LUZES DO NATAL
As luzes iluminavam as mansões dos bairros nobres. Era noite de Natal.
Distante dali, crianças choramingando, aconchegavam-se umas às outras, procurando vencer a friagem úmida que caía no Morro. Nada mais havia que fazer na pobre morada. A água açucarada sossegou os filhotes, que adormeceram no pequeno colchão sobre o piso de terra batida, expulsando-lhes as perninhas ossudas, que, encolhidas, pousavam no chão quase gelado. O cobertor surrado, com que cobriu as crianças, não as protegia por inteiro. O pequeno barraco, improvisado como tantos outros do Morro, pouco oferecia, além do que uma simples cama-de-casal, uma mesa e um fogão, já desgastado pela ferrugem. Era a morada do casal de nordestinos e seus dois filhos, que trocaram a seca do sertão paraibano pela aventura de uma vida melhor na grande cidade.
Marina sentou-se ao lado dos pequeninos. Esticou as pernas, ainda bonitas, acomodando as costas à parede e cruzando os braços por sobre os seios ainda bem firmes, atrás do vestido, de estampas de folhas e flores já desbotadas pelo uso. Procurava livrar-se do frio cortante que entrava pelas frestas da parede de madeira. Pôs de lado a caneca branca de ágata descascada, com um resto de café. Fechou os olhos e imaginou uma viagem pela cidade lá embaixo, aos seus pés, enquanto aguardava a volta do marido. Quem sabe muitas outras mulheres não comungavam da mesma penúria, porque todas ali, na pobre comunidade, eram peças integrantes daquele cenário. Talvez tenha imaginado.
Das brechas da porta tosca um facho de luzes multicores penetrava o modesto aposento, iluminado apenas por uma lâmpada simples, puxada por uma gambiarra. Eram os reflexos das luzes do Natal distribuídas pelas ruas, residências e jardins da cidade, até dos edifícios que se esparramavam lá embaixo, a perder de vista.
Ela se viu num daqueles salões dos ricaços da cidade.
Imaginou uma madame, gorda, entre pessoas, ornamentadas de joias ou bijuterias, deslumbrantes em suas vestes, comandando a grande noite do nascimento de Cristo. Uma gigantesca árvore, a um canto, piscando luzes coloridas, abarcava a seu redor um mundo de presentes, que aguçava a curiosidade de meninos e meninas, e de adultos também. O “bom velhinho” nunca faltou àquela casa nem às centenas de outras que constituíam os bairros nobres da cidade. Entre aquilo tudo imaginou também a deslealdade daquela gente endinheirada. A hipocrisia dos beijos e abraços das “peruas” e dos seus maridos. Alguns, por certo, traídos pela infidelidade das suas mulheres. Tudo era falso, imaginava. As alcovas violadas pelas desavergonhadas damas da sociedade; amantes que trocavam com amantes maneiras esdrúxulas de fazer sexo. Até o afeto dos filhos pelos pais ela achava mentiroso, porque filho de rico, hoje em dia, adora mesmo é a desgraçada da droga. Acreditava Marina.
Um lustre magnífico, de efeito de lâmpadas cristalinas, centralizado à grande mesa do jantar, iluminava pratos majestosos que se distribuíam fartamente em todo o seu tamanho. A alegria contagiava. Vozes diversas enchiam o ar misturando-se a suaves acordes de músicas natalinas. Serviçais se cruzavam pela sala ampla com bandejas de guloseimas variadas e bebidas diversas. Taças de vinhos de boas castas atendiam aos mais refinados gostos. Outros criados trinchavam tostadas leitoas e perus recheados, que eram devorados por glutões irreverentes, que ainda ansiavam pela troca de presentes, como se lhes faltasse algo mais para completar o tanto de que já eram possuidores.
A euforia daquelas pessoas era uma mentira. Ela considerava. Na verdade, escondia muitas tragédias íntimas, que ela enumerava, além do vício das bebidas e das drogas, a pederastia, o adultério, a inveja, a desonestidade e outros deslizes, “próprios dessa humanidade irracional”, concluía.
O silêncio no barraco foi quebrado com a chegada do marido, que apagou o sonho da companheira. A mulher acordou com um largo sorriso. Havia amor nos seus olhos, no seu sorriso de confiança nela mesma. Marina ainda era uma mulher bonita. A pobreza era que a maltratava, roubando-lhe os predicados que encantaram os olhos maliciosos de Severino, seu companheiro, quando a conheceu lá na Paraíba. Contudo, ainda motivava muito tesão ao esposo. Bem que podia ter-se prostituído, com os encantos que lhe restavam, nas noites da metrópole. Ainda tinha dotes físicos. Mas o seu corpo só foi maculado pelo esposo. Não se deitaria com outro. Achava asqueroso o que pensava que acontecia no meio daquela gente endinheirada. A troca de casais. Os bacanais que aconteciam, por certo. Gente que não estava nem aí... para o Natal dos excluídos, dos esquecidos daquele papai Noel gordo e corado que enchia de presentes de alegria e prazeres os lares da sua imaginação.
Julgava-se, com toda desgraça, superior àqueles que, lá embaixo, se confraternizavam nas mansões dos bairros chiques da cidade.
As luzes do Natal iluminaram os corpos abraçados do pobre casal nordestino, que vibraram no calor da ansiedade de se entregarem mutuamente.


 
Pablo Calvo
Enviado por Pablo Calvo em 04/12/2012
Código do texto: T4019764
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