A princesa de Pueblo

Em 1886 uma extraordinária embaixatriz apresentou-se diante do vigésimo segundo presidente dos Estados Unidos da América,Grover Cleveland.

Era a donzela do povo zuni,chamada ''W’e wha’’.

Compareceu a um importante evento de caridade e foi aplaudida entusiasticamente pela platéia presente.

Fez amizade com o presidente da Câmara e outros dignitários.

Ela era o membro mais importante de sua tribo,e o mais forte também.

Ninguém em Washington desconfiou na época que ela fosse, na realidade,uma Lhamana,uma pessoa do duplo espírito, modernamente categorizada como trans*,alguém nascida com genitais masculinos,mas diversamente identificada como do gênero feminino.

W’e wha percorreu um longo caminho desde o deserto Pueblo no Novo México, onde vivia com seu povo.

Os zuni acreditavam que uma pessoa hábil no artesanato das mulheres, entre outras várias coisas, era alguém que combinava os dois gêneros em um único, o que o tornava um indivíduo excepcional sob todos os aspectos.

Embora uma das características mais marcantes entre os zuni fosse justamente a independência e o importante estatus da mulher, homens e mulheres se especializaram em diferentes papéis, considerados complementares.

Os homens se ocupavam da religião, da caça e da guerra, e as mulheres do lar, da tribo e da família.

E a despeito dos papéis bem definidos de homens e mulheres, entretanto, os zuni reconheciam um terceiro ‘’estado’’ alternativo, chamado ‘’Lhamana’’.

As Lhamanas,em geral engajadas em relações tipicamente heterossexuais,costumavam celebrar casamentos com os homens comuns da tribo; evidências sugerem, porém, que tais homens apreciavam uma certa versatilidade no sexo.A dinâmica das relações nem sempre obedecia o rígido binarismo de gênero na cama,e às vezes a esposa Lhamana penetrava o marido.De acordo com Caitlin,somente os maridos de ''berdache'' tinham permissão para dançar o ritual com elas.Algumas Lhamanas,a despeito da aspiração para o casamento, apreciavam também relações mais casuais e descompromissadas.

O equivalente masculino da Lhamana era chamado de ‘’Katsotstsi’’ (a ''menina homem'').

Dizem que quando We’wha era criança, ela aparentava ser uma garota forte e enérgica, mas que preferia naturalmente a companhia das mulheres e gostava de se ocupar dos afazeres delas.

Ela era a pessoa mais alta entre os zuni, a mais capaz e certamente a mais inteligente. Com efeito,

We’wha foi responsável por obter dos americanos um tratado tão bem redigido que jamais foi quebrado por nenhum dos dois lados.

O presidente americano ficou tão impressionado com a princesa de seis pé de altura do povo zuni que insistiu para que ela fosse sua convidada de honra na casa branca durante vários dias.

No gramado da casa branca, para espanto de todos, We’wha montou um tear e teceu lindamente um dos seus magníficos cobertores de lã colorida.

A morte de We’wha alguns anos mais tarde provocou angústia e tristeza universal entre o seu povo;foi uma perda irreparável.

A mitologia dos Zuni explica que a primeira Lhamana nasceu de uma relação sexual entre dois irmãos;se as sementes da mesma origem estão estreitamente misturadas, uma criança de essência e aparência dupla nasce;a Lhamana,uma mística combinação entre homem e mulher,de acordo com os Zuni.

A maravilhosa história de We’wha é um comovente retrato de uma sociedade onde alguém que despertava habilidades e inclinações de gênero diversos ou um terceiro gênero não era punido, castrado, excluído, temido, eliminado, e estava perfeitamente inserido dentro de um contexto social saudável e não marginal.

Lhamanas não eram anomalias, aberrações da natureza, pervertidas, desviantes, invertidas, pecadoras, corruptoras.

Elas não cometeram o vício nefando, não eram somítigas, fanchonas, putas, bichas, viados, ‘’mujerados’’, amaricados.

Não havia as habituais hostilidades explosivas que encontramos na nossa sociedade contra elas, nem uma perseguição sistemática, cultural e genocida transfóbica.

Os relatos primitivos dos franceses,em contraste, atestam que do ponto de vista dos nativos americanos, pessoas como We’wha eram consideradas simplesmente ‘’manitou’’, um ser sagrado.

Texto redigido a partir de ''THE ZUNI MAN-WOMAN''

Will Roscoe