DA TOLERÂNCIA À IMPACIÊNCIA, Parte II

O que perturba nossa organização social e coloca em xeque-mate a nossa vida em uma esquina qualquer, como o da mãe que pára obrigatoriamente o carro num semáforo e tem o filho arrastado por quilômetros não é desproposital: o medo, esse medo da morte é artifício usado para a manutenção de nossa docilidade.

Essa insegurança rende votos e promessas; quem já não ouviu ou leu que somos um povo pacífico e ordeiro? A história, apesar de contada do ponto de vista do dominador, afirma que não.

Que o diga Tomé de Souza quando amarrava índios revoltosos na boca do canhão ali, no Campo da Pólvora, para explodi-los exemplarmente.

Ou os jesuítas, que com o auxílio da falsa moral e do arcabuz, demoraram séculos para convencê-los de que achado (por um tal rei? português) não é roubado; e tudo que queria o branco era tirá-los das trevas da ignorância e barbárie, dar-lhes um nome cristão e “incutir em seus gentios corações a piedade e na alma afetos fraternais!”

Que o digam as inúmeras revoltas, conflitos, revoluções, rebeliões, conjurações, insurreições ocorridas no Brasil colônia aos dos hoje “movimentos sociais”.

Nessas convulsões tomaram parte, juntas ou cada uma a seu tempo, tanto o índio, o negro e o branco. É, portanto, uma falácia que sejamos um povo dócil: basta que surja um líder bom de papo e dê voz coletiva à crescente insatisfação anônima e veremos que não é.

As primeiras narrativas entusiasmadas, de Pero Vaz a Gonçalves Dias, verdadeiros manifestos da grandeza e fertilidade desta terra, reproduzidos nas obras de nossos escritores reforçaram o mito do paraíso tropical e da república da banana.

Somos então, de lá para cá, o berço da humanidade, o país do futuro, o pulmão do mundo, o povo acolhedor, de terra abundante e paradisíaca, o país que vai prá frente, com mulheres trazendo as pernas abertas para a mistura das raças por ser sensual: “Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas”.

Se não são mitos, quem desfruta de todas estas bem-aventuranças? Você? Eu? Então por que pagamos o maior número de impostos no mundo? Ou nele sentimos medo?

Estes mitos e outros, ao longo do tempo e de certas obras publicadas e reproduzidas, fizeram surgir, por exemplo, os mitos da democracia e harmonia racial.

Nossa literatura é rica na descrição dos conflitos nesta mistura nada harmônica e democrática, do Caramuru de Rita Durão, passando pela favelização em O Cortiço de Aluísio de Azevedo; em Os Sertões (O Homem) de Euclides da Cunha, para o qual no Brasil não é o mar que separa as raças “...separam-no-los três séculos...".

Isso sem falar da música, folclore, dança, linguajar, costumes, ou filmes como Cidade de Deus ou Amarelo Manga; que o diga Roberto DaMata em O que faz o brasil, Brasil?

A partir de 1930 decidiram definitivamente que o Brasil deveria ser moderno, com novas estruturas econômicas, sociais e políticas; segundo alguns autores, várias teorias racistas desta época imputavam a negros, índios e mestiços a razão maior do nosso atraso nacional.

Em nome da modernidade e desenvolvimento e para alimentar o anseio primeiro-mundista de uns, e para outros “embranquecer” a raça, o Brasil endividou-se ainda mais, as grandes cidades incharam, e copiaram-se as mazelas do velho mundo e a classe dominante ansiou à nobreza.

Poderia até citar Oscar Wilde, e dizer que saltamos, como sonhou Kubitschek, 50 anos em 5; ou seja, da barbárie à decadência sem ter passado pela civilização de nossos hábitos e costumes.

As mães pobres, solteiras e adolescentes de hoje, que procriam indiscriminadamente e vivem num ambiente familiar adverso são heranças da gigantesca migração interna daquela época até a década de 90; são produtos da favelização, da falta de planejamento familiar, do descaso com que tratam as escolas e a educação pública, da corrupção, de grupos interesseiros (as sociedades anônimas), dos mitos e das práticas ignorantes consagradas, entre outros.

Os filhos dos filhos de seus filhos estão aí, e como a geração da década de 80, tem assistida atônita na força de sua juventude a derrocada das religiões; vêem os principais representantes religiosos serem flagrados em vídeos disponíveis na internet ou na grande mídia cometendo atos abomináveis dentro e fora do país.

Suas palavras já não trazem o eco dos exemplos, e levam à descrença e ao abandono da fé humana em um ser superior e perfeito.

E a perda da fé dá-se ainda em relação à instituição igreja, local onde culturalmente Deus visita.

Sem exemplos paternos ou sociais, fé, religião ou igreja com que identificar ou fortalecer uma crença, atiram-se ao consumo, às baixezas humanas e... matam!

Querem agora, olhando pelo buraco da fechadura, entender uma paisagem infinita de fatores; implantar leis estaduais que permitirão que se adote a pena de morte, o que não seria aprovado em um plebiscito nacional.

Para matar quem?

Os que cometem crimes do colarinho branco ou aquele que rouba uma galinha para matar a fome do filho?

Depois disso surgirão leis que autorizarão o aborto, a esterilização em massa, a criação de guetos, o aumento do efetivo policial, prisões perpétuas, maiores e mais seguras.

Medidas extremas que servirão somente ao político falastrão ou a grupos mal-intencionados.

Ou como assunto superficial de apresentadores de programas populares, que repercutirão nos bate-papo do final de expediente em bares ou nos meios acadêmicos, a tal ponto que uma simples idéia ao sul torna-se-á realidade ao norte.

Mas os mitos e contradições continuarão aí: o povo dócil e sensual, de memória curta e silêncio de gado; de tolerância social e racial; ou que toda mulher nasceu para gerar e toda mãe é santa; que o incesto não é mais cometido por pais modernos; que a família ou lar é o refúgio seguro; que aumentando-se o bolo do desenvolvimento cabem fatias (emprego, dignidade, possibilidade de consumo etc.) maiores a cada cidadão do país etc. e etc.

Nossos intelectuais estão mudos ou foram calados; suas vozes, apartidárias e críticas, que deveriam dar vida à sempre dúvida cartesiana e serem representantes dos que se encontram na ignorância cega de povo, morrem nos bancos universitários e não ganham a realidade do leigo.

Desviar a atenção da opinião pública da raiz do problema é fato, assim como é fato que milhares de crianças no Brasil neste presente momento morrem de maneira violenta, por maus tratos paternos, no descaso de um hospital público ou vítimas da corrupção; ou nas mãos de uma jovem desesperada que atira seu bebê na lata de lixo.

Poderíamos, você e eu, listar uma imensidade de fatores que nos levariam a outra infinidade de variáveis, a tal ponto que em pouco tempo teríamos uma enciclopédia de causas e efeitos.

Gregório de Matos disse que somos todos ruins, e o que nos distingue não é o vício ou a virtude, e sim as ocasiões de ser um ou outro que se nos apresentam.

Tudo bem, Matos era o “Boca do inferno”...

Mas se Shakespeare vivesse hoje, sua mais conhecida citação seria “ser ou ter, eis a questão”.

Daniel Viveiros®/Fev2007