava. No jirau se guardava o milho, o feijão, a farinha e outros mantimentos. Homens subindo a escada, sacos na cabeça a despejar no jirau. Fazia um barulhinho gostoso. Um pouco, a música da terra. Bonito ver a farinha derramar-se no salamim, quando se abria a gaveta do jirau. Poeirinha branca pintando a cara, cabelos. Sai desta p’uêra, m´nino, Quantas vezes não ouvira? À esquerda, o quarto da frente. Dormiam meus tios e depois, também eu quando já crescido. Paredes, pendentes pandeiros. Ganchos de madeira trabalhada desciam do telhado onde se guardavam roupas. Catres, madeira e couro. Bom batucar nas camas.

Tambor. Pandeiro. Marcam o samba, o batuque, a chula, e o martelo chorados na viola, chora. Palmas em contratempo embaladas por colher arranhando prato. Quando o sol se esconde tio João pega o pandeiro, esquenta-o no fogão. Crepita a brasa, retesa o couro. A chama afina o couro, a mão afina o tempo. No varandado, toca a tocar. Ressoam pandeiros na mata, assunta o caboclo de ouvido aguçado. Responde ao chamado seu Gregório. Diálogo das mãos no couro de gato esquentado. Sons da mata, ritmo da vida, Iniciado.

Comprido corredor ligava a casa, da varanda à sala formando um L e da sala seguia-se a cozinha. À esquerda o quarto de Nanã. Doninha como lhe chamava papai Nézinho. Nanã da velha escrava e nossa, assim aprendemos a chamá-la. Devia de ser bonita quando jovem. Seus cabelos brancos eram louros e seus olhos continuavam azuis cristalinos. Sua idade se perdera. Certamente a mais velha da família. Como irmã mais velha, criara meu avô, criara mamãe e meus tios, e criou a mim, meus irmaõs e primos. Toda bondade, sobrevivera a três gerações. Não casara, talvez por não sofrer a inveja de Iemanjá como sofreu Nanã-Buruku, abandonada por Oxalá. Mas, tivera muitos filhos, criados com o mesmo carinho e dedicação. Bom ver Nanã fazer sabão. Sebo, mamona, muxibas, e restos de comida, fumegando no tacho. A decoada, soda extraída das cinzas. Potassa. Cinza no tipiti, água fervente ou não, soca a mão de pilão. Das cinzas, o líquido aparado na gamela. A decoada, soda ou potassa de fazer sabão, herança dos tempos coloniais. Ainda ouço os mais velhos. Com a decoada se faz vidros, sabão, branqueamento do açúcar e até remédios. Nanã fazia um bocado de coisas com ela, não por ter lido a Alographia de frei Conceição Veloso, (ela nem sabia ler), aprendidas no boca a boca, passado de geração a geração. Ao pé do forno, eu a vejo. Pão-de-ló, beiju de massa, de tapioca, e tobelo (bolo de milho assado em palha de banana; Como gostava de tobelo! nem sei porque este nome, uma língua, parece. Línguas de fogo espalhando pelo chão?, Até hoje ainda o compro quando volto a minha terra). Ali, um atiçu de ovos, acolá garrafas plenas de manteiga, mais ali, mel, adoçando a vida. Açúcar branco só pra visitas. O nosso era rapadura ou o preto, feito ali mesmo. Açuque, assim, lhe chamavam os de meu pai. Os Gonçalves, o povo do Canto. E o vinho, Nanã fazia da jurubeba, frutas colhidas ali no terreiro, rico desta solânea, uma praga. Maceradas e postas a fermentar. Me vejo catando jurubeba com Nanã. Nunca lhe faltava uma garrafa. Ajoelhada, contrita, com o terço na mão fazendo suas preces e a jurubeba, boa pra tudo, dores no estômago, gripe e má digestão, entre imagens, como a ser abençoada pelos santos..

Continuação no livro NOITE EM PARIS, breve na livrarias.

Deus Carmo, Marco Anneu Lucano e El Carmo
Enviado por Deus Carmo em 16/04/2013
Reeditado em 27/02/2017
Código do texto: T4243713
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