O feitiço da coleira
Por Rodrigo Capella*
Rabo entre as pernas, olhos tristes e orelhas baixas. Zully apresentava todas essas caracteríticas quando observava a chegada de mais uma lua-cheia, toda brilhante e repleta de feitiço. O pobre cachorrinho sabia, mais do que ninguém, que algo estranho iria acontecer novamente e tentava se esconder embaixo de um pequeno e empoeirado baú. Mas, como sempre, a curiosidade era grande e o peludo se espichava em direção á janela para examinar a lua. Lentamente, sentia uma luz rodear o seu pescoço e uma estranha coleira rosa surgir em volta dele, sufocando o pobre cachorrinho.
Zully morria de medo da coleira e tentava, a todo custo, se livrar dela, mas não tinha forças suficiente. Chorava, e ninguém ouvia. Arranhava o chão, e ninguém percebia. O peludo tinha que se livrar desse feitiço, mas não sabia como. Era o fim do mundo. Onde Zully ia, todos tiravam sarro, faziam piadas e pediam a coleira rosa emprestada. O cãozinho ficava triste, escondia o rabo e trancava-se em casa.
Três dias depois, a coleira desaparecia misteriosamente e Zully podia passear livremente pelo parque, conhecer novas cachorrinhas e até trocar telefones para futuros encontros amorosos. O cachorrinho voltava a ser feliz, abanava o rabo, corria de um lado para o outro e esticava o pescoço para fora da janela, talvez em busca de novos horizontes, talvez para observar uma namoradinha ou talvez ainda para procurar algo estranho.
Dias depois, a vida de Zully mudou completamente. Com o rabo entre as pernas, olhos tristes e orelhas baixas, o cachorrinho se escondeu embaixo do baú aguardando a chegada de mais uma lua-cheia, toda brilhante e repleta de feitiço como de costume. Ele sabia que era perigoso e arriscado, mas se sentia atraído pela lua. Em um passe de mágica, a coleira rapidamente surgiu em volta de seu pescoço.
Sentia-se envergonhado e novamente não podia circular pelas ruas, não podia conversar com suas namoradas. Desta vez, o fetiço durou quatro dias, um a mais do que o previsto, assustando definitivamente o cãozinho.
Zully sabia que precisava fazer alguma coisa e, com uma força fora do comum, começou a procurar a coleira pela casa, imitandos os passos e técnicas de Sherlock Holmes. Se encontrasse a coleira, o fetiço poderia acabar e a maldição nunca mais iria ocorrer, deixando o cachorrinho livre para passear no parque e brincar com os amigos.
Olhou primeiramente na sala, abrindo os armários, mexendo no vaso de orquídea e tirando todas as almofadas do sofá. Nada, nada foi encontrado. Decidiu procurar no quarto de empregada e abriu um sorriso quando avistou uma grande caixa rosa, com a tonalidade igual a da coleira. Abriu e, durante alguns minutos, vasculhou todos os objetos da caixa. Mamadeira, chupetas, bolachas e outras coisas muito estranhas, diferentes de uma coleira.
Foi ao banheiro, procurou dentro do armário, revirou toalhas, perfumes, estojos de maquiagem. Novamente, não teve sucesso e entrou nos quartos. Espionou todos, foi até a varanda, dirigiou-se á cozinha e encerrou o tour no corredor. A coleira não foi encontrada e Zully deitou-se no chão para repor as energias e pensar sobre onde poderia estar a coleira.
Com o rabo entre as pernas, olhos tristes e orelhas baixas, o cachorrinho aguardava a chegada de mais uma lua-cheia, toda brilhante e repleta de feitiço. Zully estava triste, mas apresentava um ar diferente. O cãozinho mostrava pequenos traços de confiança, igual ao da época da juventude. Parecia ter solucionado o mistério da coleira enfeitiçada.
Dirigiu-se ao baú e abaixou-se, aguardando a chegada da lua. Quando ela erradiou luz, Zully abriu a tampa pesada e empoeirada do baú, olhou todos os cantos e dentro de uma caixa encontrou a coeira rosa, brilhante e cheia de luz. Jogou o objeto em direção á parede, a coleira se partiu em pedacinhos e Zully abriu um grande sorriso. Era o fim da maldição. Nunca mais ele teria medo da coleira.
Foi ao parque, encontrou os amigos, jogou baralho e andou pelo bosque com a vira-lata Carlinha, sua nova namorada. Tomaram sorvete, comeram chocolate e observaram os pássaros, lindos e alegres. De patas dadas, sentaram no gramado verde e beijaram-se lentamente, como se fosse a primeira vez. Carlinha, alegre e contente, surpreendeu Zully, entregando-lhe um presente. O cãozinho abriu o embrulho e encontrou uma coleira rosa. Abriu um sorriso. Agora, ele não tinha mais medo de usar coleiras.
(*) Rodrigo Capella é escritor, poeta e jornalista. Autor do livro “Poesia não vende”, que terá lançamento nacional no dia 03 de abril, das 18h30 ás 21h30, na Livraria da Vila. Informações: www.rodrigocapella.com.br