O deficiente e o mundo
O DEFICIENTE E O MUNDO
Conforme a versão bíblica o mundo era perfeito e todos os seus habitantes também; todas as cousas estavam em primorosa harmonia, isto, é claro, até a entrada do pecado que de acordo com a versão citada, quebrou o equilíbrio existente e colocou o mundo num completo caos; onde o Homem, agora, teria que trabalhar e estaria sujeito a toda sorte de pragas e enfermidades. A raça humana, até aqui representada por Adão e Eva, quebrou o acordo com Deus e decidiu lançar mão das rédeas de suas próprias vidas.
Ao que se sabe pelos registros da História da Humanidade, considerando – se assim, os relatos bíblicos; o Homem e o mundo só foram perfeitos e viveram amistosamente aqui, no Gêneses. “Verdade ou não”, decerto que por serem ignorados – como ainda o são, hoje. - e considerados socialmente seres de só menos importância, alguns documentos se perderam no tempo ou os fatos a respeito da primeira anomalia, do principio dessa abstrusa relação mundo e deficiente não mereceram a atenção dos escritores da época. Sem esquecer que a escrita só surgiu a partir de 2.500 a.C. no Egito. O que justifica esta lacuna neste sentido, na epopéia do deficiente e o mundo.
À parte isso, a constatação de que sempre existiram na História indivíduos com algum tipo de limitação física, sensorial ou cognitiva é tão antiga quanto à existência humana. Como afirma Silva:
“anomalias físicas ou mentais, deformações congênitas, amputações traumáticas, doenças graves e de conseqüências incapacitantes, sejam elas de natureza transitória ou permanente, são tão antigas quanto à própria humanidade” (Silva, 1987, p. 21).
Isto significa tragicamente dizer, que ao longo da História da Humanidade a relação do deficiente com o mundo, nunca, jamais foi uma das mais amigáveis e provavelmente nunca o será. Considerando - se que os registros históricos relatam que as pessoas que nasceram ou que por algum infortúnio da vida vieram a se tornar um deficiente, sempre foram fadadas à segregação e exclusão social; posso seguramente afirmar que a deficiência, seja ela qual for, é a pior desgraça que pode recair sobre uma pessoa.
Pois de acordo com a história, desde os primórdios da humanidade, no que diz respeito ao trato com nossos semelhantes, o deficiente sempre recebeu e ainda “recebe” dois tipos de tratamento que se estendem de um extremo a outro; - A rejeição e “eliminação sumária” de um lado, e a proteção assistencialista e piedosa de outro.
Sendo que estas e não aquelas atitudes vergonhosas vêm se acentuando ainda mais nos dias de hoje na presente civilização, fazendo parecer que no mundo não há lugar para o deficiente a não ser o de ficar à margem social. Muito provavelmente este pensamento tem seu fundamento na idéia de Aristóteles, “tratar os desiguais de maneira igual constitui-se em injustiça”. Tal pensamento influenciou a sociedade de Atenas a amparar e proteger o deficiente. Como fazem hoje nossos governantes através de políticas públicas assistencialistas.
De maneira que inquieta - me a seguinte indagação:
Por que as pessoas “anormais” foram e ainda são tratadas com tanta hostilidade, desprezo e indiferença, pelas mais distintas civilizações?
Os motivos alegados são os mais diversos possíveis; daí a necessidade de se entender esta prática, sob o ponto de vista da realidade histórica e social de cada época.
Não é minha intenção asseverar que todos os nossos antepassados adotaram a prática da exclusão ou do aniquilamento. Contudo não se pode negar que em tempos remotos alguns grupos primitivos como os Sirionos, Ajores, esquimós e até mesmo os nossos tupinambás, entre outros, em função de suas crenças no sobrenatural, em maus espíritos, desarmonia com a natureza, cultos, mitos e até mesmo por uma questão de comodidade para assegurar a sobrevivência do grupo recorreram à prática do aniquilamento no seu seio social. Como faziam os espartanos, ou os romanos na Roma Antiga, que eliminavam seus deficientes atirando os em precipícios, no mar em bueiros... já que não era bom para a criança deficiente nem para a república que esta continuasse viva, pois a maioria dos cidadãos deveria tornar se guerreiros.
Mesmo na bíblia, mais precisamente no novo testamento, há registros revelando que os deficientes eram vistos como seres repulsivos e tratados socialmente como amaldiçoados, pois carregavam sobre si os pecados de seus pais. Foi sob este panorama de execução sumária que o deficiente viveu por séculos sem fim, até começar em Roma a propagação do cristianismo que com suas doutrinas de caridade, humildade, amor ao próximo, perdão das ofensas... muito contribuiu para que de certo modo o deficiente começasse a receber de sua sociedade alguma compaixão e piedade. – o que sem duvida foi um avanço para a época e é claro, não representa mais o mesmo nos dias atuais -.
Apesar de ainda continuar excluído, com o a difusão das doutrinas cristãs o deficiente começa a ser tratado com menos hostilidade, nota – se aqui, ao menos uma tendência de humanização desse grupo populacional que por sua vez começa a participar socialmente em atividades que lhes eram possíveis, como a pesca e a tomada de decisões importantes, mensageiros de guerra, bobos da corte, etc. Podemos dizer que a inclusão social tem sua origem no cristianismo mesmo sob a ótica da piedade e complacência, cujos resquícios ainda perduram na sociedade de hoje que insiste em tratar o deficiente como um incapaz, atribuindo lhe apenas serviços simples e muitas vezes humilhantes.
Como se percebe o fato é que da execução sumária ao amadurecimento do “tratamento humanitário”, em se tratando de inclusão social do deficiente em pleno século XXI, o que nos torna seres distintos dos demais, provavelmente é o marketing favorecido pela globalização. Basta lembrar que desde a Convenção de Salamanca, a inclusão social e educacional tem sido a “bola da vez”; ganhou destaque nos principais noticiários do mundo, e se tornou, até pauta das promessas políticas no Brasil.
Virou o modismo educacional do momento assim como foi com o “Construtivismo de Emília Ferrero”. Isto, sem falar que o assunto é recorrente nas novelas brasileiras, campanhas publicitárias, encontros nacionais e internacionais; todavia, o lamentável é que desde os régios tempos nos quais as pessoas com deficiência eram isoladas do resto da sociedade, em asilos, conventos e albergues, pouca coisa concreta, real, foi feita para beneficia - las.
O fato é que a inclusão social do deficiente vem sendo realizada desde a antiguidade por nossos ancestrais; só que de modo muito tímido, acanhado, e equivocado, sempre privilegiando um ou outro de “mais prestígio social, recursos financeiros, influência política, etc”. E a nossa geração que não é em nada boba, vem ao longo dos séculos apenas reproduzindo e aperfeiçoando os métodos truculentos de exclusão desenvolvidos por nossos “ultrapassados pais”. Afinal, nossa civilização “culta e superior” apesar de viver alguns milhares de anos à frente disso tudo, no que diz respeito ao trato com o deficiente, em nada evoluiu; pois continua reportando se ao passado e praticando as mesmas barbáries só que com um pouco, mais de crueldade, requinte e desfaçatez.
Tal é a verdade que como na idade média, os deficientes que podem, ficam em asilos, “sob os cuidados de parentes ou mão de obra terceirizada”, e os que não podem, na rua mesmo, nas sarjetas da vida; abandonados à própria sorte. – Mas, peraí! Não era isso que faziam os Tupinambás? Esquimós, Sirionos, espartas...? Ah! Deixa pra lá. Quem se importa? Se nossos “pais” nos vissem hoje, decerto que ficariam orgulhosos. Aprendemos direitinho.
Nossa sociedade que vive hoje a transição entre a integração social e a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade parece não saber ou não querer lidar com essa situação, pois como no passado, continua a “ignorá - las, a tratá - las” como se fossem seres de outro universo; e aí, a inclusão não se efetiva, e as autoridades brasileiras “escapam” ilesas, como se nada devessem, como se tivessem feito tudo que deveriam fazer, (decretos, leis). “Esquecem” que a inclusão social do deficiente, não se realiza apenas por meio de decretos e leis.
A disparidade entre o que se diz e o que se faz ainda é gigantesca a começar pela legislação do País que não observa as dificuldades nem atende às especificidades das deficiências, nas escolas, nos espaços urbanos, públicos, dos quais destaco, principalmente, “as universidades”, que deveriam ser o berço da inclusão social, mas que fazem exatamente o oposto, excluem as pessoas com necessidades especiais, por meio de seus projetos arquitetônicos. – Até parece que a esperança e o desejo, é que o deficiente nunca chegue a freqüentá - las.
De modo que, apesar das leis, de cotas de emprego, urbanização, acessibilidade, etc, de se falar muito em educação inclusiva, ainda falta muito para a sociedade tratar o deficiente como uma pessoa, um ser humano com aproveitamento produtivo na/e para a sociedade. O Mundo que por meio de leis garantiu o direito a essas pessoas de ir e vir, de trabalhar, de estudar, de se sentirem gente; continua relutando, atravancando o caminho que outrora para elas se abriu.
Contudo, apesar de todo o contexto histórico, é inegável que estamos vivendo um momento muito importante na História da Inclusão Social o processo está apenas iniciando, ainda que tímido e desajustado, visto que ainda tratamos o diferente como igual, de modo que o grande desafio é desconstruir os paradigmas tradicionais, o estigma de que o deficiente é incapaz, é um fardo. É hora de repensar a estrutura existente, sob a perspectiva de que as invenções tecnológicas venham reduzir as dificuldades que estes indivíduos encontram para melhor se relacionarem com o mundo. Ao que parece Darwin tinha razão: na vida, prevalecem os mais fortes, no caso, os mais afortunados.
Wilsomar dos Santos