HAICAI: A DIMENSÃO PROFUNDA DE TRÊS PEQUENOS VERSOS
A cultura japonesa está repleta de exemplos que marcam com propriedade a justeza do adágio segundo o qual “tamanho não é documento”. Quem não conhece, hoje em dia, o engenho da tecnologia nipônica notabilizada na eletrônica pela produção de objetos cada vez mais reduzidos, em tamanho, mas de comprovada perfeição e eficácia?
O que talvez seja desconhecido de muitos é que essa tendência vem sendo cultivada ao longo dos séculos, manifestando-se, também na literatura, como acontece com o haicai, gênero de composição poética muito apreciado pelos orientais e por mim, em particular.
O haicai compõe-se de, apenas, 17 sílabas formando um terceto de cinco, sete e cinco sílabas, sem rimas. São, portanto, três pequeninos versos com os quais o poeta registra uma impressão, um drama ou um estado de alma. Exige do compositor muita imaginação, simbolismo e concisão para, num espaço tão reduzido exprimir a profundidade de sua mensagem. Do leitor, por seu turno, é preciso um mínimo de empatia para poder compartilhar da significação do verso, não raro dissimulada na sutileza de uma metáfora.
O haicai surgiu, no Japão, em pleno séc. XVI, provavelmente em conseqüência de uma transformação da forma básica da tanka, outro gênero poético muito apreciado desde o séc. VII. A tanka é um poema de 31 sílabas formado de duas estrofes: a primeira, semelhante ao haicai e a segunda, contendo dois versos de sete sílabas cada um.
Nos seus primórdios o haicai era um poema jocoso, como sugere o próprio vocábulo japonês (hai-kay = verso cômico), sem muita aceitação nos meios eruditos. O primeiro a exercitar esse gênero foi Tamasaki Sokan. Contudo, coube a Matsura Basho a glória de aperfeiçoá-lo dando-lhe uma nova dimensão de seriedade e lirismo, jogando com a suavidade da natureza em harmonia com o que há de mais puro no sentimento humano. Foi o que bastou para pontificar uma nova forma lírica clássica das mais apreciadas na literatura japonesa.
Basho, abandonando o comodismo de uma vida opulenta, originário que era de uma família samurai, tornou-se monge budista. Levou uma vida errante para espalhar aos quatro cantos do Japão sábios ensinamentos de uma filosofia de vida em equilíbrio com a natureza. Pôde assim conferir perfeição extrema ao haicai a ponto de ser considerado, hoje, o seu maior cultor em todos os tempos.
Buscar a significação de um haicai nem sempre é tarefa ao alcance de um iniciante. Uma leitura linear, apreendendo o sentido literal das palavras pode não conduzir ao âmago da questão. Há sempre um duplo sentido, ambivalência expressa em dois planos: o da expressão e o do conteúdo; o espiritual e o material, ou se quiserem usar da terminologia Sassuriana, o plano do significado e o plano do significante. Por exemplo:
Redemoinho
De poeira vermelha
E inúteis papéis
Este haicai eu compus em 1976. Expressa muito mais do que a simples descrição de um fenômeno bastante natural, em Brasília, nos meses secos e ventosos de agosto e setembro. Se o leitor se recorda dos acontecimentos inglórios que levaram muitos jovens brasileiros ao desespero da luta armada, certamente o entenderá.
Três palavras chave dão a dimensão significante do poema. Redemoinho expressa a intensa movimentação e os choques entre grupos clandestinos e as forças da repressão, verificados nas cidades e sertões palcos da guerrilha. A poeira sugere a fragmentação, desentendimento e fragilidade das facções de esquerda a, na ilegalidade. Os papéis definem os comportamentos das partes em conflito. Entendem-se aqui os métodos tidos como legítimos na lei de guerra, nem por isso menos brutais e repulsivos, bem assim outros expedientes ainda mais sórdidos como terror, tortura, traição e sacrifício de inocentes. Inúteis, portanto na construção de um projeto humanista.
Juro que ouvi
Na linda alvorada
O canto do galo
Neste poema carreguei toda a minha angústia do primeiro ano em Brasília. A saudade da terra, sua ambiência e seus costumes, o calor da amizade distante e a falta de pequenas coisas que coloriam o meu universo de valores. Como expressar melhor essa nostalgia cabocla senão com a figuração do canto do galo (jamais ouvido aqui no Plano Piloto) que me despertava nas bucólicas manhãs de Cruz das Almas, na Bahia?
O seu sorriso
Não mais que um sorriso
Foi quanto bastou
A imagem da primeira aparição de João Paulo I como Sumo Pontífice inspirou esse haicai em momento de suprema emoção e transcendência pela fé. Aquele inesquecível sorriso de bondade e amor atingiu-me como um lampejo divino anunciando as libertações humanas, na plenitude. Libertações pelo dom salvador de Deus e pelas ações dos homens em busca de justiça, sempre inspirados no Evangelho de Cristo.
(Publicado em 1980 em Civilização Azul)