DA TOLERÂNCIA À IMPACIÊNCIA, Parte I

Qual é a diferença entre os jovens que mataram um menino, para aqueles que desviam milhões destinados à compra de ambulâncias e matarão milhares de Joãos ao retirar-lhes a possibilidade da assistência pronta e imediata?

Quem é o maior culpado, os que se escondem sob o manto da imunidade parlamentar e cometem crimes na certeza da impunidade

ou aqueles que são gerados por “descuido” aos milhares neste país, e reeditam na modernidade o conto de fadas Joãozinho e Maria: por não ter o que comer, expulsa-se os filhos de casa?

Qualquer pesquisa séria sobre o porquê e os períodos em que ocorrem o aumento de crimes praticados por menores, concluiria que estes antecedem as comemorações do dia das mães, Natal, Carnaval, shows e festivais.

Ou que foram movidos pelo simples desejo de uma roupa ou tênis de grife, um celular moderno, um aparelho de som potente ou simplesmente impressionar a filha da vizinha.

A mesma pesquisa concluiria ainda que são filhos de meninas solteiras, de baixa renda, baixo nível de escolaridade, desempregada, pais ausentes ou indiferentes, de família numerosa, vítimas de estupro ou incesto.

E que a criação dos filhos que geram aos borbotões caberá por responsável a avó materna que vive de um salário mínimo ou bolsa disso e daquilo, ou talvez as próprias ruas: são aqueles que fazem malabares no semáforo por uns trocados seu.

Eles e elas, crianças que crescem na vida por atalhos, se decidem “juntar os trapos” porque ela embarrigou, são empurrados cada vez mais para as periferias, vivendo de sub-empregos e bicos, manutenindo o círculo vicioso da própria ignorância em que foram gerados, presos à busca da satisfação das necessidades fisiológicas.

E essa pequena mãe sofre, pois não consegue se ver no papel ideológico e arquétipo de acolhedora, tranqüila, reconfortadora, provedora e amorosa.

Tem seus sonhos de criança por realizar, mas torna-se adulta precocemente enquanto anseia pela liberdade e independência que vê nas grandes novelas, onde a mocinha casa-se com o príncipe encantado e vive o eterno final feliz.

Quer tornar-se adulta passando pelos rituais comuns para a sua idade e ser aceita no mundo, mas falta-lhe no inconsciente o verdadeiro sentido das palavras lar, mãe, paz, morte, amor ou liberdade (assim como faltarão às crianças que saem de seus ventres).

Sentem que não existem e não podem aspirar ao ideal casamentório como aquela menina branquinha sorridente das novelas como Malhação; nem se vê ou identifica sua cor e condição nas jovens felizes e sorridentes dos big-brotheres, propagandas, revistas, outdoor ou seriados.

São bombardeados diariamente com milhares de estímulos de consumo e de tipos de comportamentos que são-lhe distantes num corpo premido pelo desejo de cuidados que se transmutam pelo das coisas supérfluas.

Podem não ter palavras para se expressar ou entender o que se passa consigo, mas este(a)s jovens sentem.

E sente que existindo para si, não existe para a escola, para a comunidade, para a justiça, para o lojista ou para aquele carrão de vidros fechados que passa indiferente.

Ou que existindo não vive; sobrevém então a frustração e ele(a) assume como instrumento de visibilidade, de status, ou de revolta as mesmas atitudes daqueles com que se identifica: a violência: simbólica ou real.

E ataca.

Seu comportamento não é ilógico ou anormal. Não para ele, que foi criado na insegurança, não freqüentou escolas, que tem baixa auto-estima e desconhece o que é afeto, aceitação, amizade, amor ou consideração e não podem dar vazão às insatisfações que o consomem.

Já não é mais um ser concreto, nos dizeres de Drummond em Eu, etiqueta, “tão diverso de outros, tão mim-mesmo, ser pensante, sentinte e solidário [...]”; é sim invisível e apartado dos ideais de felicidade e pseudo-realidade estampados nas alegrias falsas que vê na mídia.

Não desfruta do modelo de cabana feliz do pequeno-burguês.

Agora querem reduzir a idade de sua responsabilidade penal de 18 para 16 anos!

Este slogan tornou-se palavra de ordem. Frases prontas servem para isso; concentram a atenção da sociedade para um objetivo (espúrio) imediato a ser atingido. Afinal, a sociedade exige e clama justiça!

O povo tem medo!

Impedidos de ver com olhos críticos as razões e fatos que os levaram a uma situação limite, querem punição exemplar.

Um jornalista entrevista um especialista; este, dentro de sua área (fora dela pode ser um completo tapado), aventa-lhe as especificidades de seu objeto de estudo; e o repórter repassa pela mídia: soluções inúteis ou paliativas vestem a carapuça da resolução de todos os problemas, tampam o sol com a peneira e dão respostas a um povo indignado e inseguro, provocando o efeito borboleta.

Selecionam determinados aspectos da realidade e a partir destes interpretam o todo pelas partes, e servem a determinados interesses inescrupulosos.

Atêm-se à superfície dos fatos e neles encontram somente bodes expiatórios (crises internacionais, fatos e pessoas do passado, os juros altos, polícia ineficiente etc.) que mantêm ou reforçam as verdadeiras motivações que movem o mundo por debaixo do pano.

Muitos se preocupam agora porque a insegurança já não é mais privilégio dos grandes centros e dos pobres; suas grades, os vidros blindados de seus carros e seus sistemas de segurança já não protegem os filhos de suas entranhas; agora correm os mesmos riscos que a ralé.

A prática dos governos em desviar a atenção dos reais problemas para os quais foram eleitos com promessas de solução é antiga; esforçam-se até por mantê-los ou agravá-los: o desemprego e a fome na Venezuela chavista ou na Cuba de Fidel é culpa dos norte-americanos; a miséria del pueblo boliviano tem por culpada a Petrobrás; a insegurança nos Estados Unidos deve-se ao distante povo do Oriente Médio; a morte violenta do menino João deveu-se à falta de coração de um bando de jovens frios e indiferentes...

Alguém negará que estes menores (com pouca expectativa de vida e instrução) não anseiam ser como aqueles que mesmo na prisão desfrutam de privilégios e de escolta policial, verdadeiro show pirotécnico com cobertura de toda a mídia; ou como aquele político inelegível por oito anos que foi abraçado com veneração em uma super-festa do PT em Salvador; um partido que estava falido há alguns meses, e devia milhões na praça?

Alguém jurará de pés juntos que todos são frutos de pais que os desejaram e planejaram-lhe em pormenores os suprimentos emocionais, materiais e físicos no intervalo entre seus nascimentos à juventude transgressora, só para depois lançá-los nas grades de uma cela infecta e superlotada?

Grupos inescrupulosos e legendas interesseiras apropriam-se dos fatos e fragmentam as relações econômica, social e moral/religiosa do ser com o meio, e distorcem o contexto histórico e social em que se dão.

Mascaram os mitos e preconceitos presentes em nossa sociedade.

Daniel Viveiros/Fev2007