Para inglês ver - Edgard Steffen
Quem escreve sempre corre o risco de ser mal-interpretado. Nem os filósofos escapam. Hegel afirmou que somente um discípulo compreendera sua filosofia; e entendera mal, lamentava.
Por isso, vou começar pelo recado final destes escritos: "Não se jogam córneas fora nesta cidade!"
O boato começou a partir de manifestação bem-intencionada de médico especialista em medicina do trabalho. Conhecendo a importância do Banco de Olhos de Sorocaba (BOS), o profissional quis aumentar o número de doadores. Foi mal-interpretado. Decodificada erradamente, sua mensagem gerou, na Internet e no noticiário da televisão, o mito de que se desperdiçam córneas coletadas.
Em 12 de setembro de 1979, a partir de uma boa idéia, clubes de serviço e maçonaria, aliados a outras forças vivas de nossa comunidade, criaram o BOS para angariar doações de córneas. A Assembléia de Fundação foi presidida pelo saudoso oftalmologista dr. Osmar Guimarães. O primeiro presidente do BOS foi meu amigo José Archimedes de Paula Santos. Vencidas as dificuldades e desencontros iniciais, as doações foram crescendo até atingirem recordes nacionais, tanto na captação (60% das doações no Brasil) como na retirada, armazenamento e transplantes de córneas (8.500 = 30% dos TC no País). Hoje, mensalmente, coletam cerca de 1.200 córneas.
No Hospital Oftalmológico, possibilitam a realização de duzentos transplantes/mês e redistribuição de mil córneas para outros hospitais credenciados a fazer transplantes. O Hospital Oftalmológico nasceu, em 1995, na esteira do sucesso do banco de olhos. Com atividades independentes do BOS, o Hospital investe em equipamentos de última geração, é referência nacional na especialidade e centro de excelência no tratamento, pesquisa e profilaxia das doenças oftálmicas.
Entrei no assunto porque meu amigo William Moffit Harris, professor doutor (aposentado) da USP, enviou-me e-mail mostrando sua preocupação com perdas de córneas que, supostamente, estariam ocorrendo em nossa cidade. Aposentado, porém nunca desligado de suas preocupações com a saúde pública nem conformado com a versão neoliberal do Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País -obrigado, saudoso Stanislaw Ponte Preta!), continua lutando contra tudo o que acha errado. William já engatilhara sua metralhadora de duzentos e-mails para contribuir na solução do problema. Ex-docente da Faculdade de Saúde Pública, especializado em saúde escolar, ele conhece bem os problemas que afligem o estudante brasileiro; jamais se conformaria com desperdício de recursos na área da saúde. Principalmente de córneas que permitiriam recuperação da visão para tantos brasileiros.
Esse inglês nascido no Brasil (filho de inglês, somente aprendeu o português quando entrou no grupo escolar) não costuma se conformar com mazelas que encontra pela frente. Quem quiser conhecê-lo melhor deve ler "Era uma vez um menino travesso" (Legnar Informática & Editora Ltda., 2004). No livro, misto de crônicas e autobiografia, narra suas lutas para que políticos não interferissem em seu trabalho no Posto de Puericultura; sua obstinação em exigir, durante viajem ao Rio, que passageiros, motorista e a própria Polícia Rodoviária respeitassem a Lei "É proibido fumar" no transporte coletivo; seu empenho para que pediatras de sua área cumprissem horários e atendessem bem a criançada.
Certa feita, durante supervisão, advertiu colega co-participante de movimento religioso a que pertencia e se dedicava. Foi interpelado: - "Você não deveria ter advertido um irmão!". A resposta veio direta: - "Meu irmão é aquele coitado que acordou de madrugada, atravessou Campinas a pé porque não tinha dinheiro para ônibus, arriscou-se a perder o emprego por ter faltado ao trabalho, para trazer o filhinho doente para consulta e não te encontrou na unidade de saúde!".
Estas, entre outras esquisitices bretãs, no país do "é proibido proibir".
William Harris, sempre em fervorosa atividade, auxiliado pelo médico/poeta Sérgio Borges Bálsamo, empenha-se na instalação, em Sorocaba, de movimento literário que reúne médicos escritores no Estado de São Paulo.
A postura britânica de meu combativo amigo fez lembrar-me de que a corte de D. João VI transferiu-se para o Brasil com a proteção, custeio e beneplácito da Inglaterra. A partir daí, aquele país passou a supervisar o desenvolvimento do nosso país, visando proteger investimentos. Macunaíma sempre dava o jeitinho de esconder dos britânicos suas maracutaias. Fazia, dizia, mostrava coisas "só para inglês ver"; inclusive a Lei de Feijó (1861) sobre tráfico de escravos.
No caso das córneas, não há desperdícios, "jeitinhos" ou aparências. Há todo um esforço para que milhares de pessoas voltem a enxergar. Para brasileiro - sorocabano ou não - ver! Não se deixe levar por boatos internáuticos. Continue firme no propósito de doar seus olhos!
Edgard Steffen é médico - (edgards@directnet.com.br).
Jornal Cruzeiro do Sul