A tartaruga verdadeira do Amazonas**
** Este livreto de 17 páginas foi elaborado pelo veterinário Nunes Pereira e trata-se uma obra bastante interessante e extremamente difícil de ser encontrada nas bibliotecas e acervos públicos.
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(Capa)
MINISTÉRIO DA AGRICULTURA
Divisão de Caça e Pesca
A TARTARUGA VERDADEIRA
DO AMAZONAS
Por
NUNES PEREIRA
Da Divisão de Caça e Pesca
(REEDIÇÃO)
1954
RIO DE JANEIRO
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A TARTARUGA VERDADEIRA
DO AMAZONAS
(RESUMO INFORMATIVO)
Por seu valor econômico e pelo avultado consumo que dela fazem as populações do interior do Amazonas e do Pará, mereceu a tartaruga preocupar os organizadores do Código de Caça e Pesca, aprovado pelo Decreto n. ° 23.672, de 2 de janeiro de 1934.
Para que se possa avaliar a importância das medidas que a pesca e a caça desordenadas das tartarugas impõem às populações da Amazônia, principalmente, dei-me ao trabalho de organizar o presente resumo sôbre A TARTARUGA VERDADEIRA DO AMAZONAS.
A tartaruga verdadeira, cuja carne constitui um dos mais saborosos alimentos da Amazônia, pertence à família dos Pelomedusidae, à subordem de Emydidae e ao gênero Podocnemis.
À frente das 25 espécies que Sichenrock, segundo Goeldi, aponta no Brasil, está a Podocnemis expansa Schw.
As demais espécies de Podocnemis encontradas no Brasil são:
Podocnemis Cayennensis SCHW.
” Unifilis TROSCH.
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” Sextuberculata CORN.
“ Dumeriliana SCHW.
“ Lewyana A. DUM.
Na lista das demais espécies de quelônios existentes no Brasil figuram os seguintes:
Chelus Fimbriata SCHW.
Hydromedusa Maximiliani MIKAN.
H. Tectifera COPE.
Rhynemis Nasuta SCHW.
Hydraspis Geoffroayana SCHW.
H. Rufipes SPIX.
H. Hilari D. B.
H. Wagleri D. B.
H. Tuberosa PETERS.
Mesoclemmys Gibba SCHW.
Platemis Spixii D. B.
Pl. Platycephala SCHW.
Pl. Radiolata MIK.
Chrysemis D`Orbigny D. B.
Cinosternum Scorpioides L.
Nicoria Punctularia DAUD.
Testudo Tabulata WALK.
A Amazônia possui várias das espécies aqui enumeradas, nos seus rios e nos seus lagos, campos e matas.
A preferida para consumo, indústria e comércio é, entre- tanto, a Podocnemis expansa, de Schw. ou de Wagler.
Com essa denominação científica, é ela indicada por Castelnau, Goeldi, Brehm, Siebenrock, mas Spix a chamava Emys amazonica.
O cabloco chama em língua geral, à tartaruga fêmea iurara-assu, e ao macho – capitari.
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O habitat da tartaruga verdadeira é a Amazônia, essa vasta região que abrange aos estados do Pará e Amazonas, principalmente.
Hoje em dia, porém, não é encontrada mais, com facilidade, no Pará e também no Amazonas, em consequência da desordenada perseguição que lhe moviam os indígenas, os animais (aves, peixes, sáurios e crocodilianos) e o homem civilizado.
A tartaruga verdadeira vive geralmente nas águas do Amazonas e dos seus afluentes, nos paranás, nos igarapés, nos lagos e nas cacaias.
E nessas águas a sua quase exclusiva alimentação é composta de frutos caídos das árvores ribeirinhas, plantas aquáticas, flutuantes ou submersas.
Segundo Silva Coutinho, a tartaruga verdadeira “passa o inverno, isto é, os meses de janeiro até julho – tempo da cheia na região amazonica – nos lagos e nas enseadas tranquilas, nos igarapés e nas florestas marginais inundadas (igapós). Ali ela encontra abundante alimentação nas frutas de diversas espécies de árvores, das quais cada uma costuma amadurecer em certo e determinado mês. Assim ela se nutre, nas lagunas tranquilas laterais, durante os meses de janeiro a fevereiro das sementes da palmeira arati. Vindo, em março, residir ao longo das margens dos rios, os frutos do arapari fornecem-lhe alimento benquisto. Em maio as árvores, que, no país, são conhecidas com os nomes de caramuri e caimbé, aprontam os seus frutos. Em julho ela dá preferência às sementes da muiratinga. No caso da tartaruga não encontrar alguma das qualidades de frutas mencionadas, ela procura indenizar-se mediante uma certa espécie de louro; a contragosto sòmente, e na falta absoluta de qualquer alimentação de frutas, ela se resolve a aceitar alimentação de carne”.
José Veríssimo, em sua Monografia sôbre a Pesca na Amazônia, escreve a respeito da alimentação da tartaruga:
“Nesse tempo – nos meses da enchente – abundam elas principalmente nos igarapés os furos paralelos aos grandes rios
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e em direta e próxima comunicação com êles, das quais línguas de terra baixa, submersível na cheia, cobertas de uma vegetação fraca de sensitivas, salgueiros selvagens, aroídeas, caladiuns, mangues e palmeiras. Aí nessas águas tranquilas vêm tracajás e tartarugas comer os grelos e fôlhas da alguma dessas plantas cujos ramos se debruçam sôbre a água e de outras que nela mesmo viçam.
É um dos seus petiscos preferidos o bulbo da célebre Vitória-régia, o grande uapé do indígena, o “forno de jacaré, etc.”
Dentre os autores citados, como se vê, apenas Silva Coutinho adianta que, na falta absoluta de qualquer alimentação de frutas, ela se resolve a aceitar a alimentação de carne.
Predomina, de fato, na alimentação da tartaruga verdadeira a alimentação composta ou combinada de frutas.
Não ignoram, porém, os que vivem na Amazônia ou por lá passaram, tendo o ensejo de comer a saborosa carne de tartaruga, que há nessa carne, por vêzes, um pronunciado sabor de peixe.
Aliás, não é de estranhar-se que assim aconteça com a tartaruga verdadeira porque é sabido que, entre êsses quelônios, se algumas espécies são frugívoras ou vegetarianas muitas há que são exclusivamente carnívoras ou combinam com rações de peixe as rações de frutas ou plantas aquáticas que preferem.
Ditamrs, em The reptile book, descrevendo algumas tartarugas dos Estados Unidos, diz da Cominon snapping turtle Chelydra serpentina L. o seguinte:
“As in their native state these turtles lie partially em-beddid in the mud od the river – bottom, the rapid move-ments of the head and neck are important in the capture of fish which form the larger portion of the food”.
E mais adiante “The turtles is entirely carnivorous”.
Como a tartaruga verdadeira do Amazonas, a Snapping turtle dos americanos é encontrada nos mercados da Filadélfia e Baltimore, e a sua carne constitui excelente alimentação.
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Quem, no Amazonas, cria pequenas tartarugas, além de fôlhas de couve ou bredo, costuma dar-lhes também carne ou peixe fresco.
O peixe entra na alimentação de quase todos os sêres da Amazônia, aves, mamíferos ou répteis.
Não será de estranhar, pois, que a tartaruga fluvial, como a tartaruga marinha, aproveite tão excelente alimento.
A sua carapaça, que atinge 820 mm., segundo o assevera Goeldi, de substância calcária como é, não retiraria só das frutas e das plantas aquáticas elementos necessários à sua formação, mas provàvelmente dos que compõem o organismo dos peixes, crustáceos, etc.
A desova da tartaruga verdadeira se verifica no espaço de tempo que vai de setembro a outubro.
É isso o que afirma Silva Coutinho, na obra acima citada, e que aqui transcrevo:
“O depositar dos ovos chamado “chôco”, efetua-se em fins de setembro ou em outubro.
José Verissimo dá o mês de setembro como o do início da desova mas cita Vieira, no raconto que o mesmo fêz ao padre provincial Francisco Gonçalves em 1653, de cujo texto extraí o seguinte:
“Nos meses de outubro e novembro, saem do mar e do rio Pará grandes quantidades de tartarugas que vêm criar nas areias de algumas ilhas, que por meio dêste Tocantins estão lançadas”.
Já Adolfo Brehm, referindo-se à obra de Silva Coutinho escreve “... die Eier Werden Ende September bis Oktober in der Morgenfruhe abgelegt”.
No entanto Schomburgks, citado por Adolfo Brehm, rê-produz a opinião de Martins, que assinala o período de outubro a novembro como o mês da desova da tartaruga, enquanto Humboldt acha que o fenômeno se dá, no Orenoco, em março e o próprio Schomburgks assinalou o mês de jáneiro, até o princípio de fevereiro, na região do Essequibo.
Quer me parecer que, à parte Coutinho e em parte José Verissimo, os demais autores confundiram o período da
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desova do tracajá, Podocnemis unifilis Troschel que vai de outubro a dezembro.
Ou melhor, estabeleceram o tempo de desova da tartaruga verdadeira, em tôdas as zonas do grande rio, entre outubro e dezembro, sem levar em conta que as condições dêste ou daquele meio são as determinadoras do período em que tal fenômeno se verifica.
Como Goeldi e Silva Coutinho sou de opinião que a desova se verifica de setembro a outubro, principalmente, com pequeno prolongamento até novembro e nunca além dêsse período.
Donde concluir por lembrar aqui, neste trabalho, que se modifique a afirmativa contida no artigo 115, do Código de Caça e Pesca, proibindo-se que, quanto à tartaruga verdadeira, Podocnemis expansa Schw, a capturem de setembro a novembro e quanto às outras espécies de setembro a dezembro, ou melhor, que se estabeleça, desde já, em rigor, qual a época da desova das espécies, (comestíveis, existentes na Amazônia e no Brasil em geral), dos quelônios enumerados por Siebenrock.
Alguns dos naturalistas, que nos visitaram, já registra- ram para várias espécies de quelônios a época da desova, não sendo, pois tarefa difícil o que lembro.
Demais, em se tratando de peixes e caças, cogita o Serviço federal de estabelecer com segurança a época em que os mesmos desovam, organizando e publicando a relação por espécie, dos peixes e das caças que têm a sua reprodução, desova ou criação, limitadas a êste ou àquele tempo, porque não se cogita, desde já, de estabelecer, com precisão, a época da desova dos nossos quelônios?
Afirma-se geralmente que, para desovar, quando as águas baixam e as praias, coroas e restingas ficam a descoberto, à hora que o sol se levanta, as tartarugas acorrem em piracemas do fundo dos rios, igarapés e lagos.
Isso não é exato.
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Por um instinto admirável as tartarugas só deixam as águas, com rumo às praias, à noite, realizando no escuro o preparo da cova e desovando em seguida.
Extremamente ariscas, percebendo qualquer barulho ou divisando qualquer sombra, as tartarugas só podem ser viradas à noite, vestindo-se de prêto ou vermelho todo aquêle que toma parte numa viração.
A viração é o ato de privar a tartaruga de locomoção deitando-a de costa, num golpe rápido.
Vieira, citado por José Verissimo, escreve a respeito: “...rebentam os pescadores da emboscada, tomam a parte da praia e remetendo às tartarugas, não fazem mais que ir virando e deixando; porque em estando viradas de costa, não se podem mais bulir, e por isso essas praias e essas tar-tarugas se chamam de viração”.
Bates, também citado por José Verissimo, se refere às precauções que é preciso tomar para surpreender e virar tartarugas: “É preciso tomar grandes precauções, para evitar de inquietar as ariscas tartarugas , que, antes de subirem à margem para pôr, aglomeram-se em porção à distância da praia”.
E José Verissimo acrescenta: “A passagem de uma canoa nas águas baixas em que se reuniram as tartarugas, ou a vista de um homem ou fogo na praia, as fariam deixar de vir pôr os ovos aquela noite, e se as causas de alarma se repetissem elas abandonariam aquela praia por um lugar mais tranquilo”.
E Bates pormenoriza: “As tartarugas põem os ovos à noite, deixando a água quando nada as perturba, em multidões consideráveis, subindo a parte central e mais alta da praia.
Essas partes são, naturalmente, as últimas a imergirem quando, em cheias anormais, enche o rio antes da incubação dos ovos pelo calor da areia. Daqui se poderia crer que êste animal procede com previdência na escolha do lugar; mas não há nisto senão um dos exemplos nos animais em que um
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hábito inconciente tem o mesmo resultado de uma precisão conciente. As horas de maior trabalho são as de meia-noite à alvorada”.
O ninho para desova é cavado na areia fina, sêca e tem, segundo Silva Coutinho, uma cavidade de 0,44 m até 0,56 m; segundo Bates tem três pés de profundidade e segundo Brehm 45 a 60 centímetros.
Nessa cavidade depositam as tartarugas de 80 a 200 ovos, numa única postura, às vezes, ou se as interrompem, a metade disso, em duas posturas.
Goeldi avaliou a postura de uma tartaruga do Amazonas de 60 a 140 ovos.
A forma dêsses ovos é subesférica; eixo maior com 46 mm; eixo menor com 42 mm e pêso médio é de 43 gramas, consoante a opinião de Goeldi.
Após a desova, a tartaruga cobre o ninho com areia, bate-a com o peito (plastron), alisa-a, de modo a apagar qualquer traço de sua passagem por ali e volta ao seio das águas.
A incubação é favorecida pela ação da luz solar e dura cêrca de dois meses.
As tartarugas, escapando das covas, buscam logo as águas, sendo, por essa ocasião, perseguidas e devoradas por aves de rapina, jacarés, piranhas, pirararas e pelo homem que, com elas, enche latas de querosene, destinando-as à própria alimentação ou ao comércio.
O comércio da tartaruga verdadeira se inicia desde os “tabuleiros” onde corvejam, como nas “feitorias” de pirarucu, os malditos regatões, turcos exploradores do caboclo amazonense, e se estende às capitais dos dois estados do Extremo Norte, Pará e Amazonas.
O custo de uma tartaruga hoje está elevadíssimo. Outrora, ao tempo que Bates andou pelo Amazonas, isto é, em 1856, uma tartaruga de tamanho médio – custava cerca de 4$000. Atualmente custa 20$000 a 50$000. No mercado público de Manaus ou às mãos dos ambulantes os quartos das tartarugas custavam de 2$500 a 4$000 há oito anos atrás.
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A exportação se faz para Belém e para o Rio, mas em pequena escala, como o afirmam os comerciantes de tartaruga.
No Rio, nas casas que vendem artigos do Norte, uma tartaruga chega a alcançar o preço exorbitante de 150$000.
As tartaruginhas, que mãos criminosas exportam para o Rio, custam 8$000 cada uma, destinando-se a aquários ou a pequenos pratos de luxo para as mesas dos abastados.
O transporte é feito, na Região Amazônica, em ubás, igarités, batelões e gaiolas.
De Manaus ou de Belém as tartarugas são remetidas a várias casas importadoras, do Rio, a bordo dos navios do Lóide, pagando um frete excessivo.
Com a carne e a banha e os ovos da tartaruga, durante vários anos, antes da Primeira República, e mesmo depois desta proclamada, floresceram duas indústrias: a de óleos ou manteiga e a de mixira.
Com o aparecimento do querosene e do carbureto, o óleo de tartaruga, que servia para iluminação, passou a ser exclusivamente utilizado como mezinha, em fricções, no tratamento de dores reumáticas.
A mixira deixou de ser preparada em quantidade vul-tosa, mas os caboclos amazoneneses até hoje ainda a produzem para consumo, aparecendo nos mercados de Manaus e de Belém, em latas de 2 a 10 quilos, sendo tal produto bastante procurado dado o seu valor nutritivo e resistência à adulteração.
Os cascos das tartarugas verdadeiras têm pouca utilidade: fazem bacia para lavar roupa, nêle cultivam uma outra planta, e com o peito (plastron) arranjam tamboretes sui generis.
Em 1923, a Delegacia do Serviço de Indústria Pastoril, no Amazonas, autorizou o embarque para a Europa de um milheiro de cascos de tartaruga verdadeira, ignorando-se, porém, a que se destinavam.
É sabido que só uma espécie de tartaruga marinha, comum às águas brasileiras, dá casco utilizável na indústria
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de pentes, piteiras, cigarreiras, anéis, pulseiras e cofres para jóias.
As regras de proteção às tartarugas verdadeiras do Amazonas datam do Império.
Para evitar os processos bárbaros da caça e pesca à tartaruga, no período da desova, quando se dava o fenômeno da “arribação”, um “juiz”, como representante da autoridade, segundo Silva Coutinho, permanecia no “tabuleiro”, exigindo que ninguém se aproximasse de tais lugares durante a postura.
Quando esta estava terminada, os fabricantes de man-teiga, acompanhados pelo inspetor, procediam à “Viração”.
Êste entregava a metade de uma tartaruga a cada uma das pessoas assistentes.
O excesso em animais vivos todavia tinha de ser restituído à liberdade e reposto no rio.
O inspetor lançava uma lista dos trabalhadores de cada fabricante.
Na fiscalização imediata o inspetor era auxiliado por um empreiteiro, conhecido com a designação de “cabeça de rancho”. Êste colocava pessoas presentes em fileira e dava sinal para o comêço do trabalho com o rufo de um tambor ou um tiro de morteiro. A têrça parte das covas com ovos tinha de ser poupada para a conservação e propagação das tartarugas sòmente os dois outros terços podiam ser utiliza-dos para o fabrico de manteiga”.
Essas regras caíram pouco a pouco em relaxamento, sendo os próprios “inspetores” os primeiros a darem ruim exemplo (na destruição de ovos, tartarugas, etc.), por sua venalidade, corrupção e ganância, como ainda o assevera Silva Coutinho.
Algum tempo antes que Silva Coutinho escrevesse o seu trabalho a respeito da tartaruga verdadeira do Amazonas, a Assembléia Provincial do Amazonas resolveu, “a bem da proteção das tartarugas fortemente ameaçadas na sua exis-tência a reintrodução legal das anteriores regras convencio-
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nais. Mas o resultado não correspondeu às bem intencionadas esperanças do Govêrno provincial”.
O mesmo aconteceu às diversas leis e providências dos dois Estados do extremo-norte, não escapando ao derespeito generalizado entre as suas populações o artigo 92, do Capí-tulo IV dos Regulamentos da extinta Diretoria da Pesca e dos Serviços da Pesca e Saneamento do Litoral.
As multas nunca foram impostas e não raros mandões, à sombra da própria lei, continuaram a dizimar um dos mais preciosos representantes da fauna lacuste e fluvial da Ama-zônia.
Os processos de caça e pesca da tartaruga verdadeira do Amazonas, ainda hoje em voga, não obstante os resultados funestas que êste ou aquêle determina, podem ser descritas assim:
A pesca da tartaruga verdadeira se inicia por ocasião da “arribação”, que é o fato das tartarugas, em setembro, para desovar, procurarem os rios tomando direção contrária à correnteza, na definição de Silva Coutinho.
Em pequenas canoas, o caboclo, do meio do rio, espreita qualquer movimento d’água que lhe revele uma tartaruga.
Mal aponta à tona d’água a cabeça do animal desfe- re-lhe o pescador a frecha, servindo-se como o aborígene, de um arco possante, e revelando-se tão ágil quanto um arqueiro germano.
José Verissimo descreve duas das atividades dos pescadores dêsse tipo com uma rigorosa precisão.
Diz êle: “Feita a pontaria levando a arma pronta de baixo para cima, até apanhar a ôlho a ponta da frecha, em muitíssimo menos tempo que levo a descrever essa manobra, a frecha parte – tá! – no casco do bicho”.
É exaustiva a descrição que o grande escritor nacional faz dos dois tempo de tiro – o direto e o indireto.
Furto-me a transcrevê-la, pesaroso, à míngua de espaço e por ser êste trabalho destinado a simples divulgação.
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A tartaruga ferida, como acontece com o pirarucu ou outro qualquer peixe de igual vulto, procura libertar-se mer-gulhando em direção ao largo.
“Na rija carapaça, porém, di-lo Jose Verissimo, ficou-lhe cravado o bico de aço da sararaca, que é o nome da frecha nesta pesca usada”.
Como se acha prêsa por uma linha e atada à haste da frecha, à proporção que a tartaruga foge, revela-lhe esta onde o animal se encontra.
Sem perda de tempo o pescador lhe sai no encalço, em- palma a linha, com a haste, aí começando, no dizer de José Verissimo, “uma manobra tôda de delicadeza, de destreza e de agilidade. A linha, conquanto resistente, não pode jamais sê-lo bastante, pela sua mesma grossura, que aguente um animal forte e pesado como a tartaruga em meio dum completo desenvolvimento.
Para que se não parta e perca êle o trabalho, tem o pescador de, sem embargo de a ter acrescentado emendando-lhe outra qualquer, a do seu larpão ou a do anzol, manobrar com jeito –, “dando-a”, colhendo-a, abandonando de novo a haste de bubuia (isto é boiando) para retomá-la em seguida, de acôrdo com as evoluções do quelônio.
Trazido êste por fim até junto da canoa, crava-lhe o pescador uma outra mais forte o itapuá, espécie de larpão curto, com a ponta de ferro sòlidamente engastada. Prêso pelo itapuá recolhe-o para dentro da canoa onde deixa de costas, prèviamente ligados os pés e continua a pescaria.
A sararaca tem 1,30 a 1,32 m. de comprimento e possui, como descreve-o Silva Coutinho – na frente, uma parte do comprimento de um palmo, chamdo “gomo”, embutida no cabo por sua porção posterior. A frente desta peça que é de aço e conserva com o cabo uma ligação muito fixa, é munida no bico uma ponta em forma de estilete, geralmente com um ou dois ganchos virados para trás”.
“Sararaca e jatecá são, portanto, instrumentos similares; todavia a primeira é atirada pelo arco, ao passo que a segunda é manejada com larpão”.
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Outro modo de pescar-se no Amazonas a tartaruga verdadeira vem descrito – em “A Pesca na Amazônia”, por José Verissimo, e aqui o resumo.
Logo que o caboclo descobre a “comedia” de tartarugas, espera-as entre as 10 e as 12 horas, ou então, durante três dias, ceva-as, principalmente, deixando-lhe ao alcance, mergulhadas n’água, algumas bananas verdes, raízes de mandioca, de maniquera, preferentemente, presas a um ramo por um fio.
Após essa preparação ardilosa, sendo visíveis os sinais de que as tartarugas andaram por ali mordendo o engôdo, estando os ariscos animais confiantes, o pescador retira a banana ou raiz de mandioca que deixara mergulhada, e as substitui por outras bananas com anzol nelas embutido, que megulha a menos de um metro e fica assinalado, à tona d’água, por uma bóia ou um caniço.
O resto da linha fica às mãos do pescador ou com a extremidade amarrada ao banco da frente da canoa para, ao primeiro movimento que denuncie haver o bicho abocanhado sôfregamente o engôdo, fisgado dum golpe o pescador, com precaução, colhendo-a de modo a conservar-se a mesma bem aprumada e tensa”.
Chegando a essa manobra conhecidíssima, o pescador raras vêzes vê a presa escapar-lhe, dependendo-lhe o sucesso da pescaria da atenção, da habilidade de empregar, desde o preparo da ceva e da substituição dela pelo anzol iscado com banana ou raiz de mandioca até o momento de recolhê-la para o fundo da embarcação.
Pescam a tartaruga verdadeira, também utilizando rêde.
Tapadas as saídas dos lagos, munidos de uma rêde de pescar, vários pescadores lhes dão cêrco, evitando que os animais transponham a borda que fica a flutuar, enquanto outros batem as margens do lago, tangendo tartarugas, peixes, jacarés para o lago, onde são fàcilmente envolvidos.
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Pescadores ligeiros mergulham, destemidamente, por vêzes, para apanhar as tartarugas pelos pés e atirá-las ao fundo das canoas que os acompanham.
O pitoresco dessa pescaria e a técnica já foram descritos por Verissimo e por Bates e, tendo-a assistido, também, várias vêzes, pouco posso adiantar que interesse à leitura e sirva de ensinamento.
A êsse processo de pesca, proibido certamente pelo Có-digo, dá-se o nome de batição.
A viração constitui pròpriamente a caça à tartaruga.
Ela se realiza por ocasião do chôco ou desova, isto é, logo que as águas baixam e ficam as praias a descoberto.
Os caçadores de tartarugas, durante a noite, dissimu- lando-se na escuridão, em trajos apropriados, cautelosamente se aproximam dos animais entregues à faina de cavar o ninho – ou de desovar e os viram ou quebram.
Virar tartarugas ou quebrar tartarugas significam o mesmo ato.
É operação ardilosa, que só exige presteza, sem nenhum perigo, porque a tartaruga amazônica não se defende como sua irmã americana, a Tryonix, nem ataca como certas espécies marinhas.
Nessas virações não só as tartarugas são viradas.
Os ovos, também, atraem descobridores, – gente hábil em reconhecer os ninhos, onde as tartarugas deixaram de 100 a 130 ovos ou 200 ou mais.
“A tartaruga mãe, – descreve Silva Coutinho – revela, ao que acima dissemos, notável prudência e circunspecção no fechar da cova dos ovos. Todo sinal, todo vestígio que poderia tornar-se traidor da localidade, é apagado e afastado Mas por melhor que a mãe saiba esconder a sua prole, o descobridor dos ovos postos não apresenta reais dificuldades ao homem familiar com os seus costumes. Munido de uma vara pontuda na frente êle sonda, ora com esta, ora sòmente com o calcanhar do pé, a areia da praia.
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Das covas descobertas retiram-se as pequenas tartaru-guinhas, sendo logo assadas ou conservadas na gordura for-necidas pelos pais”.
Os ovos são levados para os mercados das capitais ou das cidades e vendidos com as tartarugas, quando não os comem com farinha d’água e sal ou preparam uma massa, para refrêsco, denominada pelos naturais mujanguê.
Os prejuízos resultantes dêsses processos de pesca ou de caça, proibidos pelo Código de Caça, recentemente baixado, durante dezenas de anos determinaram a escassez das tartarugas verdadeiras do Amazonas e de outras espécies de quelônios. O fabrico do óleo de ovos, por si só, bastaria para essa redução, mas a ela se associaram a batição e a viração, não sendo de esquecer-se, como acima descrevi, que aves, peixes, sáurios e crocodilianos concorrem, também, para o vultoso prejuízo anual apontado tantas e tantas vêzes, por pessoas autorizadas.
Cêrca de 30 milhões de ovos tinham de ser recolhidos, pisados, para, depois de decantado, ser o óleo classificado e entregue ao comércio.
Imagine-se quantos milhões de tartaruguinhas não desapareceram, nestes últimos cinquenta anos, em todo o vale, perseguidas pelo homem, pelos jacarés, pelos peixes e pelas aves.
Em 1855-93, – informa José Verissimo – só a Belém foram Ter 111.176 quilogramas de manteiga de tartaruga, numa média de mais de 12.000 quilogramas anuais.
Como a preparação dêsse produto data de mais de cem anos, e a mais de 50 se acentuou a redução das tartarugas verdadeiras, é fácil calcular a que situação seremos levados se não cuidarmos de aplicar rigorosamente a letra do Código na área dos quelônios do Amazonas e de todo o Brasil.
(**) NOTA – O presente trabalho foi escrito para justificar sugestões relativas ao texto do Código de Caça e Pesca, na parte referente à tartaruga verdadeira do Amazonas. Como os organiza-dores do referido Código as aproveitassem, esquecendo, porém, o esforço de quem as fêz, deixo aqui êste reparo oportuno. N. P.
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** Este livreto de 17 páginas foi elaborado pelo veterinário Nunes Pereira e trata-se uma obra bastante interessante e extremamente difícil de ser encontrada nas bibliotecas e acervos públicos.