As origens da barbárie brasileira
Preâmbulo: a ordem das bicadas entre as galinhas e nos animais
O primeiro encontro entre galinhas, inexoravelmente, resulta em conflito. Quando pela primeira vez duas galinhas se encontram, elas se agridem mutuamente, até uma se submeter à outra, e se por em debandada. No encontro seguinte, ambas se lembrarão do ocorrido, e a que fugiu saberá qual é o seu lugar, reconhecendo a supremacia da outra.
Se várias galinhas são colocadas juntas, há uma sucessão de conflitos, dos quais resulta uma quase-hierarquia. Surge uma galinha dominante, vencedora de todos os conflitos; uma vice, dominada apenas pela campeã, tendo superado todas as outras adversárias. Uma terceira, tendo sucumbido apenas a essas duas, e vencido as demais. A ordem resultante dos conflitos resulta em uma estrutura muito próxima de uma hierarquia, na qual fica estabelecido a galinha número 1 (a dominante), a 2, a 3... , embora eventualmente uma galinha possa vencer uma de ordem mais elevada, e ser vencida por uma mais baixa; tal fato pode ocorrer quebrando a hierarquia.
Estabelecida a ordem das bicadas, quem manda em quem, os conflitos diminuem: as galinhas dominantes bicam as dominadas, e estas tentam fugir automaticamente delas, sem revidar. As galinhas dominantes permanecem sempre lembrando às dominadas quem é que manda, bicando-as todas as vezes que as encontram.
A imensa maioria dos animais estrutura suas sociedades de maneira análoga, reconhecendo, de algum modo, uma forma de dominância, uma hierarquia entre os indivíduos análoga à das galinhas.
Com toda a certeza, nossos antepassados, um dia, se estruturaram dessa maneira, antes que algumas regras de civilidade tivessem se sobreposto à pancadaria. Quando a civilização colapsa, existe uma forte tendência a um retorno a esse estado de selvageria primitiva, animal.
Origens do Brasil
Embora uma multidão de índios, desde tempos imemoriais, habitasse a região conhecida hoje por Brasil, o pais só foi constituído como uma unidade com a chegada dos portugueses. Vieram para cá, para essas terras inóspitas, os degradados. Vieram os criminosos, os mendigos, os marginais, e toda a escória indesejável para os portugueses. Trouxeram ainda africanos sequestrados de suas aldeias, espancados, torturados, seviciados. Juntos, portugueses e africanos desmantelaram as sociedades tribais indígenas locais, esfacelaram seus valores e sua saúde; usurparam seus territórios, oprimiram suas populações, e incorporaram o lixo resultante, as pobres almas arrasadas pelos conquistadores desalmados. De toda essa mistura emergiu a sociedade brasileira.
Essa é, pois, nossa origem: somos os descendentes de índios sobreviventes do massacre perpetrado pela escória portuguesa coadjuvada por africanos escravizados; a mais completa lástima!
O resultado disso não poderia ser outro: a barbárie. Mendigos, ladrões e assassinos portugueses empunhando chicotes, comandando negros indefesos como se fossem animais, explorando, aviltando índios desprotegidos, destruíram a cultura indígena preexistente, impondo em seu lugar uma barbárie muito similar à condição animalesca descrita pela ordem das bicadas. Nesse estado, manda quem pode, e que é sempre o mais forte, o que segura o látego. Após quinhentos anos de opressão, de aviltamento de toda a população, temos o Brasil de hoje, no qual nossas origens permanecem fortemente evidenciadas em nossa estrutura social.
Origem das favelas cariocas
Os morros cariocas foram sendo habitados por escravos fugidos, pelos poucos que conseguiam se insurgir, se rebelar contra a opressão de seus "donos"; ali formaram suas famílias, tiveram seus filhos nos quilombos que cresceram com a chegada de outros excluídos da sociedade, formando as enormes favelas hoje existentes.
Os habitantes desses quilombos até hoje não adquiriram o status de pessoas, de cidadãos brasileiros. Assim como os escravos fugidos, ancestrais e criadores das favelas, continuam sendo vistos como marginais, como seres inferiores, tratados como animais.
Talvez a rebeldia nas favelas tenha aumentado, talvez continue a mesma, fato é que, com o enriquecimento de alguns em decorrência do muitíssimo rendoso comércio de drogas ilegais, parte da população favelada conseguiu se armar. Não foi uma mera atitude de defesa; os que vivem no morro e lutaram por sua posição em um mundo selvagem, pretendem certamente inverter a ordem das bicadas, querem ser, agora, eles, os opressores. Tal fato não deve causar nenhum espanto: desde crianças, todos os habitantes do morro aprendem a mesma regra, quem tem o poder manda! Quem se submete obedece. Ali, a insubmissão costuma ser punida com a morte.
Os ensinamentos nas favelas.
Os grandes professores nas favelas são os policiais. Percorrendo as vielas em bandos fortemente armados, eles impõem seu poder sobre os habitantes locais. Como galinhas dominantes, relembram cotidianamente a toda a população quem é que manda, subjugando, humilhando diariamente as pessoas que ousam cruzar seus caminhos pelas ruas. Os policiais, plantados ali pelo poder público, ensinam, relembram, fazem rememorar diariamente a mesma lição odiosa: manda o mais forte; ordena quem tem as armas. Não surpreende que as populações locais tenham aprendido a lição, nem que eles mesmos agora queiram ensinar a todos as mesmas lições aprendidas a ferro e a fogo: manda quem tem a força. Mas agora eles também estão armados.
Tendo conseguido um alto poder aquisitivo com o comércio de drogas, alguns habitantes das favelas se armaram fortemente, impuseram suas próprias leis, uma degradação de valores desconexos, e iniciaram os embriões de uma sociedade autônoma, embora completamente degradada, incivilizada, selvagem.
Nos dias de hoje
Acostumados com esse estado de coisas, os cariocas nunca deram a devida atenção a nada disso. O governo federal também nunca atentou ao crescimento dos quilombos. Devem ter sido as olimpíadas que chamaram a atenção ao fato: aos olhos de estrangeiros, a presença de um exército de rebeldes armados em cada morro deve ter causado inquietação, e preocupação com a própria integridade. Também deve ter inquietado fortemente os poderosos a suposição de que poderiam vir a ter seus direitos cerceados por populações autóctones que os impedissem de usufruir seus divertimentos usuais, como os jogos olímpicos. De qualquer forma, o estado resolveu atentar para o problema, propondo, em consequência, a implantação nos morros de fortalezas denominadas "unidades de policia pacificadora" as UPPs. O escárnio da nomenclatura remete, entre outros, ao extermínio dos apaches cometido pelo exército norte-americano, também designado "pacificação".
Decidido a acabar com o problema, o poder público, com enorme dotação orçamentária para os jogos, tem se empenhado na formação de policiais. Ocorre que esses "policiais" não vêm sendo formados para zelar e impor a lei, mas para repetir a mesma lição ensinada há séculos nos morros: Manda o mais forte! Os policiais, como de costume, vêm sendo treinados em táticas de guerrilha urbana, nas formas de intimidação das populações, de humilhação, em suma, de dominação. Os policiais estão sendo formados para impor a ordem nos morros, para mostrar quem é que manda. Não hesitam em admoestar os moradores com suas bicadas constantes, é assim com todos os animais.
Ocorre que esse é exatamente o ensinamento que essa população já conhece, e na qual é mestra. Não há a menor necessidade de reforçar o aprendizado desse conhecimento, tão bem aprendido pelos grupos armados que se insurgem contra os policiais, que sequestram e encarceram indivíduos para extorquir deles algum dinheiro.
Esses policiais não hesitam em exterminar os insubordinados, nem se preocupam com as mortes eventuais de moradores locais em virtude das rajadas de metralhadoras atiradas descompromissadamente, levianamente, nas regiões habitadas. Eventuais mortes ocorridas no local equivalem à morte de animais, sejam eles selvagens e perigosos, ou meramente irrelevantes (na verdade os animais vitimados pelos policiais têm causado forte consternação nas populações cariocas. Um cão atingido por spray de pimenta dirigido por policial gerou forte indignação em uma rede de TV que nunca atenta aos assassinatos cometidos pelos policiais).
O treinamento de policiais para as UPPs está gerando um enorme contingente populacional habilitado ao uso de armas, conhecedor de técnicas de abordagem, de guerrilha urbana. O estado está armando e treinando os futuros milicianos, aqueles que, no futuro, desafiarão as leis tentando impor o seu próprio ponto de vista baseado nos ensinamentos recebidos do estado: Manda quem tem a forca; manda quem tem as armas. Eles tratarão de mostrar que quem tem as armas são eles, que são eles que detêm o poder, sendo eles, portanto, os que mandam. Já aprenderam também que não precisam hesitar em exterminar os que se rebelam contra suas ordens.
A barbárie se perpetuará!
Adendo:mais sobre as UPPs
Em face de um imenso descontrole da criminalidade no estado do Rio de Janeiro, o poder público resolveu criar as chamadas "unidades de polícia pacificadora" para, supostamente, tentar controlar a gigantesca aberração.
Sob esse rótulo escarnecedor, o estado produz um enorme contingente de policiais e os planta nos morros cariocas, com o propósito de colocar ordem no caos. O erro básico encontra-se exatamente aí: não deveria tentar impor essa ordem, deveria impor a lei. A diferença entre ambas é imensa, especialmente na maneira em que os policiais aprendem o significado de "ordem".
Vivemos em um estado de barbárie, o que fica demonstrado pelo número de assassinatos cometidos pela polícia, aqueles que deveriam zelar pela lei.
À maneira dos animais, os policiais são instados a estabelecer uma ordem, uma hierarquia. São colocados no morro para mostrar quem é que manda, para botar moral. No morro moram os "bandidos", ou seja, pessoas pobres e de pele escura, normalmente classificados como "traficantes". De acordo com a polícia, traficantes podem ser exterminados. A simples menção dessa palavra justifica o assassinato de pessoas no morro, cometidos por policiais: ─ eram traficantes ─, desnecessária qualquer outra justificativa para o assassinato.
O poder público tem treinado um vasto número de pessoas com o intuito de colocá-las em UPPs, de torná-las policiais. Essas pessoas recebem um treinamento de combate urbano, aprendem a usar armas, a se proteger delas, a abordar outras pessoas. Aprendem uma série complexa de medidas de intimidação, de ataque e de defesa, mas não aprendem que as pessoas têm igualdade de direitos. Ao contrário, aprendem que uns nascem pobres e escuros, e devem obedecer a outros que lhes são superiores. A desobediência a suas ordens acarreta punição, a rebeldia pode justificar a morte do insubordinado que insistir em manifestar algum direito.
O poder público permanece formando, patrocinando, e armando feitores e capitães do mato que continuam a zelar pelos grilhões que cerceiam os escravos negros.
Quando um policial assassina um cidadão no morro, resolve qualquer polêmica sobre o assunto definindo o caso como "auto de resistência". O policial está acima do favelado, pode portanto intimidá-lo, humilhá-lo. Em contrapartida, o homem do morro deve se submeter a qualquer humilhação imposta por alguém que lhe é superior, essa é a norma . Essa é a norma imperante em um estado de barbárie, é a norma imposta pelos policiais da UPP, pelo poder público. A insubmissão, a resistência a tal estado de coisas, a resistência à humilhação pode ser punida com a morte. Para o policial da UPP a questão é mostrar quem é que manda (note como os traficantes aprenderam bem a lição).
Os policiais deveriam ser formados para impor a lei, pressupondo, obviamente, que deveriam, eles mesmos, cumprir a lei. Mas aprendem, fundamentalmente as técnicas de combate. Futuramente, as pessoas formadas em tal escola virão a ser os novos "milicianos".
Milicianos são bandidos que não moram no morro. São responsáveis por tantos assassinatos quanto os bandidos do morro (traficantes), embora não tenham origem tão humilde. Devido a essa origem, situam-se hierarquicamente acima dos favelados, sendo submetidos a um nível menor de humilhações.
Eventualmente um policial ataca alguém hierarquicamente superior a ele próprio, está acostumado a matar e não se preocupa com o destino que suas balas tomarão. Quando isso ocorre, cometem um crime, e são punidos com rigor. Aconteceu duas vezes, pelo menos, nos últimos anos, Em uma delas uma juíza foi assassinada, crime de enorme repercussão em virtude do cargo que ela ocupava, superior ao do policial assassino.
O poder público, desse modo, continua alimentando a barbárie, continua a ensinar, a impor, um sistema de desigualdades. Os homens que recebem o treinamento de combate hoje serão os milicianos de amanhã, criminosos altamente qualificados, treinados, e respaldados pele própria polícia. As UPPs representam a consolidação do estado de barbárie.