A Paz dos Iniciantes

A Paz dos Iniciantes







Taí uma historinha que vale a pena contar. João Donato chegou uma tarde na casa de Gilberto Gil, no Rio, e disse: olha, dá uma olhada nessa harmonia e melodia, coloca uma letra aí. Gil replicou que tinha de ir ao banco e João triplicou: ah, espera um pouco, vai, por favor? Depois ele simplesmente deitou no sofá e dormiu. Gil viu aquela cena, do João dormindo e desistiu do banco e se pôs a compor. Em meia hora a letra estava pronta.

Toda a semana que John Lennon passou na cama com Ioko foi na verdade uma campanha de marketing pela paz. Ele disse aos jornalistas: é óbvio que qualquer coisa que uma pessoa como eu faça vá parar nos jornais. Eu já entendi isso. Então, nada melhor do que fazer uma campanha. Uma campanha pela paz. Isso com certeza vai atingir outras pessoas.

Há uma declaração do escritor laureado com o Nobel Albert Camus das mais concisas sobre a importância da paz. Vale a pena pesquisar.

Quando Michael Moore realizou “Tiros em Columbine”, praticamente um tratado sobre a indústria armamentista e o histerismo, ele deu um pulo no Canadá para analisar a questão da violência e já na cidade froteinriça descobriu que o último assassinato ali ocorrido datava de 5 anos antes e fora cometido por um americano que atravessara a fronteira. Moore também descobriu que a quantidade de armas nos dois países era a mesma, guardadas as proporções, e que o fator que apertava o gatilho estava no histerismo coletivo dos USA, graças à mídia e seus noticiários.

Em 2009 a Record News transmitiu uma excelente reportagem sobre os jovens suecos, colocando neles uma tarja de “os mais felizes do planeta”, e o resumo de seus depoimentos descarta maiores interpretações: não vivemos no stress de competição dos outros países e o Estado, na nossa nação, nos poupa da sarjeta.

Fritjof Capra, no incomparável “O Tao da Física”, revela que em momentos de paz vem a clareza para as descobertas.

Lennon não deixava espaço para nada além do foco proposto – é a paz e fim de papo, como expressava Gandhi – não violência. O grande ruído nesse intento do compositor talvez tenha sido a foto de nu frontal dele e da Ioko, levando pessoas a pensar sobre depravação&Cia. Há um momento, nesse marketing, que Lennon dá entrevista totalmente envolto por um lençol branco, não se podia vê-lo, só ouvi-lo, e os jornalistas perguntaram o motivo disso. A resposta – porque assim as palavras vêm desprovidas de cor, sexo, idade, feições, etc.

Nise da Silveira, ultimamente presente em peças de teatro e cinematográficas, nasceu em Maceió em 1905 e sabe quantos orates por lá havia? Cerca de 2.000. Nise se formou em medicina no ano de 1926, única mulher numa classe de 156 homens e sua entrada para a História deu-se através de uma singela percepção – doentes mentais, esquizofrênicos, alcoólatras e demais dotados de distúrbios graves não deveriam ser tratados na porrada. Em 1840, nos estabelecimentos que sequer seriam catalogados como manicômios, no Rio de Janeiro, não era incomum colocarem o doente no tronco para apanhar. Cerca de 100 anos depois, com as novas técnicas de “tratamento” – choque e lobotomia, Nise disse um não categórico para essas práticas – e saiba que isso foi um tremendo ato de coragem – e colocou uma dose quântica de amor aos internos, que passaram a ocupar seu tempo com aquilo que hoje é conhecido por Terapia Ocupacional. A propósito – “Em 1830, a Comissão de Salubridade da Sociedade de Medicina do Rio do Janeiro, pelo seu relator Dr. Jobim, levantou o primeiro protesto público contra o modo desumano por que eram tratados os insanos”. Mais a propósito ainda e a fim de ilustrar esse artigo – “Em 1839, o Dr. Luiz Vicente De Simoni, no sexto número (setembro) da Revista Médica Fluminense publicou sua memória sobre a "Importância e necessidade da criação de um manicômio ou estabelecimento especial para o tratamento dos alienados".

Cem anos depois eles descobriram o choque e a lobotomia. Qual...

Seria caso de pensar na frase de um escritor da América quando disse que a história foi feita por iniciantes. Nise nunca tinha vivido uma situação dessas e agora vem a nota tônica de todo esse palavreado, ainda que seja uma suposição – dentro dela existia uma paz que por assim dizer excede toda a compreensão e sem essa paz não seria possível perceber, com toda a clareza, que um ser humano merece tato e não flagelo.

Ora, todos os citados acima foram iniciantes em suas caminhadas e descobertas. O próprio Gilberto Gil, cujo mar de composições desde há muito dá voltas nas bordas do infinito, nunca havia composto uma canção – A Paz - daquele modo.

John Lennon nasceu em 1940, estava portanto com trinta e poucos anos quando iniciou uma campanha com visibilidade mundial sobre a paz. Ele nunca tinha feito isso e seus inacreditáveis anos pregressos constataram um apogeu que talvez até hoje não tenha encontrado precedentes, especialmente se inserirmos o parâmetro Forma&Conteúdo.

Camus saiu da Argélia para o mundo com um personagem do balaco. Apesar de condenado à morte devido a uma briga na praia onde infelizmente o oponente faleceu, o protagonista de “O Estrangeiro” dá a nítida impressão de viver num eterno nirvana. Camus deveria saber do que estava falando, pois essas coisas acontecem sempre de dentro pra fora.

Nise é fora de série em todos os aspectos e deixou não só um legado, mas uma tremenda lição válida para todo encarnado no presente e vindouros momentos.

O missionário Michael Moore mostrou com o lado do cérebro que racionaliza a impossibilidade da paz sob o frenesi de violência televisiva.

Fritjof Capra intuitivamente, supõe-se, já sabia dessas coisas e muito mais, senão não teria escrito O Tao.

Para terminar, Coriolano F., artista de rua, que enseja performances também nos coletivos de São Paulo, encerra seu pequeno espetáculo musical deixando o violão de lado por um momento e dizendo ao público: faço o que faço por amor, e nem um dia deixaria de fazer. Não fazer significa ficar de braços cruzados e o maior homem do mundo morreu de braços abertos.

Coriolano é mais um iniciante na jornada, sua paixão era e é a arte musical, embora seu trabalho anterior fosse numa caldeira. Um dia ele deu no pé e veio alegrar a Paulicéia. Nunca tinha cantado num ônibus em movimento.

Quanto ao maior homem do mundo, ora, trata-se de um Iniciado. Entretanto, você e eu sabemos que entre outras coisas, ele falava sobre a Paz.



(Imagem: Carol Rama)









 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 15/01/2013
Reeditado em 06/06/2021
Código do texto: T4085982
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